José Augusto de Castro e Costa
Não necessariamente, mas instintivamente,
seguindo os passos de conterrâneos antepassados, o cearense Augusto Gouveia,
jovem ainda, todavia já curtido pelas secas e tocado pelo canto da Sereia, que
convocava Sertão adentro, jovens para compor um grande Exército denominado
“Soldados da Borracha”, tomara a decisão de partir para a Amazônia, ao final da
terceira década do século XX.
Talvez não tenha levado em conta executar um
plano de ida e volta, como alguns, a exemplo do primeiro explorador, o lendário
Comendador João Gabriel de Carvalho Melo, filho de Uruburetama, Ceará, que após
a sua fuga, provocada por desentendimento com um tio fazendeiro rico, retornara
ao sertão após vinte anos, já abastado e possuidor de grandes posses, para
buscar a família e outros seguidores, a fim de dar continuidade a real
colonização que iniciara no médio Rio Purus, mais precisamente nas adjacências
da embocadura do Rio Acre adentro.
Logo que chegara a Rio Branco, o jovem
Augusto percebera não haver dificuldades para amar sinceramente aquela terra
que os nordestinos desbravaram, povoaram e defenderam do domínio estrangeiro,
com sacrifício de inúmeras vidas, na decantada Revolução Acreana.
Sim, havia abandonado a família em busca de
melhor qualidade de vida e estabelecera-se ali no Acre, primeiro como
Seringueiro, depois como agricultor e pequeno fazendeiro, sentindo-se acreano
de coração, mas certamente sem ter esquecido o distante torrão natal, embora
não tivesse jamais regressado ao seu Iguatu.
A ausência
não explicada ou propositada e a distância entre a sua família, no sertão,
e o coração da Amazônia, motivou-lhe o desconhecimento de que em Iguatu, o alto
falante na pracinha central, passara o menino prodígio, de seis anos, que vinha
encantando os ouvintes entusiasmados, ao interpretar lindas canções da época.
Devido a falta de oportunidades em Iguatu,
aquele garotinho, aos onze anos de idade, mudara-se para Fortaleza, com o
objetivo principal de estudar, porém, sempre envolvido com a música, não
obstante a atividade de feirante, que passara a exercer na cidade grande, como
meio de sobrevivência.
Trio Nagô (Evaldo ao centro) Foto Bossa-Brasileira |
Passados quase dez anos na prática do
fatigante e não menos estressante serviço diário na feira livre de
Fortaleza, Evaldo conseguira, afinal, aliviar sua qualidade de vida, ao ser
contratado por uma rádio local, ocasião em que viera a formar um dos mais
famosos trios musicais do Brasil o inesquecível “Trio Nagô”, com a participação
efetiva de dois amigos, os alfaiates Mário Alves e Epaminondas de Souza, o EPAMI,
parceiros das rodas boêmias.
O trio fizera tanto sucesso quanto uma das
origens de seu nome (Nagô), inspirado no molho picante, feito de pimenta
malagueta pisada com sal, camarão seco moído, quiabo, jiló e sumo de limão,
tudo cozinhado na panela de barro.
Os ventos começaram a melhorar para Evaldo,
quando o “Trio Nagô”, após representar o Ceará na Rádio Nacional, fora
contratado pela Rádio Jornal do Brasil e, logo a seguir por boates cariocas e
paulistas. Aos vinte anos Evaldo divulgara sua primeira composição (“DEIXE QUE
ELA SE VÁ”), que logo tornara-se sucesso na voz marcante de Nelson Gonçalves.
De ressaltar o vaticínio inserido na letra, visto nos versos:
“pois o dia em que ele parar
E pensar na maldade que fez,
Certamente ele há de voltar
Pro seu braço outra vez”...
De 1957 em diante Evaldo passara a colecionar
sucessos, praticamente, em todas as suas inúmeras composições.
Paralelamente à atividade musical, Mário
Alves ocupara-se do ofício da alfaiataria e, para tal, abrira um atelier,
situado na esquina da Travessa Carlos Sá, com a Rua Andrade Pertence, Bairro
Catete/Flamengo, em que os altos do sobrado também serviria de residência para
os três amigos, componentes do Trio Nagô. O sucesso, portanto, viera atrair a
atenção dos vizinhos, que procuravam manter contatos com seus ídolos.
Um desses vizinhos, e seu admirador, o
acreano Sálvio Montenegro, que morava na Rua Silveira Martins 140, então
estudante no Rio de Janeiro, teve, posteriormente, que retornar a Rio Branco, a
fim de prestar o serviço militar e, em lá permanecendo, foi presenteado pelo
destino como intermediador de uma das
mais emocionantes histórias de reencontro de pais e filhos, envolvendo justamente essa criatura maravilhosa: Evaldo
Gouveia.
Frequentador casual da fazendinha Boa Água,
“point” de entretenimento bastante procurado nos idos das décadas 1960/1970, situado
nas cercanias de Rio Branco, que oferecia aos mais íntimos, como atrativo,
banhos de açude, regado a cerveja gelada, e, como tira-gosto, o peixinho Cará frito, Sálvio, ali
estando, numa certa tarde de domingo, vira aproximar-se o proprietário e seu conhecido, Augusto Gouveia, trazendo um exemplar da
revista Manchete e acomodar-se, em um banquinho, junto ao grupo.
Com uma expressão contida e sisuda, o
velho sertanejo folheava a revista até deter-se numa foto de página inteira,
ilustrando a reportagem ao lado. Tratava-se de Evaldo Gouveia, que passara a
ser admirado pelas canções que começavam a guindar ao sucesso seus respectivos
intérpretes, como Altemar Dutra, Agnaldo
Timóteo, Ângela Maria e muitos outros.
Quase parodiando o Pai Eterno, disse:
– Este é o meu filho!
O ambiente emudecera. Todos, em silêncio,
porém, em conexão mental, passaram a observar minuciosamente, analisar
cuidadosamente, e sentiram ser revelados os mínimos detalhes coincidentes nos
traços do pai e do filho, mas sobretudo, as expressões refletidas no olhar de
um e de outro. Não fizera-se necessário buscar mais o que provar. Como diria
Machado de Assis: “quem quer que os vissem, os aceitariam por verdade, tal a
expressividade e a verossimilhança dos pormenores”.
Quando Sálvio Montenegro, em viagem ao Rio de
Janeiro, tivera oportunidade de
reencontrar Evaldo , tratara de colocá-lo a par do acontecimento, o que causara-lhe
um tremendo choque emocional, já que o
artista considerava seu pai como falecido, em face de jamais ter recebido notícias de sua existência. Refeito do sobressalto
e demonstrando uma reação de dor e ódio profundo, cujos motivos guardara em seu coração por toda sua
trajetória de vida, ensaiou um desabafo, lamentando o fato de seu pai ainda existir e referindo-se ao perverso abandono a
que foram submetidos sua mãe, ele, com
três anos de idade e seus dois irmãozinhos,
mais novinhos. Sentira tanto a dor da crueldade, que jamais pensara em perdoá-lo.
Atos e fatos relatados, no curso da conversa,
Sálvio quisera saber se Evaldo aceitaria ir a Rio Branco, reencontrar seu pai.
A primeira reação foi negativa, curta e grossa. Só em pensar vê-lo, dizia
sentir repugnância. Porém, com um pouco
de insistência e ânimos serenados, propusera-se a ideia de uma turnê ao Acre, com
o “Trio Nagô”, o que a princípio, fora
aceito apenas estudar-se o assunto e que à partir daí os contatos
seriam mantidos.
Com o retorno do Sálvio Montenegro ao Acre, e
mediante a colaboração dos amigos Hermano Diógenes (Manoca), Rufino Farias
Vieira e Dr. Ari Rodrigues, decidira-se
levar a efeito tal propósito, acontecendo então, em determinado sábado, a
apresentação do “Trio Nagô”, em ritmo de baile, no clube Rio Branco.
No dia seguinte, um domingo, realizara-se o
esperado reencontro de pai e filho, depois de mais de trinta anos separados, na
Fazenda Boa Água, assistido por um pequeno número de convidados especiais que,
em caravana, acompanharam o artista até a consumação daqueles fatos.
No trajeto para a Fazenda Boa Água, Evaldo Gouveia, desculpara-se, antecipadamente, por possível reação violenta, que infelizmente viesse a
ocorrer. Ao chegar ao ponto do reencontro, notara-se que o ambiente fora devidamente preparado a
fim de que os dois ficassem frente a
frente, para definir e tomar suas respectivas posições.
No pequeno, humilde, porém agradável bar, à beira de um lago, com varandas ao
redor, tendo ao fundo o balcão, aí postara-se o velho Augusto Gouveia, portando um
chapéu de coro batido na testa e uma viola escorada ao lado. Com a entrada do Evaldo, um silêncio profundo tomara conta do ambiente, quando os dois encararam-se por mais de um minuto, fixando-se olhos nos olhos.
No decorrer dessa cena, carregada de
expectativa, angústia, apreensão, ódio e amor, à beira de uma explosão de violência, o que se vira foram lágrimas rolarem em ambas as faces, e pai e filho apressarem os passos, um de
encontro ao outro, abraçarem-se e chorarem copiosamente. Afinal, um era a cara
do outro!
Triunfara nesse instante, o sentimento maior do amor paternal e filial e da certeza da
felicidade de uma antiga criança triste, que após muitos e muitos anos, como num sonho maravilhoso, abrira seus olhos,
deparando-se com o seu ídolo e Pai Herói. Um verdadeiro despertar de um novo
dia, para aqueles bem abençoados.
Os amigos expectadores, naquele momento de
emoção ímpar, onde ouvia-se até o bater de asas das moscas, todos com os olhos
marejados de lágrimas, não pouparam aplausos selando um encontro, dos mais
emocionantes, acontecido em solo acreano.
Como era de se esperar, Augusto e
Evaldo, pai e filho, a partir daí, jamais se perderam de vista e de quando em
vez, com o velho pai vivo, quer em Rio Branco, quer no Rio de Janeiro, quer em
Fortaleza, estavam sempre juntos, tentando recuperar o tempo perdido, que
o destino caprichosamente os separara, apenas por alguns anos.
Evaldo, o filho, que gerara de suas entranhas
cerebrais, criaturas musicais, visionara por certo, naquele instante, os Alguém
Me Disse, Bloco da Solidão, Que Queres Tu de Mim, Sentimental Demais, Brigas,
Somos Iguais... e, visivelmente extasiado, dera mais um passo para,
afinal, abraçarem-se, ao som de risos e banhados de lágrimas.
Assim, o Acre restara-se maravilhado em ter
sido o palco daquele reencontro original, que tornar-se-ia indelével, na
memória romântica dos mais autênticos menestréis acreanos.
> O texto integra a série História que o Acre Escreveu, que o escritor acreano José Augusto assina nesta página.
> Leia aqui outros textos de José Augusto de Castro e Costa.
> O texto integra a série História que o Acre Escreveu, que o escritor acreano José Augusto assina nesta página.
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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
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