terça-feira, 29 de abril de 2014

O PALHAÇO XIXILICA

Leila Jalul


Os preparativos para a liquidação da maior loja de materiais de construção e artigos de decoração duraram três dias e três noites. A avenida principal da pequena Mirandolina ficou interditada para que se armasse um portal que permitisse, além da visualização do semáforo, a passagem dos caminhões de lixo, dos cegonhas e dos transportadores de eucalipto e mármore. Nela seriam vendidos pisos de cerâmica a R$ 8,00 e de porcelanato a R$ 25,00. Janelas e portas de madeira deveriam variar entre R$ 70,00 e 90,00. Tudo pechincha de São João! Isso sem contar com a galinha morta dos vasos sanitários e das pias de última geração a R$ 180,00.

João Marcino e Heloneida estavam radiantes com a garantia do trabalho temporário por duas semanas. Ganharam a indumentária de palhaços e de caipiras do dono do estabelecimento. Roupas lindas, jamais usadas em seus shows pelas feiras livres e fazendolas dos arredores. Também os músicos da bandinha ganharam fantasias mais animadas que as cores do arco-íris gay. Na primeira semana seriam caipiras e, na segunda, palhaços. Selecionaram as marchinhas de circo e as populares dos santos de junho e ensaiaram a todo vapor. De 13 a 18 e de 20 a 25 de junho, teriam contrato assinado e pagamento pelos serviços prestados aos proprietários da loja Camelo & Rodrigues – Materiais de Construção e Decoração.

Partindo do princípio do “quem é coxo, parte cedo”, às seis da matina, perfilados frente ao prédio, estavam todos: músicos e caipiras, aguardando a abertura do comércio. Às oito, pinotando de um lado para o outro da avenida, ao som das músicas de fogueira, João Marcino e Heloneida se derretiam em abordagens aos passageiros de carros, ônibus e caminhões, quando da parada do sinal. Ela, grávida de uns seis meses, ia numa marcha mais lenta.

O sol esquentou na hora prevista para esquentar. Cuidadoso com a esposa grávida, João Marcino deixava-a descansar no canteiro central, debaixo de três arvorezinhas baixas e de copas frondosas. Logo foram advertidos pelo gerente da loja: o contrato previa o evento defronte ao prédio e não ao lado. Heloneida, forte que era, voltou ao quadrado demarcado, sem reclamar da vida. E repetiram as sessões de caipiras ao sol de segunda a sábado, das oito às doze e das quatorze às dezoito horas, distribuindo panfletos e atravessando a avenida, numa alternância de doer na alma de quem se dispusesse a medir o sacrifício.

No domingo descansaram. Na segunda voltaram com a corda toda. Tiraram a roupa de caipira e se montaram de circenses.  A palhaça grávida, o palhaço de cabelos brancos e presos num rabo de cavalo e a bandinha barulhenta e desafinada, desta vez tocando músicas de tablado. Preocupado com Heloneida, João Marcino resolveu poupá-la das travessias de avenida. Passaram a obedecer a proporção de uma para três, ainda que escondendo do gerente da loja. As vendas ultrapassavam  as expectativas. Quem iria se importar se não havia tempo sequer de fiscalizar o formigueiro que se espalhava na loja com avidez de lobos para o consumo dos pisos de cerâmica simples, dos porcelanatos e das louças sanitárias? O gerente era um só, pois, pois!

Demonstrando cansaço e ainda preocupado com Heloneida, João Marcino decidiu alternar suas travessias a cada três sinais fechados. O gerente não mais disponibilizava as garrafinhas de água mineral, ou de torneira que fosse, como nos primeiros dias. De língua seca, era impossível. Até a bandinha estava mais amolecida e desafinada, principalmente para os tocadores dos instrumentos de sopro.

Às quinze horas do dia 24 de junho, vésperas do final da loucura liquidativa, com a casa cheia, ninguém notou que João Marcino deitou um pouco no chão debaixo das arvorezinhas pequenas e de copas frondosas. Apenas Heloneida sabia que seu homem não deitava por acaso.

A ambulância do SAMU recolheu o corpo sem que o gerente se desse conta de que, a seu serviço, debaixo de um sol escaldante, morreu o mais famoso palhaço de Mirandolina. Xixilica era seu nome. E Heloneida era o de sua esposa.

Tudo ficou calmo, quase parando... Bem disse o homem de Itabira:

“Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.”


> LEILA JALUL é escritora acreana, atualmente radicada na Bahia. É autora de SUINDARA (2007), DAS COBRAS, MEU VENENO (2010), MINHAS VIDAS ALHEIAS 2011 e LUZINETE: UM ANGU DE CAROÇO? (2012).

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