Leila Jalul
Os preparativos para a liquidação da maior
loja de materiais de construção e artigos de decoração duraram três dias e três
noites. A avenida principal da pequena Mirandolina ficou interditada para que
se armasse um portal que permitisse, além da visualização do semáforo, a
passagem dos caminhões de lixo, dos cegonhas e dos transportadores de eucalipto
e mármore. Nela seriam vendidos pisos de cerâmica a R$ 8,00 e de porcelanato a
R$ 25,00. Janelas e portas de madeira deveriam variar entre R$ 70,00 e 90,00.
Tudo pechincha de São João! Isso sem contar com a galinha morta dos vasos
sanitários e das pias de última geração a R$ 180,00.
João Marcino e Heloneida estavam radiantes
com a garantia do trabalho temporário por duas semanas. Ganharam a indumentária
de palhaços e de caipiras do dono do estabelecimento. Roupas lindas, jamais
usadas em seus shows pelas feiras livres e fazendolas dos arredores. Também os
músicos da bandinha ganharam fantasias mais animadas que as cores do arco-íris
gay. Na primeira semana seriam caipiras e, na segunda, palhaços. Selecionaram
as marchinhas de circo e as populares dos santos de junho e ensaiaram a todo
vapor. De 13 a 18 e de 20 a 25 de junho, teriam contrato assinado e pagamento
pelos serviços prestados aos proprietários da loja Camelo & Rodrigues –
Materiais de Construção e Decoração.
Partindo do princípio do “quem é coxo, parte
cedo”, às seis da matina, perfilados frente ao prédio, estavam todos: músicos e
caipiras, aguardando a abertura do comércio. Às oito, pinotando de um lado para
o outro da avenida, ao som das músicas de fogueira, João Marcino e Heloneida se
derretiam em abordagens aos passageiros de carros, ônibus e caminhões, quando
da parada do sinal. Ela, grávida de uns seis meses, ia numa marcha mais lenta.
O sol esquentou na hora prevista para
esquentar. Cuidadoso com a esposa grávida, João Marcino deixava-a descansar no
canteiro central, debaixo de três arvorezinhas baixas e de copas frondosas.
Logo foram advertidos pelo gerente da loja: o contrato previa o evento defronte
ao prédio e não ao lado. Heloneida, forte que era, voltou ao quadrado
demarcado, sem reclamar da vida. E repetiram as sessões de caipiras ao sol de
segunda a sábado, das oito às doze e das quatorze às dezoito horas,
distribuindo panfletos e atravessando a avenida, numa alternância de doer na
alma de quem se dispusesse a medir o sacrifício.
No domingo descansaram. Na segunda voltaram
com a corda toda. Tiraram a roupa de caipira e se montaram de circenses. A palhaça grávida, o palhaço de cabelos
brancos e presos num rabo de cavalo e a bandinha barulhenta e desafinada, desta
vez tocando músicas de tablado. Preocupado com Heloneida, João Marcino resolveu
poupá-la das travessias de avenida. Passaram a obedecer a proporção de uma para
três, ainda que escondendo do gerente da loja. As vendas ultrapassavam as expectativas. Quem iria se importar se não
havia tempo sequer de fiscalizar o formigueiro que se espalhava na loja com avidez
de lobos para o consumo dos pisos de cerâmica simples, dos porcelanatos e das
louças sanitárias? O gerente era um só, pois, pois!
Demonstrando cansaço e ainda preocupado com
Heloneida, João Marcino decidiu alternar suas travessias a cada três sinais fechados.
O gerente não mais disponibilizava as garrafinhas de água mineral, ou de
torneira que fosse, como nos primeiros dias. De língua seca, era impossível.
Até a bandinha estava mais amolecida e desafinada, principalmente para os
tocadores dos instrumentos de sopro.
Às quinze horas do dia 24 de junho, vésperas
do final da loucura liquidativa, com a casa cheia, ninguém notou que João
Marcino deitou um pouco no chão debaixo das arvorezinhas pequenas e de copas
frondosas. Apenas Heloneida sabia que seu homem não deitava por acaso.
A ambulância do SAMU recolheu o corpo sem que
o gerente se desse conta de que, a seu serviço, debaixo de um sol escaldante,
morreu o mais famoso palhaço de Mirandolina. Xixilica era seu nome. E Heloneida
era o de sua esposa.
Tudo ficou calmo, quase parando... Bem disse
o homem de Itabira:
“Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.”
Eta vida besta, meu Deus.”
Nenhum comentário:
Postar um comentário
"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
Outros contatos poderão ser feitos por:
almaacreana@gmail.com