Evandro Ferreira
Uma grande parcela das pessoas que vive no
Acre sabe a dificuldade que é praticar agricultura e pecuária nesta parte da
Amazônia. O primeiro grande obstáculo é a floresta, que precisa ser retirada
tendo em vista que as atividades citadas não podem ser realizadas no ‘meio da
mata’.
Imagem: Geoglifo 'Quinoá', localizado nas proximidades do ponto onde o igarapé Quinoá cruza a rodovia BR-364, sentido Porto Velho, a cerca de 20 km da cidade de Rio Branco (Fonte: Google Earth). |
Desde a chegada dos primeiros colonizadores a
Amazônia, no início do século XVII, a forma de preparo das áreas para as
atividades agropecuárias na região pouco mudou: primeiro é preciso derrubar a
floresta e depois eliminar a matéria vegetal resultante para limpar o terreno.
No início eram usadas apenas ferramentas manuais para a derrubada da floresta.
Hoje máquinas motorizadas facilitam e aceleram esse trabalho. A massa vegetal
resultante da derrubada foi e tem sido eliminada mediante o uso do fogo. Não
importam os meios, a retirada da floresta para a realização de atividades
agropecuárias na Amazônia não dispensa o uso de mão-de-obra e a aplicação de
recursos financeiros para ser realizada de forma adequada.
O cultivo de plantas e a criação de animais,
com destaque para o gado, têm sido praticados desde o início da ocupação da
Amazônia. Entretanto, a manutenção do terreno livre de plantas invasoras, tanto
na atividade agrícola quanto na pecuária, é um dos maiores desafios para a perenidade
destas atividades. O abandono de áreas agrícolas ou de pastagens durante um ou
dois anos é suficiente para que a floresta comece a se regenerar rapidamente. E
se providências não forem tomadas de imediato, em pouco tempo vai ser
necessário derrubar e queimar novamente a floresta. É uma luta constante do
homem contra a natureza.
Claro que na atualidade existe uma maior
facilidade de acesso e menor custo financeiro para a aquisição de ferramentas,
máquinas e produtos químicos para conter o retorno da floresta. Mas nem sempre
foi assim e, com exceção das áreas de pastagens mantidas sob controle pela ação
de pisoteio e pastoreio do gado e pelo uso recorrente de produtos químicos e do
fogo, a maioria das áreas usadas para cultivos agrícolas na Amazônia tem sido
retomada pela floresta. E os agricultores locais permitiram e permitem que isso
ocorra porque os solos da Amazônia são naturalmente pouco férteis. Derrubar e
queimar a floresta agrega uma riqueza temporária ao solo que permite o seu
cultivo durante alguns anos.
Dito isso, coloco um desafio aos leitores.
Como é possível retirar a floresta e manter aberta uma clareira com área de 5 a
10 hectares sem dispor de máquinas (motosserra e tratores) e ferramentas
manuais feitas de ferro e aço (serras manuais, machados, terçados, foices e
enxadas)? Considerem que a floresta a ser derrubada é formada por árvores de
variados tamanhos (castanheira, aroeira) e dureza da madeira (cumaru-ferro,
angelim). Considerem ainda que a derrubada e a queimada da área a ser aberta
terá que ser, necessariamente, feita em uma única temporada do verão amazônico,
ou seja, entre o final das chuvas (abril-maio) e o final do período seco
(meados de setembro). Tentem responder também como, depois de aberta a
clareira, será possível controlar a regeneração da floresta durante meses, ou
talvez anos, sem dispor de máquinas, ferramentas manuais de ferro e aço, de
animais de pastoreio e de produtos químicos desenvolvidos especificamente para
controlar o crescimento de plantas indesejadas?
Foto: www.geoglifos.com.br |
Uma coisa é certa, a abertura de uma clareira
desse porte sem o uso de ferramentas e máquinas modernas durante uma estação do
verão amazônico, ou seja, ao longo de um período de aproximadamente cinco
meses, iria requerer um ‘exército’ de dezenas, talvez centenas, de homens
fortes e bem nutridos. A manutenção da clareira aberta livre de plantas
indesejadas também iria requerer atenção constante de um numeroso grupo de
trabalhadores braçais. Agora adicione a este trabalho a abertura, sem uso de
ferramentas e máquinas modernas, de trincheiras em formatos geométricos
diversificados, algumas em forma de círculos com até 300 m de diâmetro, com vão
com de até 10 m e profundidade de até 7 m.
Pois foi esse o trabalho que ‘indígenas
primitivos’ que habitavam o leste do Acre há cerca de 2 mil anos atrás
realizaram em dezenas de localidades, deixando como legado os geoglifos. As
razões para a realização de todo esse trabalho ainda não estão completamente
esclarecidas. Algumas publicações científicas sugerem que os geoglifos eram
estruturas de defesa para esses grupos indígenas, outras sugerem uma função
ritualístico-religiosa. Independente da destinação das estruturas, um debate
latente no meio científico é a possível explicação para a forma como esses
indígenas ‘domaram’ ou lidaram com a floresta para fazer as suas construções.
Mas antes de entramos nessa discussão, é
importante ressaltar um aspecto pouco considerado, mas que foi crucial no
processo que resultou na construção dos geoglifos: como os indígenas conseguiram
alimentar o exército de homens e suas respectivas famílias (mulheres, crianças
e idosos) que participaram da abertura da floresta e da construção dos
Geoglifos?
Os registros arqueológicos indicam que a
maioria dos assentamentos humanos mais antigos da Amazônia foi instalada em
áreas de várzeas ou nas proximidades de grandes rios que cortam a região, onde
os solos são mais ricos, a água é abundante, e a pesca e a prática da
agricultura são facilitadas. Ocorre que a grande maioria dos geoglifos encontrados
no leste do Acre foi construída nas áreas de florestas de terra firme, nos
interflúvios dos rios Acre, Iquiri e Abunã. Estas regiões são tradicionalmente
‘ruins de água’ nos períodos mais secos do ano, a obtenção de proteína animal é mais complexa e demorada (se a caça é feita
com arco e flecha), e a floresta no local geralmente tem o maior porte que se
possa imaginar. Em conjunto, estes fatores contribuem para limitar a perenidade
dos assentamentos humanos à temporada de chuvas e dificultam sobremaneira a
abertura das clareiras. Os pequenos agrupamentos de índios isolados que habitam
a região das cabeceiras dos rios Purus e Iaco são um bom exemplo disso. Até
hoje migram de uma região para outra em função da sazonalidade das chuvas.
Foto: www.geoglifos.com.br |
Não se sabe como os construtores dos
geoglifos resolveram essa questão da alimentação de um grande número de pessoas
em um ambiente teoricamente não favorável à produção agrícola primitiva em
larga escala. Entretanto, a existência dos geoglifos, o legado de sua presença
nas regiões de interflúvios, quebrou um antigo paradigma de que assentamentos
humanos primitivos e numerosos não teriam condições de prosperar longe dos
grandes rios na Amazônia. Nesse contexto, o pesquisador Alceu Ranzi, de maneira
genérica, sugeriu que “os construtores de geoglifos, durante mais de mil anos,
resolveram o problema das terras "fracas" e da falta dos grandes rios
para navegar e buscar o alimento. Depois de satisfeitas as necessidades básicas
de alimentação e segurança da família, restou tempo suficiente para o
planejamento e construção destes monumentos de terra”.
O argumento de que os indígenas levaram mil
anos para resolver o problema das ‘terras fracas’ da Amazônia, ou seja,
desenvolver técnicas agrícolas para alimentar grandes contingentes
populacionais em áreas de florestas de terra-firme onde foram construídos os
geoglifos não se sustenta porque essas técnicas deveriam ter sido herdadas por
seus descendentes, contemporâneos dos primeiros exploradores espanhóis e
portugueses que adentraram a Amazônia no início do século XVII. Se isso tivesse
acontecido, esses povos deveriam ter prosperado e formado assentamentos
perenes, mas os primeiros exploradores encontraram apenas pequenos grupamentos
nômades sobrevivendo da caça e da pesca, em sua maioria habitando as margens
dos grandes rios da região.
Nessa altura os geoglifos já haviam sido
‘engolidos’ pela floresta e sua existência só seria revelada no final do século
XX. É como se os povos construtores dessas estruturas magníficas, que dominaram
uma ampla região no limite sul-ocidental da Amazônia, tivessem desaparecido de
forma rápida em um evento pré-colombiano catastrófico – doença? – sem deixar
descendentes que pudessem continuar as suas práticas culturais, construtivas e
de manejo da floresta.
A chegada do homem no sul da Amazônia deve
ter acontecido por volta de 10 mil anos atrás, no final da última glaciação.
Antes da glaciação, a paisagem local era dominada por extensas savanas que abrigavam
uma megafauna diversa composta por preguiças e jacarés gigantes, tatus ‘do
tamanho de um fusca’, e outros herbívoros igualmente grandiosos. O aquecimento
ao final da glaciação permitiu a rápida ocupação de toda a região por florestas
tropicais abertas e densas. E foi nesse novo ambiente que há cerca de 2-3 mil
anos atrás os geoglifos foram construídos. Portanto, os seus construtores não
tiveram outra opção, mas ‘enfrentar’ a floresta para realizar suas obras.
Estudos já demonstraram que o desmatamento de
um hectare de floresta usando machados feitos de pedra demandam grande tempo e
uma quantidade imensa de mão-de-obra: 1.883 homem/hora. Embora a mobilização de
tal contingente não tenha sido de todo impossível no passado, o principal fator
limitante para tal empreendimento seria a alimentação desse batalhão de pessoas
e respectivas famílias. Como produzir grãos, raízes e proteína animal em
quantidade suficiente para alimentar adequadamente a todos?
Vários pesquisadores tem procurado uma
explicação lógica para entender como os construtores dos geoglifos tiveram
sucesso em sua empreitada trabalhando em um ambiente francamente desfavorável.
E uma das que me chamou mais a atenção foi a proposta por pesquisadores da
Universidade de New Hampshire, nos Estados Unidos, publicada em um artigo na
edição de abril da revista Journal of Biogeography. Nesse artigo, tendo como
base imagens de satélite e uma série de dados ambientais (temperatura,
precipitação, características dos solos, elevação, etc) eles modelaram a
distribuição presente das florestas com bambu (Guadua spp.) e dos geoglifos no
sudoeste da Amazônia e encontraram uma forte associação entre a localização dos
geoglifos e florestas dominadas pelo bambu. É importante observar que nesta
região as florestas com bambu são muito comuns nas regiões dos interflúvios,
popularmente conhecidas como terra-firme ou 'centro', na linguagem dos
extrativistas da região.
Sabe-se que as populações de bambu morrem de
forma sincrônica porque elas são clonais, ligadas por um complexo e extenso
sistema rizomatoso subterrâneo. Assim, quando esse rizoma morre, todos os
colmos de bambu ligados a ele morrem juntos. Um estudo recente determinou que a
longevidade dos bambuzais no sudoeste da Amazônia varia entre 27 e 28 anos e
que o tamanho médio dos mesmos é de 330 km², sendo que o maior deles ocupava
uma extensão de 2.750 km². Quando uma dessas populações de bambu morre, uma
grande quantidade de massa vegetal inflamável se deposita sobre o solo da
floresta. E se esse evento acontece no auge do período seco, a probabilidade de
realizar a queimada da floresta é elevada. Dessa forma, conforme sugerido pelos
pesquisadores da Universidade de New Hampshire, a eliminação da floresta é imensamente
facilitada.
De fato, as florestas com bambu são muito
diferentes de outras florestas na região. Elas apresentam-se estruturalmente
alteradas, especialmente nos estratos intermediários e no dossel, possuem menor
riqueza florística e densidade de árvores, e a redução da área basal arbórea
total varia entre 30 e 50%. A presença do bambu reduz em até 39% a biomassa
aérea da floresta e entre 30-50% o potencial de armazenamento de carbono. O
bambu também pode afetar o influxo de outras espécies arbóreas, enfraquecer a
habilidade competitiva das espécies com baixa capacidade de adaptação e reduzir
em quase 40% o número de espécies na amostra de um hectare. Inventários
realizados em florestas com bambu no Acre revelaram uma densidade mínima de 300
árvores/hectare (diâmetro a altura do peito igual ou superior a 10 cm),
enquanto nas florestas sem bambu esse número pode passar de 600/hectare.
Foto: Edison Caetano |
Pode-se, portanto, pensar que os construtores
dos geoglifos eram povos sistemáticos que monitoravam diversos bambuzais e que
tinham ideia aproximada de quando a morte dos mesmos iria acontecer. Com
paciência de sobra e um pouco de sorte, a morte de um ou outro bambuzal
eventualmente ocorria no período mais seco do ano. Nessa condição, a queimada
da floresta era facilitada e a eliminação da maior parte da vegetação era feita
pelo fogo, restando aos indígenas apenas a derrubada das árvores de maior
porte, que nas florestas com bambu são em número significativamente inferior ao
de outros tipos de florestas.
A queimada das florestas nas quais o bambu
morria colocava à disposição dos indígenas construtores dos geoglifos dezenas,
talvez centenas de hectares de solos favoráveis aos mais diversos cultivos
agrícolas visto que a queimada das plantas adiciona uma riqueza temporária ao
solo, permitindo o seu uso por 2-3 anos, nos moldes do sistema de derruba e
queima praticado pelos pequenos agricultores da atualidade. Nestas mesmas áreas
os geoglifos eram construídos.
Dessa forma, é possível pensar que os povos
construtores de geoglifos eram itinerantes (nômades) e essa itinerância era
guiada pela dinâmica da mortandade das populações de bambu. Da mesma forma é
possível supor que a extensão das clareiras abertas por este comportamento
oportunístico dos indígenas era sempre suficiente para suportar a população
existente no momento.
O que ainda permanece um mistério completo é
a razão para a construção de tantos geoglifos. Alguns pesquisadores tem
sugerido que eles tinham função de proteção, moradia e mesmo canais de
irrigação para a agricultura. Por ora, penso, como uns poucos, que os geoglifos
tinham um caráter sagrado. E me arrisco a especular que foram construídos como
forma de agradecimento aos deuses pela dádiva que a morte recorrente dos
bambuzais na região representava: a continuidade da sobrevivência desses povos.
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EVANDRO FERREIRA é acreano, nascido em Rio Branco, Pesquisador do
Inpa-Ac e do Parque Zoobotânico da UFAC. Mestrado em Botânica no Lehman
College, New York, USA, e Ph.D. em Botânica Sistemática pela City University of
New York (CUNY) & The New York Botanical Garden (NYBG).
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