José Ribamar Bessa Freire
Hoje, 19 de abril, Dia do Índio, protestos
pipocam aqui e ali por todo o Brasil contra Proposta de Emenda Constitucional -
a PEC 215 - que pretende transferir do Executivo para o Congresso Nacional o
poder de demarcar terras indígenas, quilombolas e unidades de conservação. Na
prática, esta PEC inviabiliza a demarcação das terras que garantem não apenas a
existência dos índios, mas também a qualidade de vida dos brasileiros que ficam
assim desprotegidos no campo ambiental.
No início da semana, cerca de 1,5 índios
participaram em Brasília da Mobilização Nacional e ao passarem diante do
Congresso apontaram para o prédio suas flechas e bordunas, tocaram maracás e
apitos, gritando "Fora PEC 215". Eles sabem que tal proposta coloca a
raposa cuidando do galinheiro. Muitos deputados da comissão especial que
analisou a PEC 215 foram financiados por empresas do agronegócio e da
mineração, por madeireiras e bancos, segundo dados do Tribunal Superior Eleitoral
(TSE).
No Congresso, as raposas felpudas defendem
descaradamente os interesses de quem financiou suas campanhas milionárias,
algumas com mais de um milhão de reais. A bancada ruralista, fortalecida com a
nomeação da senadora Kátia Abreu para o Ministério da Agricultura, já está
decidindo sobre as terras indígenas, antes mesmo da votação da PEC,
contrariando a Constituição de 1988. Do total de 988 terras indígenas, 323
estão sem qualquer providência e 146 ainda em estudos para identificar, segundo
dados do COMIN/CIMI.
Bancada da flecha
No Congresso Nacional é possível encontrar
bancadas de A à Z para defender todo tipo de interesse: a bancada do
Agronegócio, do BBB (Bala, Boi e
Bíblia), do Cimento e até uma Frente Parlamentar em defesa dos Povos Indígenas,
bastante combativa, mas até mesmo nela não é possível ouvir a voz solitária de
qualquer índio. Não existe um só índio entre os 513 deputados e os 81
senadores, o que debilita e envergonha a democracia brasileira, considerando
que os índios totalizam quase um milhão de pessoas, segundo o último Censo do
IBGE.
Inexiste a bancada do arco e flecha. Na
história do Brasil, o único deputado indígena foi Mário Juruna, filho de um
chefe Xavante da aldeia Namunkurá (MT), que só começou a falar português aos 18
anos, quando entrou em contato com a sociedade regional de Barra do Garça.
Ficou conhecido porque por onde andava levava um gravador que registrava o que
diziam as autoridades, para mostrar que quase nunca cumpriam a palavra
empenhada. Usava o gravador como detector de mentiras.
Filiado ao PDT do Rio de Janeiro, Juruna,
eleito com o apoio de Darcy Ribeiro e Brizola, exerceu seu mandato na
legislatura de 1983 a 1987. No Congresso, criou a Comissão Permanente do Índio
e deu maior visibilidade aos problemas que enfrentavam os povos indígenas. Teve
a coragem de denunciar publicamente o empresário Calim Eid que lhe ofereceu
grana para votar em Paulo Maluf, candidato à eleição indireta à presidência da
República.
No exercício de seu mandato, um dia Mário
Juruna marcou audiência com o ditador de turno, general Figueiredo, para cobrar
dele o não pagamento da dívida externa brasileira e as demissões do presidente
da Funai e do ministro Delfim Neto - o gordinho sinistro. Nenhuma de suas
reivindicações foi atendida. No Rio de Janeiro, na ausência de Brizola no
Palácio Guanabara, Juruna sentou na cadeira do governador e "assumiu o
poder" por duas horas, declarando que "índio não quer apito, quer o
poder".
O único contato pessoal que tive com Juruna
foi em julho de 1980, quando ele ainda não era deputado. Convidei o líder
xavante à minha casa, depois do encontro dos índios com o Papa João Paulo II em
Manaus. Lá, comentei que eu seria preso se desse uma porrada no ministro Mário
Andreazza, mas se o autor fosse ele, Juruna, nada lhe aconteceria, uma vez que
os índios eram considerados inimputáveis, o que só seria modificado em 2002 com
a aprovação do novo Código Civil. Ele percebeu que eu estava brincando e riu,
graças a Deus. Graças a Deus?
O extermínio
Nos tempos bicudos em que o Rio de Janeiro manda
para a Câmara de Deputados alguém do calibre intelectual e do estofo moral do
Eduardo Cunha (PMDB, vixe, vixe), não há mesmo lugar para Mário Juruna.
Maltratado por grande parte da mídia, ridicularizado por não falar o português
como língua materna, folclorizado, Juruna não conseguiu ser reeleito e acabou
morrendo em 2002 no ostracismo. De lá para cá, apesar de tentativas de alguns
outros índios em diferentes estados brasileiros, ninguém mais foi eleito. Faz
falta uma voz como a de Mário Juruna.
A voz do índio foi ouvida no plenário da
Câmara e depois no Senado em duas sessões solenes realizada na última
quinta-feira (16) em homenagem ao Dia do Índio. Além de Marina Silva e de
parlamentares de diferentes partidos, ocuparam a tribuna Raoni, Aritana, David
Yanomami, Sonia Guajajara, Neguinho Truká, João Tapajós, Lindomar Terena e
outros. O presidente da Câmara, Eduardo Cunha, se pirulitou da sessão, que não
foi transmitida ao vivo pela TV Camara, como é de praxe.
Hoje, o que ecoa, de forma dominante, no plenário
do Congresso Nacional é a voz do ex-prefeito do Rio de Janeiro, Paulo de
Frontin (1860-1933), duas vezes senador e patrono da Engenharia Brasileira. Ele
foi nomeado pelo presidente da República para presidir as comemorações dos 400 anos do Brasil. No
dia 4 de maio de 1900, abriu a Sessão Magna do Quarto Centenário, com um
discurso inesquecível, que já citamos aqui em outras ocasiões, com a grafia da
época.
"O Brasil não é o índio. Descoberto em
1500 pela frota portugueza, o Brasil é a resultante directa da civilização
occidental, trazida pela immigração, que lenta, mas continuadamente, foi
povoando o sólo (...) Os selvícolas, esparsos, ainda abundam nas nossas
magestosas florestas e em nada differem dos seus ascendentes de 400 anos atrás;
não são nem podem ser considerados parte integrante da nossa nacionalidade; a
esta cabe assimilá-los e, não o conseguindo, eliminá-los”.
O espantoso é que essa não era a voz de um zé
mané qualquer. Era a voz de um político, que foi senador e prefeito da capital
da república. O alarmante é que ele não falou isso num bate-papo em um boteco,
mas num discurso oficial, em meu e em teu nome, para celebrar os 400 anos da
pátria. É isso que a PEC 215 quer fazer com os índios: assimilá-los e não
conseguindo, eliminá-los. Tudo isso, para abocanhar as terras indígenas. Resta
saber se o Brasil vai permanecer calado diante desse crime.
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