sexta-feira, 15 de maio de 2015

ACIMA DO BEM E DO MAL

Jorge Araken Filho


Tenho pena dessa gente pretensiosa, que se imagina acima do bem e do mal, que olha por cima, de nariz empinado, os que são diferentes.

Gente que julga, para não ser julgada, que fiscaliza os deslizes do outro, para não ver os seus, que se sente iluminada como o sol, mas não vê as próprias sombras.

Sábios empedernidos, em seus dogmas imutáveis, propagando verdades absolutas num mundo de relatividades. Falsos profetas, que proferem lições de moralidade que não seguem. Arautos da verdade, que não sabem as perguntas, e se acham no direito de nos ensinar as respostas.

Mal esfloraram os primeiros versículos da Bíblia, que devoram com ar de superioridade, e já se sentem com força de condenar ao purgatório as nossas almas pecadoras.

Acreditam na salvação pelo sofrimento e imaginam, depois de algumas penitências e orações, que as pessoas, mais cedo ou mais tarde, haverão de receber as recompensas e castigos que merecerem por suas ações!

Infelizmente, o mundo nem sempre é justo! Não estranhe se você for punido por suas maiores virtudes.

Nesse caldeirão de excitações onde se confrontam as exigências da realidade e as pulsões do id, onde a essência e a aparência entram em conflito, escolhemos viver a ilusão do bem e do mal, da culpa e do perdão: do bem, somos autores; do mal, vítimas.

Para suportar a triste realidade do corpo físico, acreditamos na salvação da alma! A felicidade eterna vem com a salvação, uma espécie de recompensa pelas virtudes que acreditamos ter ou que, na verdade, desejamos ter, ao menos na fantasia que projetamos para o mundo.

Queremos acreditar que as nossas ações, quando somos vítimas de uma injustiça, haverão de ser recompensadas pelo destino, e o nosso algoz haverá de ser punido por sua incúria, recebendo o merecido castigo.

Mas nem sempre acontecem coisas boas com pessoas boas, nem coisas ruins com pessoas más. Os bons também sofrem e os maus podem ser felizes.

Para a vida não ser monótona, prefiro não ser santo, nem demônio. Na verdade sou um pouco dos dois, meio Doctor Jekyll, meio Mister Hyde. Sou essa “metamorfose ambulante”, indefinível, meio louco, por vezes insensato, mas humano e contingente, cheio de falhas e desejos primitivos, segredos que nem às paredes confesso.

Na verdade, sou fruto do que li e do que vivi, sou filho dos meus sentimentos, medos, desejos, senso ético, herança genética, exemplos familiares e interações sociais, sejam essas experiências positivas ou negativas.

A crença em um mundo essencialmente justo, que pune os infiéis e ampara os bons moços, pobres moços (diria Lupicínio Rodrigues), protege-nos da sensação de desamparo e insegurança, fazendo-nos acreditar que o sofrimento não foi em vão. Acreditamos que a bondade, por si só, resolve todos os males e, no fim de tudo, justifica a nossa própria salvação.

Triste ilusão imaginar que os pecadores haverão de pagar por seus pecados e nós, bondosos e humanos, como as ovelhas de um rebanho, haveremos de ser salvos no juízo final.

Quando vestimos a máscara de vítima, atribuímos ao outro as nossas próprias culpas! É assim que agimos! É mais fácil buscar no outro a justificativa das nossas misérias do que olhar no espelho e ver as nossas sombras ali refletidas, inquietando o Narciso que habita o inconsciente, mas molda os nossos atos. Ver-se por dentro, exatamente como se é, pode ser uma experiência dolorosa, mas gratificante.

Sejamos honestos uma vez na vida (ninguém precisa saber), e admitamos que muitos desses males de que nos lamentamos podem ser causados por nossa própria culpa, por ação ou omissão nossas, e não por um acaso do destino! É difícil admitir isso, não é? É melhor posar de vítima...

A autocomiseração nos transforma em mártires, consolando-nos como vítimas da crueldade alheia, seres bondosos que expiam os “pecados” do mundo. E sempre com o dedo em riste...

Assumindo a posição de vítimas, e não de culpados, redimimos a nossa parcela do pecado e encontramos conforto na consciência. O grande dilema é que paralisamos a caminhada, trazendo uma estranha sensação de impotência e ansiedade, que acaba gerando melancolia. Deixamos de amadurecer e mudar a perspectiva do olhar.

Não podemos viver na ilusão de que as nossas misérias mais triviais só podem ter origem nas atitudes dos outros, nem pensar que todos são demônios a confirmarem a nossa santidade.

O nosso martírio não é um mal, nem pode ser debitado, apenas, na conta do outro. Pode representar, na verdade, a oportunidade para mudar os trilhos da existência, buscando a felicidade, e não culpados. Nem o outro é demônio, nem nós somos santos!

O maior risco, no entanto, é o de ficarmos indiferentes aos que sofrem e, ainda pior, indiferentes aos responsáveis pela desgraça alheia, acreditando que os caminhos da justiça, embora tortuosos, são mágicos e divinos, e acabarão por punir os culpados, trazendo a salvação para os justos.

Não espere que a punição dos ímpios aconteça por castigo divino, nem imagine que apenas os maus serão castigados.

Muitas vezes, os justos pagam pelos pecadores, e até percebemos a injustiça, mas acabamos indiferentes ao sofrimento alheio, imaginando, como desculpa para a nossa própria omissão, que as vítimas provocaram os seus algozes.

Não culpe a vítima por seu sofrimento, como o troglodita preconceituoso que atribui à mulher, por suas vestes, o desejo secreto de ser estuprada, ou ao traído, por não ser um malabarista na cama, o desejo de compartilhar o objeto do seu amor.

Não vivemos num mundo intrinsecamente justo: a vítima nem sempre será recompensada e o culpado nem sempre será punido.

Corrigir uma injustiça, muitas vezes, depende de nós! Por isso, não podemos permanecer indiferentes ao sofrimento do próximo, acreditando, ingenuamente, que o mundo será sempre justo, ao menos no juízo final.

Não espere que a justiça divina vá corrigir as transgressões humanas, nem que a tua bondade, necessariamente, haverá de ser recompensada.

Nem todos recebem o castigo e a recompensa que merecem e, muitas vezes, não merecem o castigo e a recompensa que recebem.

Olhe-se no espelho, antes de criticar ou atribuir culpas; depois, coloque-se como vítima, antes de se omitir!

Sábio não é conhecer o caminho, mas saber quando mudar!

O instinto de rebanho, que nos compele a seguir expectativas e opiniões que não compartilhamos, leva-nos a dissimular as nossas próprias verdades, escondendo o que somos e vivendo a felicidade no outro e pelo outro. Carentes de curtidas e de aceitação, só desejamos experimentar o prazer do pertencimento ao grupo da felicidade aparente e do consumo fácil.

É o teatro de máscaras, que nos revela o glamour de um mundo paralelo em que o sentimento de culpa e a sensação de infelicidade nos consomem, quando sentamos diante do espelho e limpamos a maquiagem. Mas raramente nos vemos além das ilusões que construímos sobre nós mesmos. Só vemos no espelho o personagem, e não o intérprete, a persona, e não o ator.

Precisamos celebrar a vida além do bem e do mal, vendo o mundo como ele se revela para nós, e não para o outro, percebendo-o na essência, e não apenas na aparência. Sem verdades divinas e absolutas, sem dogmas imutáveis, sem escravidão às expectativas do outro e sem barganhar a salvação, dissimulando uma santidade que nos aprisiona a valores que não são nossos, enfim, que revelam o abandono de nós mesmos.

O destino não é uma linha reta, nem uma flecha traiçoeira, que nos amarra a um alvo previamente traçado e imóvel, que descansa à nossa espera.

São as paralelas e curvas que tornam a vida misteriosa, mas fascinante.

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