Fátima Almeida
Parte 1
Amanhecia. Olhei em direção ao Sol que parecia
uma gema de ovo, de ovo como antigamente, vermelha e em sua volta a serração
tão branca que parecia claras em neve. Passei a infância ouvindo aquele batedor
manual feito de fios grossos de aço em espiral com cabo de madeira, na minha
casa e na casa de Tia Palmira, a segunda casa onde passava a maior parte do
tempo.
Raramente acordava tão cedo, só para
acompanhar meu pai que, muito cedo, ressoando o chiado da sola do seu sapato no
chão de tábuas lisas, dava sinais de que iria ao mercado antes de sair para o
trabalho. Todos os dias era preciso ir ao mercado comprar a carne e as
verduras.
Nesta manhã eu tinha um encontro com a
Ivanilde, amiga de colégio, e sua mãe que iriam para o Catuaba. Eu nunca tinha
ido a um seringal, e só ouvia histórias contadas pelas filhas do Aprígio
Barros, que pareciam ter seus pensamentos sempre voltados para o Piratini e
para o Bagaço, seringais da família.
A viagem, descendo junto com a correnteza num
barco com motor de popa, não demorou muito, talvez uma hora e meia, duas horas.
Então adentramos a casa que deveria ter sido do gerente, pois o barracão e a
sede, conforme ouvia falar que existiam nos seringais, não existiam mais. E ali
passamos alguns dias. Aprendi a manejar um remo e foi a atividade que eu mais
gostei, passava o tempo atravessando o rio, pois era verão. Gostava de manejar
o remo como um freio, fazendo a montaria, como todos chamavam aquelas canoas
esculpidas em troncos de árvores, revolutear e girar em qualquer direção que
quisesse. Mas não adentrei nas matas, nem mesmo conheci as estradas de seringa,
porque elas não existiam ainda, para mim, como informação. Isso só passou a
fazer parte do meu conhecimento muito depois. Particularmente gostei de dormir
em rede, as noites eram frescas. Não lembro mais o que comemos, pois naquele
tempo não tinha essa coisa de reportar tudo e, por isso, anotar tudo, na mente.
Devemos ter comido galinhas, pacas, carne de porco talvez.
Estive num seringal, já nesse período em que
estavam inertes, ou seja, sem mais a movimentação da empresa extrativista,
apenas duas vezes. Acredito que muitas, entre as pessoas que residiam em Rio
Branco, nunca estiveram num seringal sequer uma vez.
De modo que vivi em meio ao movimento
comercial. Desde cedo era forçada a ler nomes em árabe, conforme as tabuletas
que ficavam penduradas no meio das marquises das lojas, por pequenas correntes,
que balançavam quando ventava muito, fosse por causa de uma chuva eminente ou
de uma friagem que aportava. Algumas lojas, porém não tinham tabuletas, porque
não tinham marquise, claro. A do Seu
Omar Sakur, do Abdon Abud e outras.
Mas o odor da borracha era inconfundível
reaparecendo, todos os anos, nos meses de dezembro e janeiro quando as chuvas
eram torrenciais e o nível do rio atingia vários metros, parecendo um bicho
muito gordo que ficava lambendo os beirais dos barrancos, muito altos no verão,
por onde subíamos e descíamos, fosse para ir pescar sardinhas, fosse para
tomarmos banho de rio. Nesse período também chegavam os navios oriundos de
Belém com mercadorias de todo tipo, tais como sal, açúcar, camarões, manteiga e
banha em latas bem grandes, biscoitos e bolachas em latas também enormes, como
ainda, o querosene, muito utilizado, lampiões, candeeiros, cuias para se tomar
tacacá, refrigerantes, cebolas, batatas, bebidas em geral, e, sobretudo, comidas
enlatadas, os petit pois. Das bebidas, Quinado, Uísque, cerveja Antártica,
Cinzano, cachaça Cocal. E também chegavam as latas grandes e redondas com os
filmes que ficavam em cartaz, nos dois cinemas, por um a dois meses.
Sempre que víamos um homem encurvado e pobre,
com roupas que não podíamos discernir, de tão usadas, sapatos rústicos feitos
em casa, de látex, nem precisávamos falar, era um seringueiro. Mas não tínhamos
comunicação com esses tipos que, em geral, eram vistos como seres
inferiorizados. Mesmo porque eles andavam nos beirais daquela agitação
proto-urbana, esgueirando-se, ocultando sob seus sacos que seguravam com uma
das mãos rente às costas. Quanto aos demais trabalhadores, não, tínhamos
comunicação, até afetiva, pela convivência, como era o caso dos estivadores, carregadores,
barbeiros, alfaiates, costureiras, sapateiros, tratados com o mesmo respeito
com o qual se tratava os turcos donos das lojas comerciais, os homens mais
poderosos do lugar.
Mas o principal foco para onde todos se concentravam,
era a escola, porque nela nos projetávamos. As nossas notas eram nosso
passaporte para o futuro, e isso era muito claro em nossas consciências. No
nosso caso, moradores do Segundo distrito, da capital Rio Branco, aquela escola
que ainda existe, aquela da Rua 24 de janeiro. Aliás, esse lado do rio foi o
mais proeminente durante todo esse tempo em que não existiam rodovias que
ligassem o nosso Estado ao resto do país. Nesse lado, foi onde tudo teve seu
início, prefeitura, delegacia, receita federal. E por isso, as sua três ruas
principais eram alusões as datas históricas do processo de tomada desse
território que pertencia à Bolívia, desde quando ela mesma fazia parte do
império colonial espanhol. A Rua 6 de agosto, em cuja primeira casa, elegante,
morava Mário de Oliveira, logo em frente a do farmacêutico Seu Lopes,
português, em seguida, o velho Mamed,
que possuía um prédio de madeira onde várias famílias moravam de aluguel em
seus apartamentos, o Centro Espírita do Seu Chiquinho, a casa da professora
Marieta, mulher do Arigó, Dona Alzira Jansen, seu Jorge Fecury, a família Zeque
que possuía uma loja de móveis muito chiques, e vendia as novidades, como os
primeiros brinquedos movidos a pilha, Seu Borges, e outros que não lembro
agora. A Rua 17 de Novembro, data da
assinatura do Tratado de Petrópolis, era a rua do comércio e a 24 de Janeiro,
término da batalha contra o exército boliviano, já citada, onde residiam as
famílias do Seu Edson Martins e do Vavá, empresário nesse ramos de exportações,
da Dona Ida, do Tufic Assmar, da Dona Estelita Pimentel, enfermeira de mão
cheia, além da escola, sendo que na maior parte dessa rua ficavam os fundos das
lojas das rua da frente, a do comércio, já citada.
Foto: infojur.ufsc.br
No oitavo parágrafo, na sétima linha deveria ter uma vírgulas após "não".
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