A palavra TARAUACÁ vem do povo indígena Kaxinawá
(Kaxi=morcego, Nawá=povo, portanto, povo do morcego), falantes da língua Pano
(Pano=o grande tatu), e que se autodenominam Huni-kuĩ, isto é, os “verdadeiros homens”,
que falam o Rã-txa, a “língua verdadeira”. TARAUACÁ, a escrita original seria
TARÁWAKÁ (tará=tronco de árvore, waká=rio). Por isso Tarauacá, “rio das
tronqueiras”.
quinta-feira, 27 de agosto de 2015
segunda-feira, 24 de agosto de 2015
A BRABEZA DO BRABO
(*) José de Anchieta Batista
Desde os seis ou sete anos de idade, passou a
ser chamado pelo apelido de Brabo.
No primeiro dia de escola, toda a meninada
encontrou nele, imediatamente, muitos motivos para gozações. Parecia um boneco
de brinquedo. Tinha metade da estatura dos outros, era exageradamente franzino
e sua cabeça parecia a de um macaquinho. Com aquele jeito esquisito, seu
primeiro apelido foi “monstrinho”, mas diante de suas reações agressivas, os
colegas adicionaram outro apelido que veio a predominar definitivamente: Brabo.
É que ele saía no braço com meio mundo. Fosse quem fosse. Tivesse o tamanho que
tivesse. Havia, contudo, uma infinita desvantagem nisso. Não vencia um só dos
embates. Na maioria das vezes, no auge da brabeza, os garotos erguiam-no do
chão, sem qualquer esforço, e ele ficava balançando no ar as duas perninhas,
sem alcançar coisa alguma. Depois ia ele se sentar, amuado, chorando e
xingando, lá pelos recantos.
Os dias se passaram, consagrou-se realmente
como Brabo e, até hoje, por volta dos cinquenta anos, quase ninguém sabe seu
verdadeiro nome. No transcorrer de todas essas décadas, certamente cansou-se de
reagir ao apelido e se tornou tão natural ser chamado assim, que a brabeza do
Brabo, para reagir a isso, sumiu. Se o chamarem por seu nome de batismo, que
também não sei qual é, com certeza não atenderá.
O lado bom de tudo isso é que, apesar do
apelido, o Brabo se fez um cidadão pacato, absolutamente avesso à violência.
Por outro lado, o garotinho briguento dos tempos de escola não conseguiu mudar
sua compleição física. Continuou um magricela, um pedaço de gente, com estatura
inferior a um metro e meio.
Há algum tempo, nosso personagem resolveu
montar um bar a que deu o nome de “Bar Paz e Amor”. Num pequeno salão de duas
portas, instalou prateleiras e balcão, comprou geladeira, sinuca, mesas,
cadeiras e adquiriu utensílios para servir tira-gostos. Ele atende lá na frente
e sua mulher cuida dos afazeres da cozinha. A todos ele faz questão de dizer
que o ambiente é familiar, em contradição com as atitudes das figuras femininas
que lá frequentam. O negócio tem andado de vento em popa, mas o Brabo, vez por
outra, tem que apelar para a polícia vir restabelecer a ordem, em decorrência
de algum arranca-rabo.
Certo dia, o tempo fechou lá no bar do Brabo
e a urgência foi atendida por uma guarnição da Companhia de Operações
Especiais, conhecida popularmente como COE, cujos componentes passam por uma
seleção rigorosíssima, como se estivessem procurando lutadores de vale-tudo. Só
pode fazer parte da corporação quem tiver corpo agigantado e muita disposição
na hora do quebra-pau. Vestem farda preta, são de pouca conversa e, dependendo
da valentia do abordado, deixam o sujeito moído de peia.
A guarnição atendeu com presteza ao chamado,
mas um fato pouco comum aconteceu. Ao entrar no bar, um daqueles gigantes de
dois metros de altura e massa corpórea de um mamute, foi logo fazendo a
pergunta de praxe:
- Quem é o brabo daqui?
- Sou eu! – respondeu firmemente o pobrezinho
do Brabo, caminhando em direção ao soldado.
Por infeliz coincidência, empunhava um pedaço
de taco de sinuca que alguém houvera quebrado na hora da confusão e que ele
acabara de apanhar do chão para jogar no lixo. O brutamontes não quis papo.
Sentiu-se ameaçado e desceu-lhe a mão aberta no tronco da orelha. O pobre do
Brabo foi estatelar-se a uns oito metros de distância, completamente
nocauteado, lá no meio da rua.
- Comigo, brabeza é na porrada! Mais algum
brabo por aqui? - arrematou desafiante o policial.
Quem era doido de responder? Alguns
presentes, porém, com muito jeito, apressaram-se em desfazer o lamentável
equívoco e correram para acudir o coitado do Brabo que, totalmente zonzo,
procurava identificar em que mundo se encontrava.
Desfeito o tumulto, verificou-se que os baderneiros responsáveis pela confusão já estavam muito longe e o comandante da patrulha entabulava, comovido e prestimoso, um insistente pedido de desculpas pela violenta trapalhada.
Desfeito o tumulto, verificou-se que os baderneiros responsáveis pela confusão já estavam muito longe e o comandante da patrulha entabulava, comovido e prestimoso, um insistente pedido de desculpas pela violenta trapalhada.
Vida afora, o Brabo se fez manso, mas
infelizmente continua a carregar e a sofrer o peso da falsa brabeza de seu
apelido.
http://blogdoanchieta.blogspot.com.br/ |
(*) Escritor, poeta, passageiro do
tempo... e não sei mais o quê.
quinta-feira, 20 de agosto de 2015
PARA QUÊ?!
Florbela Espanca (1894-1930)
Tudo é vaidade neste mundo vão...
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
Tudo é tristeza; tudo é pó, é nada!
E mal desponta em nós a madrugada,
Vem logo a noite encher o coração!
Até o amor nos mente, essa canção
Que o nosso peito ri à gargalhada,
Flor que é nascida e logo desfolhada,
Pétalas que se pisam pelo chão! ...
Beijos d’amor! Pra quê?!... Tristes vaidades!
Sonhos que logo são realidades,
Que nos deixam a alma como morta!
Só acredita neles quem é louca!
Beijos d’amor que vão de boca em boca,
Como pobres que vão de porta em porta!...
ESPANCA, Florbela. Poemas de Florbela
Espanca. Estudo introdutório, organização e notas de Maria Lúcia Dal Farra. São
Paulo: Martins Fontes, 1996. p.154
terça-feira, 18 de agosto de 2015
NÃO SEJA SURPREENDIDO, O EL NIÑO ‘GODZILA’ VEM AÍ
Evandro Ferreira
Pesquisadores do Centro de Previsão Climática
do Serviço Atmosférico e Oceanográfico do Governo Americano (NOAA) estão
alertando que o aquecimento anormal da superfície marinha na região leste do
Oceano Pacífico indica que entre 2015 e 2016 poderemos enfrentar um dos mais
severos “El Niño” da história, com a temperatura superficial do mar igualando
ou superando níveis registrados apenas três vezes nos últimos 65 anos.
El Niño é um fenômeno climático que aparece
em intervalos que variam entre dois e sete anos, durante o qual a água aquecida
normalmente confinada na parte Oeste do Oceano Pacífico pela força dos ventos
alísios - que sopram na direção Leste-Oeste - se move em direção ao continente
Sul-Americano em razão da diminuição da força desses ventos ou mesmo pela
reversão em sua direção. O fenômeno do El Niño atinge uma ampla área na região
intertropical do oceano Pacífico, onde a água é mais quente e ocorre parte
considerável da evaporação no planeta. Por isso seu alcance é global e seus
impactos climáticos e socioeconômicos enormes.
De acordo com as previsões do NOAA, o El Niño
desse ano será mais severo do que o de 1997, considerado o mais intenso já
registrado e que foi responsável pela morte de mais de 20 mil pessoas e
prejuízos globais estimados em cerca de U$ 45 bilhões. Para o El Niño de 2015
os pesquisadores calculam que existe uma possibilidade maior que 90% de seus
efeitos continuarem intensos durante o inverno de 2015-2016 no hemisfério
norte, podendo durar até a primavera de 2016. Nas palavras do Pesquisador Bill
Patzert, climatologista do Laboratório de Propulsão a Jato da NASA, o evento
que se avizinha deverá ser tão severo que pode perfeitamente ser chamado de El
Niño ‘Godzila’.
A adoção, pelos pesquisadores e pela imprensa
de uma maneira geral, da denominação ‘El Niño’ para esse fenômeno climático
deriva do conhecimento empírico de pescadores peruanos, que há mais de 200 anos
observam que em alguns anos, por volta do período natalino, as águas frias e
com pescado farto que banham a costa do Peru são substituídas por águas mais
quentes que afugentam os cardumes de atum e outros peixes. A coincidência com o
período de Natal levou os pescadores a chamar o fenômeno de ‘El Niño’, numa
alusão direta ao menino Jesus. Por muitos anos se pensou que o fenômeno era
apenas local e a história se transformou em uma espécie de patrimônio
folclórico da região. Somente na década de 50 é que se descobriu que as águas
aquecidas que ocasionalmente chegam à costa peruana em período natalino
integram um distúrbio climático de caráter global.
Durante o El Niño, a água aquecida que chega
à costa Sul-Americana pode alterar os padrões de circulação na atmosfera do
planeta e sua evaporação provoca chuvas em regiões normalmente secas na costa
do Chile e Peru, se estendendo até a costa oeste dos Estados Unidos. A mudança
na direção do vento e o deslocamento da massa de água quente na direção da
América do Sul, por outro lado, faz com que as chuvas de monções precipitem no
Oceano Pacífico, bem antes de atingir extensas áreas continentais no Sudeste
Asiático e na Austrália. Com isso, em anos de El Niño intensos o período
chuvoso naquelas regiões se torna extremamente seco, com graves efeitos
socioeconômicos e ecológicos.
No Brasil, a ocorrência do fenômeno El Niño
geralmente provoca invernos com temperaturas mais amenas e verões mais quentes
no Sudeste, verões extremamente chuvosos no Sul, secas ainda mais extremas no
Nordeste, e secas prolongadas no norte da Amazônica.
Durante o El Niño ocorrido entre 1982 e 1983
aconteceram cheias históricas em Santa Catarina que desabrigaram quase 200 mil
pessoas, causando a morte de pelo menos 50 delas, e resultaram em prejuízos
estimados em mais de R$ 12 bilhões. Em Roraima, os efeitos do El Niño de 1997
foram catastróficos. Em Boa Vista choveu apenas 30,6 mm entre setembro de 1997
e março de 1998, ou seja, pouco mais de 8% do total que normalmente chovia no
período (352 mm). Incêndios ocorridos entre o final de 1997 e o início de 1998
destruíram cerca de 40 mil km² de vegetação nativa, das quais cerca de 14 mil
km² eram florestas primárias. Alguns focos de incêndios ficaram fora de
controle e duraram meses. Para dar uma melhor dimensão do desastre, é como se
25% de todo o território acreano queimasse ao longo de um único período de
verão Amazônico.
Dados climáticos no Brasil apoiam a previsão
de um El Niño de grande severidade em 2015. Segundo o Instituto Nacional de
Meteorologia (Inmet), o inverno em São Paulo tem sido ameno, com a média das
temperaturas mínima e máxima cerca de 2°C e 0,8°C, respectivamente, mais
elevadas que em outros anos. Para Florianópolis, em Santa Catarina, dados do
INPE indicam que existe uma probabilidade de 40% dos níveis de chuva no
trimestre entre agosto e outubro superarem os 700 mm, quando o normal situa-se
entre 300 e 500 mm. Para o Nordeste, que já enfrenta uma forte estiagem há três
anos, o site climatológico americano Accu Weather prevê que o nível de
precipitação tende a continuar caindo abaixo da média. A notícia é preocupante
porque na atualidade os níveis dos reservatórios de água da região estão em
cerca de 21%. Na Paraíba, de 124 reservatórios monitorados, 74 estavam com
menos de 20% da capacidade e 40 tinham atingido o nível crítico (menos de 5%)
em junho passado.
E o Acre? Será que esse El Niño ‘Godzila’
causará efeitos catastróficos por aqui?
Provavelmente não. Segundo o pesquisador
Carlos Nobre, do Instituto de Pesquisas Espaciais (INPE), as secas na Amazônia
se manifestam de duas formas. A primeira, que corresponde ao fenômeno observado
no Acre em 2005, é mais rara e decorre do aquecimento da água no Oceano
Atlântico ao norte do Equador. Este aquecimento produz alterações na circulação
atmosférica dos ventos alísios que transportam a umidade que se forma sobre o
mar para o interior da Amazônia. Quando isso acontece, o efeito dessa falta de
transporte de umidade se traduz em seca severa no oeste e sudoeste da região,
ou seja, no oeste do Amazonas, no Acre e em Rondônia. A segunda é resultante de
perturbações climáticas causadas pelo fenômeno El Niño e provoca seca mais
acentuada apenas no norte e leste da Amazônia, ou seja, em Roraima, norte do
Amazonas, Amapá e norte do Pará.
Diante disso devemos nos tranquilizar não é
mesmo? A resposta é não. Com o clima extremo em que vivemos na atualidade,
preparar e planejar medidas para mitigar os efeitos socioeconômicos e
ecológicos que ele tem causado é a melhor opção.
É confortante saber que a massificação do
acesso à informação, incluindo aquela de caráter técnico-científico, permite a
uma parcela considerável de nossa população e administradores, saber com
antecedência os possíveis efeitos de fenômenos climáticos em gestação como esse
El Niño ‘Godzila’ que se avizinha. Por isso acredito ser inaceitável a
possibilidade de, daqui a alguns meses, ver noticiado na imprensa a ocorrência
de catástrofes - com graves perdas de vidas humanas e prejuízos econômicos - em
regiões nas quais o El Niño infalivelmente costuma deixar seu legado de
destruição.
Para saber mais:
Algar, J. 2015. 'Godzilla' El Niño Brewing In The Pacific Could Be One Of The Strongest
On Record, Forecasters Warn. Tech Times, New York [Online], 14 agosto 2015.
Disponível em:
http://www.techtimes.com/articles/76546/20150814/godzilla-el-ni%C3%B1o-brewing-in-the-pacific-could-be-one-of-the-strongest-on-record-forecasters-warn.htm
Barbosa, R.I. & Fearnside, P. 2000. As
lições do fogo. Ciência Hoje, 157: 35-39. Disponível em:
https://www.academia.edu/1188684/As_li%C3%A7%C3%B5es_do_fogo
Junges, L. 2010. As maiores inundações e
enchentes no Brasil e em Santa Catarina. ANotícia, Joinvile [Online], 08 abril
2010. Disponível em: http://wp.clicrbs.com.br/anverde/2010/04/08/as-maiores-inundacoes-e-enchentes-no-brasil-e-em-santa-catarina/?topo=84,2,18,,,84&status=encerrado
Nobre, C.A. 2011. Por trás da seca na
Amazônia. Le Monde Diplomatique Brasil, São Pulo [Online], 03 janeiro 2011.
Disponível em: http://www.diplomatique.org.br/artigo.php?id=847
Schiesti, S. 2013. Enchente em Santa
Catarina: tragédia no Estado completa 30 anos. Notícias do Dia, Florianópolis
[Online], 07 julho 2013. Disponível em:
http://ndonline.com.br/florianopolis/noticias/84641-enchente-de-1983-tragedia-natural-em-santa-catarina.html
segunda-feira, 17 de agosto de 2015
GRITOS E LAMENTOS
Jorge Araken Filho
Quero te encontrar nos teus desvios e
atalhos, nos vãos e reentrâncias dos teus desencontros, nas palavras que não
disseste, nos enganos e desenganos da tua existência humanamente medíocre, no
reflexo do teu Narciso, no eco das tuas dores surdas.
Mas não me tome por um louco enamorado do teu
vulto de fantasma: não vou devolver teus lamentos e rancores, não vou ecoar teu
grito de agonia. Vou transformá-los em leves sussurros, que o tempo haverá de
dissipar.
*Texto retirado da página do autor:
EGOCENTRISMO
Raul de Leoni (1895-1926)
Sobre o destino humano, que flutua,
Ouve e medita bem, mas continua
Com a mesma alma liberta e distraída!
Interpreta a existência com a medida
Do teu ser! (a verdade é uma obra tua!)
Porque em cada alma o Mundo se insinua,
Numa nova Ilusão desconhecida.
Vai pelos próprios passos, num assomo
De quem procura por si próprio o fundo
Da eterna sensação que as cousas têm!
Existe, em suma, por ti mesmo, como
Se antes da tua sombra sobre o Mundo
Não houvera existido mais ninguém!...
LEONI, Raul de. Melhores poemas. Seleção
Pedro Lyra. São Paulo: Global, 2002. p.89
sábado, 15 de agosto de 2015
TENREIRO ARANHA
Rogel Samuel
Poucos poetas foram tão misteriosos,
inusitadamente famosos como ele. Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, prosador
e poeta, nasceu e faleceu no Amazonas (1769-1811). Era um poeta leve, arcádico,
que veio a ser publicado na leva daqueles momentos de patriotismo do Século
Dezenove, em 1850 por seu filho, João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o
primeiro Governador da Capitania do Rio Negro.
Ele nasceu em Barcelos, cidade antiga,
primeira capital da antiga Capitania do Rio Negro (posteriormente Amazonas).
Seu famoso “Soneto à parda Maria Bárbara, mulher de um soldado, cruelmente
assassinada, porque preferiu a morte à mancha de adúltera”, entretanto, sempre
nos surpreende pelo inusitado do assunto popular. Não se trata de um poema a
alguma alta e bela dama da corte, ou ao Governador do Estado do Pará, ou a algum
ilustre e poderoso fidalgo.
Mas a uma “parda”, ou seja, a uma Maria Bárbara,
mulher de soldado.
Aquilo não era coisa muito comum. O interesse
pelo povo humilde, mesmo depois de uma tragédia, na época, não era tema de
literatura.
O famoso soneto do primeiro artista
autenticamente amazonense é esse:
Se acaso aqui topares, caminhante,
Meu frio corpo já cadáver feito,
Leva piedoso com sentido aspeito
Esta nova ao esposo aflito, errante...
Diz-lhe como de ferro penetrante
Me viste por fiel cravado o peito,
Lacerado, insepulto, e já sujeito
O tronco feio ao corvo altivolante:
Que dum monstro inumano, lhe declara,
A mão cruel me trata desta sorte;
Porém que alívio busque a dor amara
Lembrando-se que teve uma consorte,
Que, por honrada fé que lhe jurara,
À mancha conjugal prefere a morte.
Ora, quem fala é a vítima, já cadáver feita.
Quem fala é o cadáver de u’a mulher, outra novidade. Não um belo corpo bem
tratado, empoado, de cortesã viçosa, mas o putrefato cadáver de alguém, pardo,
na beira da estrada, corpo já frio, corpo de crioula ou de cafuza morta, corpo
morto.
O cadáver tem um recado a dar. Um recado, uma
nova, uma notícia dela para o esposo aflito, que, se aflito não a sabe morta.
“Leva piedoso”, significa, “por favor, por piedade, diz para meu marido que
morri”.
Sim, o poeta está interessado na sorte da
“mulher de soldado”, morta, parda, insepulta. Talvez estuprada.
Ela já diz que preferiu a morte à “mancha
conjugal”. Quer que o esposo busque nisso o alívio à dor amara.
Hoje, Tenreiro Aranha é rua de Copacabana,
rua sem saída, que começa na Siqueira Campos. Ex-Travessa Trianon.
Em outro soneto, canta o poeta:
Passarinho que logras docemente
Os
prazeres da amável inocência,
Livre
de que a culpada consciência
Te
aflija, como aflige ao delinquente;
Fácil
sustento e sempre mui decente
Vestido te fornece a Providência;
Sem
futuros prever, tua existência
É
feliz limitando-se ao presente.
Não
assim, ai de mim! Porque sofrendo
A
fome, a sede, o frio, a enfermidade
Sinto
também do crime o peso horrendo...
Dos
homens me rodeia a iniquidade
A
calúnia me oprime, e, ao fim tremendo
Me
assusta uma espantosa eternidade.
Note-se que há dois Aranhas: Além do poeta,
que se chamava Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha, existe seu filho, João
Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha, o primeiro Governador da Capitania do
Rio Negro, em 1850. É quando se constrói a Catedral, que não é bela, mas
imponente. Dizem que foi construída com trabalho escravo indígena. Nesta época
Manaus se torna centro político. Começa o comércio da borracha e piaçava.
O poeta cedo ficou órfão. Seu tutor o colocou
na lavoura, junto com os escravos. Com doze anos inicia estudos com um vigário.
Interno no Convento de S. Antônio de Belém. Os bens familiares do menino foram
“confiscados”, literalmente pelo Fisco. Devem ter sido roubados. Já adulto, foi
nomeado para um cargo público, foi demitido por intrigas políticas. Depois, o
Conde dos Arcos, Governador do Grão Pará, o faz Escrivão. Dizem que o poeta era
um erudito, tinha sólida cultura, e sabia grego. Traduziu Odes de Píndaro.
O segundo soneto louva a “inocência”, logra
docemente os prazeres da amável inocência, “livre de que a culpada consciência
/ Te aflija, como aflige ao delinquente”. É obra leve, bela, clássica. O tema,
bem ao gosto do Renascimento: “Sem futuros prever, tua existência / É feliz
limitando-se ao presente”. Mas o ambiente é arcádico. Não é amazônico. Nada
mais agressivo do que a Floresta Amazônica, com seus espinhos, insetos,
aranhas, escorpiões, formigas venenosas, serpentes e pântanos. Não, não se tem
ali “Os prazeres da amável inocência”. Nem o “Fácil sustento e sempre mui
decente”. Não, isso não é amazônico.
Texto publicado na página do autor:
http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/
Texto publicado na página do autor:
http://literaturarogelsamuel.blogspot.com/
sexta-feira, 14 de agosto de 2015
SILÊNCIO E PALAVRA
Thiago de Mello
I
e esconde aquilo que somos.
Que importa falarmos tanto?
Apenas repetiremos.
Ademais, nem são palavras.
Sons vazios de mensagem,
são como a fria mortalha
do cotidiano morto.
Como pássaros cansados,
que não encontraram pouso
certamente tombarão.
Muitos verões se sucedem:
o tempo madura os frutos,
branqueia nossos cabelos.
Mas o homem noturno espera
a aurora da nossa boca.
II
Se mãos estranhas romperem
a veste que nos esconde,
acharão uma verdade
em forma não revelável.
(E os homens têm olhos sujos,
não podem ver através.)
Mas um dia chegará
em que a oferenda dos deuses,
dada em forma de silêncio,
em palavra transfaremos.
E se porventura a dermos
ao mundo, tal como a flor
que se oferta – humilde e pura –,
teremos então cumprido
a missão que é dada ao poeta.
E como são onda e mar,
seremos palavra e homem.
MELLO, Thiago de. Vento geral (1951-1981).
Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1984. p.29-31
domingo, 2 de agosto de 2015
PEQUENA CONDIÇÃO HUMANA
Mário Chamie
Quando cortaram
o tentáculo
do mal,
não fez sentido
o bem caído.
Quando cortaram
os testículos
do bem,
o mal se pôs
erguido
em seu estrito
sentido.
CHAMIE, Mário. Caravana contrária. São Paulo: Geração Editoria, 1998. p. 74