Evandro Ferreira
Nestas últimas semanas o debate sobre o uso
da substância fosfoetanolamina sintética em tratamentos de câncer foi intenso
nos sites de notícias e nas mídias sociais. E a polêmica aumentou desde que o
Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu, no dia 08/10, decisão do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJ-SP) que impedia o fornecimento da substância produzida
pelo Instituto de Química da Universidade de São Paulo (USP), em Rio Claro,
para uma paciente com câncer do Rio de Janeiro.
Mas qual a razão para tanta discussão e
debate? Que milagres contra o câncer a fosfoetanolamina sintética pode operar?
Quem se detém nas notas generalistas dos
sites de notícias e em postagens inflamadas nas mídias sociais tem a impressão
que a substância é ‘tiro certo’ para a cura do câncer. E vou além. Postagens
nas mídias sociais conseguiram transformar os responsáveis pela produção da
fosfoetanolamina na USP em quase ‘heróis nacionais’. Segundo alguns, os
pesquisadores brasileiros são ‘cientistas tupiniquins que lutam bravamente contra
a manipulação de multinacionais que querem, a todo custo, impedir a produção da
substância milagrosa’. Tem até quem afirme que ela, a fosfoetanolamina, foi
invenção desses ‘Dom Quixotes’ brasileiros.
O primeiro aspecto que contribuiu para a
grande visibilidade adquirida pela fosfoetanolamina foi, obviamente, o seu
potencial de uso contra o câncer, uma doença com alta taxa de mortalidade que
não discrimina sexo, idade e classe social e que afeta anualmente
aproximadamente 14 milhões de pessoas no mundo, causando, direta ou
indiretamente, a morte de mais de 8 milhões delas. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), nos próximos 20 anos espera-se que o número de casos anuais da
doença aumente 70%, para mais de 23 milhões.
Apesar de ser uma doença antiga, reportada
desde 2500 anos antes de Cristo, e dos avanços fabulosos da medicina nas
últimas décadas, a busca da cura para a maioria dos tipos de câncer não
produziu resultados tão espetaculares como nos casos de numerosas doenças
infecciosas como a AIDS, tuberculose, poliomielite, meningite e malária. Por
isso, novidades no tratamento da mesma tem a capacidade de atrair tanta
atenção.
No caso da fosfoetanolamina sintética, um
fator contribui sobremaneira para a sua popularidade: a divulgação irresponsável
de que a mesma pode aliviar, fazer rescindir ou mesmo curar alguns tipos de
câncer em humanos sem que testes clínicos rigorosos tenham sido realizados.
A substância não é nova para a ciência e foi
isolada pela primeira vez há quase 80 anos (1936). Desde então centenas de
estudos já foram realizados e se descobriu, entre outros aspectos, que ela está
relacionada com a ocorrência de convulsões epiléticas e Alzheimer. Em sua forma
orgânica foi verificado que apresentava concentração 10 vezes acima do normal
em tumores, levantando-se a hipótese de um possível papel na defesa celular.
Diante do seu potencial, um grupo de
pesquisadores da USP, liderados pelo químico Gilberto Chierice, conseguiu
sintetizar a fosfoetanolamina em laboratório e resolveu testar a mesma em
células cancerígenas. Os ensaios efetuados até agora foram in vitro e in vivo.
No primeiro, células cancerosas são tratadas em garrafas de vidro ou plástico e
no segundo os estudos são feitos em animais vivos (in vivo). Neste caso tumores
humanos são colocados em ratos e a substância é aplicada para avaliar o
potencial de reduzir os tumores sem ser tóxica a ponto de causar a morte dos
animais.
Os resultados alcançados na USP foram
promissores. A fosfoetanolamina se mostrou eficaz contra o melanoma, câncer de
mama, leucemia e como inibidor da metástase de alguns tipos de câncer.
Entretanto, o fato de uma substância ser capaz de matar células cancerosas in
vitro ou em animais de laboratório não é o suficiente para que possa ser
considerada eficaz em humanos. A água sanitária, por exemplo, pode matar
células cancerosas, mas sua injeção no corpo humano tem o poder de matar o seu
receptor. Por isso, depois das fases experimentais in vitro e in vivo em
animais de laboratório, é indispensável realizar testes clínicos em humanos
para conhecer sua eficácia e toxicidade.
Anualmente dezenas de substâncias promissoras
contra o câncer são testadas em condições de laboratório, muitas delas mais
promissoras que a fosfoetanolamina. Entretanto, em média apenas uma de cada 25
substâncias promissoras mostram-se eficientes no tratamento do câncer em
humanos.
A fosfoetanolamina sintética estudada pelos
pesquisadores da USP nunca chegou a ser testada em humanos e está sendo
distribuída de forma irresponsável– já faz alguns anos – para ‘voluntários’ que
se apresentam na porta do laboratório de química que o produz. Esta situação é
uma aberração ética e científica indescritível para a qual cabe perfeitamente a
abertura de investigação policial por charlatanismo.
A situação, entretanto, ganhou notoriedade
apenas quando a USP proibiu a distribuição do ‘remédio’. Pessoas desesperadas
apelaram para a justiça e, acreditem ou não, nossa maior instância judicial, o
STF, ‘liberou’ para a população uma substância que sequer pode ser chamada de
remédio, pois nem licença de venda possui.
Isso foi suficiente para a imprensa
investigar o caso. Questionado, o professor Gilberto Chierice fez declarações
que só pioraram a situação, afirmando à revista ÉPOCA que achava que a
fosfoetanolamina ‘é uma cura para o câncer’. Ao portal de notícias G1 ele declarou
que o ‘remédio’ ainda não chegou ao mercado por ‘má vontade’ das autoridades e
afirmou, laconicamente que ‘se não for possível aqui – a produção da forma
medicinal da fosfoetanolamina – a melhor coisa é outro país fazer porque
beneficiar pessoas não é por bandeira. A humanidade precisa de alguém que faça
alguma coisa para curar os seus males’.
Alguém discorda disso? Eu não. Mas confesso
que não consigo entender porque, com uma substância tão promissora, o professor
e seus colegas da USP não formam uma equipe multidisciplinar para realizar os
testes clínicos e desenvolver o produto no Brasil. Um médico pesquisador
brasileiro se propôs a ajuda-lo e foi, discretamente, recusado. Afinal o que
ele quer fazer? Quer ir avante e desenvolver o remédio ou não?
Tinha que ser no Brasil! Um enredo tão
promissor para contar de forma gloriosa os passos de um avanço científico
grandioso para a ciência brasileira corre o risco de se transformar em um
enredo para descrever o drama de um fracasso.
Para saber mais:
Ferreira, A. K.; Santana-Lemos, B. A. A.;
Rego, E. M.; Filho, O. M. R.; Chierice, G. O.; Maria, D. A. Synthetic phosphoethanolamine has in vitro and in vivo anti-leukemia effects. British Journal Of Cancer, v. 109, n. 11, p. 2819-2828, nov 26 2013.
Ferreira, A. K.; Meneguelo, R.; Pereira, A.; Filho, O. M. R.; Chierice,
G. O.; Maria, D. A. Synthetic phosphoethanolamine induces cell cycle arrest andapoptosis in human breast cancer MCF-7 cells through the mitochondrial pathway.Biomedicine & Pharmacotherapy, v. 67, n. 6, p. 481-487, jul 2013.
Ferreira, A. K.; Freitas, Vanessa M.; Levy, D.; Maria Ruiz, J. L.;
Bydlowski, S. P.; Grassi Rici, R. E.; Filho, O. M. R.; Chierice, G. O.; Maria,
D. A. Anti-Angiogenic and Anti-Metastatic Activity of Synthetic Phosphoethanolamine.
PLoS
One, v. 8, n. 3 mar 14 2013.
Ferreira, A. K.; Meneguelo, R.; Navarro Marques, F. L.; Radin,
A.; Filho, O. M. R.; Claro Neto, S.; Chierice, G. O.; Maria, D. A. Syntheticphosphoethanolamine a precursor of membrane phospholipids reduce tumor growthin mice bearing melanoma B16-F10 and in vitro induce apoptosis and arrest inG2/M phase. Biomedicine & Pharmacotherapy, v. 66, n. 7, p. 541-548, oct
2012.
Ferreira, A. K.; Meneguelo, R.; Pereira, A.; Filho, O. M. R.; Chierice,
G. O.; Maria, D. A. Anticancer Effects of Synthetic Phosphoethanolamine onEhrlich Ascites Tumor: An Experimental Study. Anticancer Research, v. 32, n. 1, p.
95-104, jan 2012.
*Artigo originalmente publicado no diário 'A
Gazeta', n. 8.805, p.2, de 20/10/2015.
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