Euclides da Cunha (1866-1909)
No sábado de Aleluia os seringueiros do Alto
Purus desforram-se de seus dias tristes. É um desafogo. Ante a concepção
rudimentar da vida santificam-se-lhes, nesse dia, todas as maldades. Acreditam
numa sanção litúrgica aos máximos deslizes.
Nas alturas, o Homem-Deus, sob o encanto da
vinda do filho ressurreto e despeado das insídias humanas, sorri,
complacentemente, à alegria feroz que arrebenta cá em baixo. E os seringueiros
vingam-se, ruidosamente, dos seus dias tristes.
Não tiveram missas solenes, nem procissões
luxuosas, nem lavapés tocantes, nem prédicas comovidas. Toda a Semana Santa
correu-lhes na mesmice torturante daquela existência imóvel, feita de idênticos
dias de penúrias, de meios-jejuns permanentes, de tristezas e de pesares, que
lhes parecem uma interminável sexta-feira da Paixão, a estirar-se,
angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora.
Alguns recordam que nas paragens nativas,
durante aquela quadra fúnebre, se retraem todas as atividades – despovoando-se
as ruas, paralizando-se os negócios, ermanando-se os caminhos – e que as luzes
agonizam nos círios bruxuleantes, e as vozes se amortecem nas rezas e nos
retiros, caindo um grande silêncio misterioso sobre as cidades, as vilas e os
sertões profundos onde as gentes entristecidas se associam à mágoa prodigiosa
de Deus. E consideram, absortos, que esses sete dias excepcionais, passageiros
em toda a parte e em toda a parte adrede estabelecidos a maior realce dos
outros dias mais numerosos, de felicidade – lhes são, ali, a existência
inteira, monótona, obscura, dolorosíssima e anônima, a girar acabrunhadamente
na vida dolorosa e inalterável, sem princípio e sem fim, do círculo fechado das
“estradas”. Então pelas almas simples entra-lhes, obscurecendo as miragens mais
deslumbrantes da fé, a sombra espessa de um conceito singularmente pessimista
da vida: certo, o redentor universal não os redimiu; esqueceu-os para sempre,
ou não os viu talvez, tão relegados se acham à borda do rio solitário, que no
próprio volver das suas águas é o primeiro a fugir, eternamente, àqueles
tristes e desfrequentados rincões.
Mas não se rebelam, ou blasfemam. O
seringueiro rude, ao revés do italiano artista, não abusa da bondade de seu
deus desmanchando-se em convícios. É mais forte; é mais digno. Resignou-se à
desdita. Não murmura. Não reza. As preces ansiosas sobem por vezes ao céu,
levando disfarçadamente o travo de um ressentimento contra a divindade; e ele
não se queixa. Tem a noção prática, tangível, sem raciocínios, sem diluições
metafísicas, maciça e inexorável – um grande peso a esmagar-lhe inteiramente a
vida – da fatalidade; e submete-se a ela sem subterfugir na covardia de um
pedido, com os joelhos dobrados. Seria um esforço inútil. Domina-lhe o critério
rudimentar uma convicção talvez demasiado objetiva, ou ingênua, mas
irredutível, a entra-lhe a todo o instante pelos olhos adentro, assombrando-o:
é um excomungado pela própria distância que o afasta dos homens; e os grandes
olhos de Deus não podem descer até aqueles brejais, manchando-se. Não lhe vale
a pena penitenciar-se, o que é um meio cauteloso de rebelar-se, reclamando uma
promoção na escala indefinida de bem-aventurança. Há concorrentes mais felizes,
mais bem protegidos, mais numerosos, e, o que se lhes figura mais eficaz, mais vistos,
nas capelas, nas igrejas, nas catedrais, e nas cidades ricas onde se estadeia o
fausto do sofrimento uniformizado de preto, ou fugindo na irradiação de lágrimas,
e galhardeando tristezas...
Ali, – é seguir, impassível – e mudo,
estoicamente, no grande isolamento da sua desventura.
Além disto, só lhe é lícito punir-se da
ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo, manietado e
escravo, aos traficantes impunes que o iludem, e esse pecado é o seu próprio
castigo, transmudando-lhe a vida numa interminável penitência. O que lhes resta
a fazer é desvendá-la e arrancá-la da penumbra das matas, mostrando-a,
nuamente, na sua forma apavorante, à humanidade longínqua...
Ora, para isso, a igreja dá-lhe um emissário
sinistro: Judas; e um único dia feliz: o sábado prefixo aos mais santos
atentados, às balbúrdias confessáveis, à turbulência mística dos eleitos e à
divinização da vingança.
Mas o monstrengo de palha, trivialíssimo, de
todos os lugares e de todos os tempos, não lhes basta à missão complexa e
grave. Vem batido de mais pelos séculos e fora tão pisoado, tão decaído e tão
apedrejado que se tornou vulgar na sua infinita miséria, monopolizando o ódio
universal e apequeando-se, mais e mais, diante de tantos que o malquerem.
Faz-se-lhe mister, ao menos acentuar-lhe as linhas
mais vivas e cruéis; e mascarar-lhe no rosto de pano, e laivos de carvão, uma
tortura tão trágica, e em tanta maneira próxima da realidade, que o eterno
condenado pareça ressuscitar ao mesmo tempo que a sua divina vítima, de modo a
desafiar uma repulsa mais espontânea e um mais compreensível revide,
satisfazendo à saciedade as almas ressentidas dos crentes, com a imagem tanto
quanto possível perfeita da sua miséria e das suas agonias terríveis.
E o seringueiro abalança-se a esse prodígio
de estatuaria, auxiliado pelos filhos pequeninos, que deliram, ruidosos, em
risadas, a correrem por toda a banda, em busca das palhas esparsas e da
farragem repulsiva de velhas roupas imprestáveis, encantados com a tarefa
funambulesca, que lhe quebra tão de golpe a monotonia tristonha de uma
existência invariável e quieta.
O judas faz-se como se fez sempre: um par de
calças e uma camisa velha, grosseiramente cozidos, cheios de palhiças e
mulambos; braços horizontais, abertos, e pernas em ângulo, sem juntas, sem
relevos, sem dobras, aprumando-se, espantadamente, empalado, no centro do
terreiro. Por cima uma bola desgraciosa representando a cabeça. É o manequim
vulgar, que surge em toda a parte e satisfaz à maioria das gentes. Não basta ao
seringueiro. É-lhe apenas o bloco de onde vai tirar a estátua, que, é a sua
obra prima, a criação espantosa do seu gênio longamente espalhado de revezes,
onde outros talvez distingam traços admiráveis de uma ironia subtilíssima, mas
que é para ele apenas a expressão concreta de uma realidade dolorosa.
E principia, às voltas com a figura disforme:
salienta-lhe e afeiçoa-lhe o nariz; reprofunda-lhe as órbitas; esbate-lhe a
fronte; acentua-lhe os zigomas; e aguça-se o queixo, numa massagem cuidadosa e
lenta; pinta-lhe as sobrancelhas, e abre-lhe com dois riscos demorados,
pacientemente, os olhos, em geral tristes e cheios de um olhar misterioso;
desenha-lhe a boca, sombreada de um bigode ralo, de guias decaídas aos cantos.
Veste-lhe depois, umas calças e uma camisa de algodão, ainda servíveis; calça-lhe
umas botas velhas, cambadas...
Recua meia dúzia de passos. Contempla-a
durante alguns minutos. Estuda-a.
Em torno a filharada, silenciosa agora,
queda-se expectante, assistindo ao desdobrar da concepção, que a maravilha.
Volve ao seu homúnculo: retoca-lhe uma
pálpebra; aviva um ríctus expressivo na arqueadura do lábio; sombreia-lhe um
pouco mais o rosto, cavando-o; ajeita-lhe melhor a cabeça; arqueia-lhe os
braços; repuxa e retifica-lhe as vestes...
Novo recuo, compassado, lento, remirando-o,
para apanhar de um lance, numa vista de conjunto, a impressão exata, a síntese
de todas aquelas linhas; a renovar a faina com uma pertinácia e uma tortura de
artista incontentável. Novos retoques, mais delicados, mais cuidadosos, mais
sérios: um tenuíssimo esbatido de sombra, um traço quase imperceptível na boca
refegada, uma torção insignificante no pescoço engravatado de trapos...
E o mostro, lento e lento, num
transfigurar-se insensível, vai-se tornando em homem. Pelo menos a ilusão é
empolgante...
Repentinamente o bronco estatuário tem um
gesto mais comovedor do que o Parla
ansiosíssimo, de Miguel Ângelo; arranca o seu próprio sombreiro; atira-o à
cabeça de Judas; e os filhinhos todos recuam, num grito, vendo retratar-se na
figura desengonçada e sinistra o vulto do seu próprio pai.
É um doloroso triunfo. O sertanejo esculpiu o
maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-se afinal, da ambição maldita
que o levou àquela terra; e defronta-se da fraqueza moral que lhe parte os
ímpetos da rebeldia recalcando-o cada vez mais do plano inferior da vida
decaída onde a credulidade infantil o jungiu, escravo, à gleba empantanada dos
traficantes, que o iludiram.
Isto, porém, não lhe satisfaz. A imagem
material da sua desdita não deve permanecer inútil num exíguo terreiro de
barraca, afogada na espessura impenetrável, que furta o quadro de suas mágoas,
perpetuamente anônimas, aos próprios olhos de Deus. O rio que lhe passa à porta
é uma estrada para toda a terra. Que a terra toda contempla o seu infortúnio, o
seu exaspero cruciante, a sua desvalia, o seu aniquilamento iníquo, exteriorizados,
golpeantemente, e propalados por um estranho e mudo pregoeiro...
Em baixo, a rede construída, desde a véspera,
vê-se uma jangada de quatro paus boiantes, rijamente travejados. Aguarda o
viajante macabro. Condu-lo, prestes, para lá, arrastando-o em descida, pelo
viés dos barrancos avergoados de enxurros.
A breve trecho a figura demoníaca apruma-se,
especada, à popa da embarcação ligeira.
Faz-lhe os últimos reparos: arranja-lhe ainda
uma vez as vestes; arruma-lhes às costas um saco cheio de ciscalho e pedras;
mete-lhe à cintura alguma inútil pistola enferrujada, sem fechos, ou um
caxenrenguengue gasto; e fazendo-lhes curiosas recomendações, ou dando-lhe os
mais singulares conselhos, impele, ao cabo, a jangada fantástica para o fio da
corrente.
●
E judas feito Asvero vai avançando
vagarosamente para o meio do rio. Então os vizinhos mais próximos, que se
adensam, curiosos, no alto das barrancas, intervêm ruidosamente, saudando com
repetidas descargas de rifles, aquele bota-fora. As balas chofram a superfície
líquida, erriçando-a; cravam-se na embarcação, lascando-a; atingem o tripulante
espantoso; trespassam-no. Ele vacila um momento no seu pedestal flutuante,
fustigado a tiros, indeciso, como a esmar um rumo, durante alguns minutos, até
se reaviar no sentido geral da correnteza. E a figura desgraciosa, trágica,
arrepiadoramente burlesca, com os seus gestos desmanchados, de demônio e truão,
desafiando maldições e risadas, lá se vai na lúgubre viagem sem destino e sem
fim, a descer, a descer sempre, desequilibradamente, aos rodopios, tonteando em
todas as voltas, à mercê das correntezas, “de bubuia” sobre as grandes águas.
Não para mais. À medida que avança, o
espantalho errante vai espalhando em roda a desolação e o terror; as aves,
retransidas de medo, acolhem-se, mudas, ao recesso das frondes; os pesados
anfíbios mergulham, cautos, nas profunduras, espavoridos por aquela sombra que
ao cair das tardes e ao subir das manhãs se desata estirando-se, lutuosamente,
pela superfície do rio; os homens correm às armas e numa fúria recortada de
espantos, fazendo o “pelo sinal” e apertando os gatilhos, alvejam-no
desapiedadamente.
Não defronta a mais pobre barraca sem receber
uma descarga rolante e um apedrejamento.
As balas esfuziam-lhe em torno; varam-no; as
águas, zimbradas pelas pedras, encrespam-se em círculos ondeantes; a jangada
balança; e, acompanhando-lhe os movimentos, agitam-se-lhe os braços e ele
parece agradecer em canhestras mesuras as manifestações rancorosas em que
tempesteiam tiros, e gritos, sarcasmos pungentes e esconjuros e sobretudo
maldições que revivem, na palavra descansada dos matutos, este eco de um anátema
vibrado há vinte séculos.
– Caminha, desgraçado!
Caminha. Não para. Afasta-se no volver das
águas. Livra-se dos perseguidores. Desliza, em silêncio, por um estirão
retilíneo e longo; contorneia a arqueadura suavíssima de uma praia deserta. De
súbito, no vencer uma volta, outra habitação; mulheres e crianças, que ele
surpreende à beira rio, a subirem, desabaladamente, pela barranca acima,
desandando em prantos e clamor. E logo depois, do alto, o espingardeamento, as
pedradas, os convícios, os remoques.
Dois ou três minutos de alaridos e tumulto,
até que o judeu errante se forre ao alcance máximo da trajetória dos rifles,
descendo...
E vai descendo, descendo... Por fim não segue
mais isolado. Aliam-se-lhe na estrada dolorosa outros sócios do infortúnio;
outros aleijões apavorantes sobre as mesmas jangadas diminutas entregues ao
acaso das correntes, surgindo de todos os lados, vários no aspecto e nos
gestos; ora muito rijos, amarrados aos postes que os sustentam, ora em
desengonços, desequilibrando-se aos menores balanços, atrapalhadamente, como
ébrios; ou fatídicos, braços alçados, ameaçadores, amaldiçoados; outros humílimos,
acurvados num acabrunhamento profundo; e por vezes, mais deploráveis, os que se
divisam à ponta de uma corda amarrada no extremo do mastro esguio e recurvo, a
balouçarem, enforcados...
Passam todos aos pares, ou em filas,
descendo, descendo vagarosamente...
Às vezes o rio alarga-se num imenso círculo;
remansa-se; a sua corrente torce-se e vai em giros muito lentos perlongando as
margens, traçando a espiral amplíssima de um redemoinho imperceptível e
traiçoeiro. Os fantasmas vagabundos penetram nestes amplos recintos de águas
mortas, rebalsadas; e estacam por momentos. Ajuntam-se. Rodeiam-se em lentas e
silenciosas revistas. Misturam-se. Cruzam então pela primeira vez os olhares
imóveis e falsos de seus olhos fingidos; e baralham-se-lhes numa agitação
revolta os gestos paralisados e as estátuas rígidas. Há a ilusão de um
estupendo tumulto sem ruídos e de um estranho conciliábulo, agitadíssimo,
travando-se em segredos, num abafamento de vozes inaudíveis.
Depois, a pouco e pouco, debandam.
Afastam-se; dispersam-se. E acompanhando a correnteza, que se retifica na
última espiral dos remansos – lá se vão, em filas, um a um, vagarosamente,
processionalmente, rio abaixo, descendo...
CUNHA, Euclides da. À margem da história. São
Paulo: Martins Fontes, 1999. p.52-58