sexta-feira, 29 de abril de 2016

BURNT NORTON

T.S. Eliot (1888-1965) 


I 

O tempo presente e o tempo passado
Estão ambos talvez presentes no tempo futuro
E o tempo futuro contido no tempo passado.
Se todo tempo é eternamente presente
Todo tempo é irredimível.
O que poderia ter sido é uma abstração
Que permanece, perpétua possibilidade,
Num mundo apenas de especulação.
O que poderia ter sido e o que foi
Convergem para um só fim, que é sempre presente.
Ecoam passos na memória
Ao longo das galerias que não percorremos
Em direção à porta que jamais abrimos
Para o roseiral. Assim ecoam minhas palavras
Em tua lembrança. 
                               Mas com que fim
Perturbam a poeira sobre uma taça de pétalas,
Não sei. 
               Outros ecos
No jardim se aninham. Seguiremos?
Depressa, disse o pássaro, procura-os, procura-os
Na curva do caminho. Pela primeira porta,
Aberta ao nosso mundo primeiro, aceitaremos
A trapaça do tordo? Em nosso mundo primeiro.
Lá estavam eles, dignificados e invisíveis,
Movendo-se imponderáveis sobre as folhas mortas,
No calor do outono, através do ar vibrante,
E o pássaro cantou, em resposta
À inaudita música imersa na folhagem.
E um radiante olhar impressentido o espaço trespassou, 
       Porque as rosas
Flores contempladas recordavam.
Lá estavam eles, como nossos hóspedes, acolhidos e 
       acolhedores
Assim, caminhamos, lado a lado, em solene postura,
Ao longo da deserta alameda, rumo à cerca de buxos,
Para mergulhar os olhos no tanque agora seco.
Seco o tanque, concreto seco, calcinados bordos,
E o tanque inundado pela água da luz solar,
E os lótus se erguiam, docemente, docemente,
A superfície flamejou no coração da luz,
E eles atrás de nós, no tanque refletidos.
Passou então uma nuvem, e o tanque se apagou.
Vai, disse o pássaro, porque as folhas estão cheias de crianças,
Maliciosamente escondidas, a reprimir o riso.
Vai, vai, vai, disse o pássaro: o gênero humano
Não pode suportar tanta realidade.
O tempo passado e o tempo futuro,
O que poderia ter sido e o que foi,
Convergem para um só fim, que é sempre presente.

II

Alho e safiras na lama
O eixo sepulto imobilizam.
O trêmulo fio de sangue
Canta sob envelhecidas
Cicatrizes, apaziguando
Guerras há muito esquecidas.
A dança ao longo da artéria
A circulação da linfa
Simbolizadas rodopiam
No torvelinho dos astros
Remontam ao verão nos árvores
Movem-nos mais acima
Das árvores que se movem
Na luz da folha imaginada
E sobre o solo encharcado
Embaixo, ouvimos o sabujo
E o javali perseguirem
Sua forma como outrora
Mas entre os astros irmanados. 

    No imóvel ponto do mundo que gira. Nem só carne nem sem carne.
Nem de nem para; no imóvel ponto, onde a dança é que se move,
Mas nem pausa nem movimento. E não se chame a isto fixidez,
Pois passado e futuro aí se enlaçam. Nem ida nem vinda,
Nem ascensão nem queda. Exceto por este ponto, o imóvel ponto,
Não haveria dança, e tudo é apenas dança.
Só não posso dizer que estivemos ali, mas não sei onde,
Nem quanto perdurou este momento, pois seria situá-lo no tempo. 

   A liberdade interior do desejo prático,
A fuga da ação e do sofrimento, a fuga da compulsão
Interior e exterior, ainda que cingidas
Pela graça dos sentidos, uma luz branca imóvel e movediça, 
Erhebung estática, concentração
Sem exclusão, ao mesmo tempo um novo mundo
E outro antigo agora decifrado, compreendido
Na íntegra de seu êxtase parcial,
Na resolução de seu parcial horror.
Contudo, o encadeamento de passado e futuro
Entretecidos na fragilidade do corpo mutável
Preserva o homem do céu e da condenação
A que nenhuma carne poderia suportar. 
                                   O tempo passado e o tempo futuro
Não admitem senão uma escassa consciência.
Ser consciente é estar fora do tempo
Mas somente no tempo é que o momento no roseiral,
O momento sob o caramanchão batido pela chuva,
O momento na igreja cruzada pelos ventos ao cair da bruma,
Podem ser lembrados, envoltos em passado e futuro.
Somente através do tempo é o tempo conquistado.

III

Aqui é um lugar de desamor
Tempo de antes e tempo de após
Numa luz mortiça: nem a luz do dia
Que reveste formas de lúcida quietude
Transfigurando sombras em beleza transitória
E cuja lenta rotação sugere a permanência
Nem a escuridão que purifica a alma
Esvaziando o sensual com privação
Purgando de afeto o temporal.
Nem plenitude nem vazio. Um bruxuleio apenas
Sobre faces tensas repuxadas pelo tempo
Distraídas da distração pela distração
Cheias de fantasmagorias e ermas de sentido
Túmida apatia sem concentração
Homens e pedaços de papel rodopiados pelo ventro frio
Que sopra antes e depois do tempo, vento
Fora e dentro de pulmões enfermos
Tempo de antes e tempo de após.
Eructação de almas doentias
No ar estiolado, miasmas
Carregados pelo vento que varre as lúgubres colinas de Londres,
Hampsteade e Clerkenwell, Campden e Putney,
Highgate, Primrose e Ludgate. Não aqui
Não aqui a escuridão, neste mundo de gorjeios. 
     Desce mais fundo, desce apenas
Ao mundo da perpétua solidão,
Mundo não mundo, mas o que não é mundo,
Escuridão interior, privação
E destituição de toda a propriedade,
Ressecamento do mundo dos sentidos,
Evasão do mundo da fantasia,
Inoperância do mundo do espírito;
Este é o único caminho, o outro
É o mesmo, não em movimento
Mas de movimento abstêmio, enquanto o mundo se move
Em apetência, sobre seus metálicos caminhos
De tempo passado e tempo futuro.

IV

O tempo e o sino sepultaram o dia,
Nuvens negras arrebatam o sol.
Irá o girassol voltar-se para nós, a clematite
Extraviar-se junto ao solo, inclinar-se sobre nós;
Irão vergônteas e gavinhas
Agarrar e apertar?
Gelados
Dedos de teixo irão crispar-se
Sobre nós? Depois que as asas do martim-pescador
Responderam luz à luz, silenciando após, a luz
Imóvel permanece
No imóvel ponto do mundo que gira.

V

As palavras se movem, a música se move
Apenas no tempo; mas o que apenas vive
Pode apenas morrer. As palavras, após a fala, alcançam
O silêncio. Apenas pelo modelo, pela forma,
Podem as palavras ou a música alcançar
O repouso, como um vaso chinês que ainda se move
Perpetuamente em seu repouso.
Não o repouso do violino, enquanto a nota perdura,
Não apenas isto, mas a coexistência,
Ou seja, que o fim precede o princípio,
E que o fim e o princípio sempre estiverem lá
Antes do princípio e depois do fim.
E tudo é sempre agora. As palavras se distendem,
Estalam e muita vez se quebram, sob a carga,
Sob a tensão, tropeçam, escorregam, perecem,
Apodrecem com a imprecisão, não querem manter-se no lugar,
Não querem quedar-se quietas. Vozes ríspidas,
Irritadas, zombeteiras, ou apenas tagarelas,
Sem cessar as criticam. A Palavra no deserto
É mais atacada pelas vozes da tentação,
A sombra soluçante da funérea dança,
O clamoroso lamento da quimera inconsolada. 

    O detalhe da forma é o movimento
Como na figura de dez degraus.
O desejo em si mesmo é movimento
Não em si mesmo desejável
O amor é em si mesmo imóvel
Apenas causa e fim do movimento
Sem tempo e sem desejo
Exceto em sua máscara de tempo
Capturado sob forma de limitação
Entre o ser e o não-ser.
Súbito num dardo de luz solar
Enquanto a poeira se move
Retine o riso oculto
Das crianças na folhagem
Depressa agora, aqui, agora, sempre
– Absurdo o sombrio tempo devastado
Que antes e após seu rastro alastra.
ELIOT, T.S. Poesia. Tradução Ivan Junqueira. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1981. p.199-204

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