sexta-feira, 29 de julho de 2016

MEMÓRIAS DA MARGEM: contos e poemas

A PRIMEIRA VEZ QUE MORRI 
João Veras – 24/07/2016 


Eu era criança. Contava com seus cinco ou seis anos. O lugar em que morava, no Bairro Cadeia Velha, tem o Rio Acre como quintal. Fácil. Então era só descer o barranco e tinbum!, cair na água. Minha diversão preferida. Ainda não sabia nadar, mas tinha certeza que sim.

Foi quando, numa bela tarde, timbum!, vi a minha prova dos nove não se confirmar. E uma correnteza me arrastou para o meio do rio, quando passei a não ver nem sentir mais chão de areia. Passei a descer sem querer e subir com todo o desejo que eu possuía procurando algo para me apegar - e esse algo, que eu tanto queria, não existia – só água que não me deixava fixar, aprumar, controlar. Ali conheci a tal da lei da gravidade em carne e osso. Só faltava o tal do cabelo que as águas não têm. E elas insistiam em entrar por onde em mim naquela hora não devia. Até que acabaram-se as forças, todas que eu tinha. Me entreguei. Precisava descansar. Eu não tinha escolha. Até que morri. Sumi de mim. Acabou. Sem som, sem imagem, sem sentidos. Silêncio. Escuro. Desnecessário esforços agora.

Não lembro se sonhei. Tudo havia acabado, acho que literalmente. Deixei de existir, pelo menos pra mim. Não sei por quanto tempo. Mas, num repente que levou uma vida, abri os olhos, olhei ao redor, vi que estava em casa, na minha cama, com o corpo todo dolorido pelos esforços vãos. Já era noite. Não testemunhei que um adulto, até hoje não sei a sua identidade, pulou e me retirou da água. Bem que antes lembro tê-lo visto, lá longe, na praia, na minha última descida. Morri e fui salvo. Foi assim que, dizem, nasci de novo. Até hoje conto essa história do dia em que a terra parou pra mim. Sou testemunha de que morrer não é um bicho de sete cabeças, basta faltar cabelo em águas turbulentas. 

SOBRE VIVENTE 
João Veras – 24/07/2016 

pulei e não encontrei chão nenhuma areia
como podia nessa vontade de plainar no ar
afundei retornei desci retornei afundei mais uma vez retornei
desesperei um desespero tão eternamente rápido imergi,
melhor: fui imergido sem sentido e acordei partido em gôtas
um anjo havia me tirado – disseram
depois disso até hoje busco juntar meus pedaços molhados
naquela água barrenta que não sai de minhas veias.

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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA


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