No contexto das variantes
que contribuíram com o imaginário de qualquer pessoa que viveu na Amazônia, no
período da borracha está incluso a supremacia que Manaus e Belém exerceram em
relação às demais cidades da região. As
duas cidades eram autônomas para cumprir as decisões tomadas pelos países
importadores da borracha, decisões do mercado internacional.
Era para Manaus e Belém que
os filhos dos seringalistas ou mesmo de famílias mais abastadas, iam para estudar.
Vale dizer que a Universidade Federal do Amazonas foi fundada em 1909, a
Universidade Federal do Pará, fundada em 1957, enquanto que a Universidade
Federal do Acre, só foi fundada em 1974. A defasagem de tempo na implantação do
ensino superior nas demais cidades da região era fator hierárquico marcante que
reflete o todo desigual definido pela concentração do capital.
O extrativismo do látex,
oriundo da seringueira (Hevea
Brasillienses), árvore nativa da Amazônia, aconteceu na região, em dois
ciclos, orientados por diferentes fatores históricos mundiais. O primeiro ciclo
(1870 – 1910) ocorreu face à Revolução Industrial, e teve o aumento da demanda
da borracha, com o desenvolvimento da indústria automobilística, com a
vulcanização, processo de melhoramento da qualidade da borracha crua para fins
industriais, mais especificamente na fabricação de pneus. Até então, a Amazônia
era a única região fornecedora mundial do produto.
Mas, a um país como o Brasil
considerado atrasado aos “olhos” do capital, não poderia ser permitida a
exclusividade de fornecer um produto do valor que tinha a borracha no mercado
mundial. Não demorou e o contrabando da semente da seringueira, por parte dos
ingleses, assim como o bom desempenho das plantações na Ásia, local para onde
as sementes foram levadas e cultivadas em condições favoráveis a atender o
mercado internacional, foram determinantes para que em pouco tempo a borracha
da Amazônia perdesse a exclusividade e a economia na região, entrasse em
declínio.
O segundo ciclo da borracha
(1940 – 1950) está associado à Segunda Guerra Mundial, período em que os
seringais asiáticos tiveram a produção suspensa, face à intervenção do Japão,
país inimigo dos dois maiores consumidores de borracha - Inglaterra e os
Estados Unidos. Com o fim de suprir a necessidade, inclusive bélica, os EUA
investiu na reativação dos seringais da Amazônia, momento em que novas levas de
nordestinos foram para a região, dando continuidade ao processo migratório
iniciado no primeiro ciclo da borracha. Mas após o fim da Segunda Guerra, a
economia da borracha na Amazônia entrou totalmente em colapso.
Uma característica peculiar no
segundo ciclo da borracha é a combinação entre a Segunda Guerra e os interesses
nacionais, de promover o suposto desenvolvimento da Amazônia, com a fixação dos
migrantes nordestinos na região, para acabar com o “vazio demográfico” que as
autoridades julgavam existir, numa recorrente desconsideração das populações
indígenas.
É nesse contexto que os
nordestinos, em especial os cearenses, são convocados à escolher entre lutar na
Segunda Guerra Mundial ou lutar na “batalha da borracha”, na floresta amazônica.
Homens e mulheres são “transfigurados” em soldados da borracha, soldados sem
farda e sem quartel, investidos do espírito cívico de defesa da nação, imposto
pelo Governo de Getúlio Vargas. O hino do seringueiro, de autoria popular, diz
do compromisso que eles tinham, ou melhor que lhes fora imposto, como
defensores do Brasil:
“Vamos dar valor ao
seringueiro,
Vamos dar valor a
esta nação,
Porque com trabalho
deste povo
É que se faz pneu de
carro e pneu de avião.
Fizeram a chinelinha,
fizeram o chinelão
Inventaram uma botina
que a cobra não morde não”
“Tantas coisas da
borracha eu não sei explicar não
Encontrei pedaço dela
em panela de pressão.
Não é com chifre de
vaca que se apaga a letra não
São produtos fabricados feitos pelas nossas
mãos.”
Se ainda hoje a comunicação
entre a Amazônia e as demais regiões do país é precária, quanto mais no período
da borracha, quando os meios de comunicação eram muito mais deficitários, sendo
um fator que colaborava com a comunicação direta entre as duas capitais, Manaus
e Belém com o exterior, mantendo pouca relação interna, com o Brasil. De certa
forma essa autonomia favorecia a concentração dos lucros nas duas capitais, o
que possibilitou na implantação de uma infraestrutura urbana, características
da Belle Époque europeia.
É importante lembrar que a
borracha chegou a ser um dos principais produtos de exportação nacional. Wilson
Cano (1981) demonstra a importância da borracha, ao lado do café. No período
considerado o boom, de 1901 a 1910, a borracha atingiu o valor correspondente a
78,3% do valor do café, que era produzido nas regiões mais desenvolvidas do
país e evidentemente, em condições de produção que eram muito superiores às
condições que a borracha era produzida, incluindo aí, fatores relevantes como,
transporte, energia e mão de obra, principalmente.
Os investimentos, fruto dos
lucros com a economia do látex, em Manaus e Belém buscavam atrair mão de obra e
oferecer aos coronéis da borracha, o lazer e as condições de urbanidade à
altura de seus padrões econômicos.
Enquanto isso, os seringueiros amargavam na labuta com o corte da
seringa, enfrentando dificuldades diversas para sobreviver na floresta,
contraindo doenças como a malária e a febre amarela, riscos com os animais da
floresta e o pior de todos os males na minha concepção, a relação com os
patrões, que tornava o seringueiro preso à dívida impagável, com os barracões
que mantinha as famílias sempre na pobreza.
O barracão era a unidade do
seringal onde o seringueiro entregava a sua produção de borracha e recebia o
pagamento, que era feito principalmente em insumos necessários ou minimamente
necessários, para a manutenção das famílias no interior do seringal. Podemos
considerar que o Barracão tem também seu valor simbólico, era a sede dos sonhos
não realizados e da desilusão de se ter uma vida digna. Isso porque a prática
comum, é que não se efetuava o justo pagamento pela produção do seringueiro e
os produtos fornecidos eram superfaturados, depreciando em muito a mão de obra.
As cidades de Manaus e Belém
sofreram mudanças locais profundas, ao longo dos dois ciclos da borracha.
Primeiramente com o aumento populacional e as condições de vida das pessoas,
tanto no trabalho com a borracha, quanto posteriormente com a desativação dos
seringais.
O ambiente físico natural
também sofreu alterações, com o soterramento de vários igarapés, para instalar
uma infraestrutura nos moldes europeus, expresso na arquitetura que tem como
ícone a construção do Teatro Amazonas, mas também expresso em igrejas, no Mercado
municipal e no Palácio Rio Negro. Com a
decadência da economia gumífera, quando os seringais deixaram de atender ao
mercado internacional, o êxodo rural deu nova cara às cidades que incharam,
quando muitas famílias deixaram as florestas e foram para a área urbana.
No processo de migração para
as cidades, as pessoas se instalaram em condições precárias, em palafitas, sem
infraestrutura básica, sem emprego, escolas e saúde. Sem receber dos
governantes a atenção que a situação requeria, as pessoas viviam completamente
à margem da riqueza herdada da produção da borracha. Fato que ainda hoje é
realidade.
O êxodo rural, como consequência do fim da
economia da borracha na Amazônia ocorreu em toda a região. A ocupação
desordenada das cidades e a destruição ambiental nos espaços urbanos e rural
foram marcantes em função do redirecionamento da economia, que migrou para o
extrativismo madeireiro, a pecuária com a instalação de inúmeras fazendas de
gado e o garimpo. Estes foram projetos de grupos econômicos que já vinham sendo
beneficiados desde o período da borracha.
Os benefícios concedidos aos
empresários estavam relacionados à redução de impostos, empréstimos de dinheiro
público a fundo perdido e outros tipos de favoritismo por parte do Governo
Federal. Para os seringueiros e pequenos produtores a mudança da economia
tratou-se apenas de novos ciclos de exploração, eles continuavam excluídos dos
lucros da riqueza gerada a partir de seu trabalho. Após a borracha, muitos
seringueiros que eram posseiros dos antigos seringais foram expulsos das terras
ou assassinados, gerando conflitos que também motivaram as grandes levas de
famílias para as cidades.
Depois dessa muitíssima
breve contextualização histórica, que tem como objetivo levar as pessoas que
não conhecem a região, a dar um mergulho no que é essencial para a abordagem
amazônica. Assim podemos voltar à viagem que realizamos em 2015.
Nas cidades de Manaus e
Belém pode-se ver na paisagem a marca das transformações sociais numa
composição de fácil percepção, por se tratar de cidades inchadas, com muita
gente morando em palafitas. No que concerne ao trabalho muitas pessoas ocupadas
no mercado informal, como vendedores ambulantes e estivadores sem carteira
assinada, que fazem o descarregamento de produtos dos barcos, para abastecer os
mercados. E na arquitetura, herança deixada pela borracha, com a existência dos
teatros, mercados, igrejas e portos que abrigam características históricas.
Não
se pode passar por Belém, sem tomar uma água de coco, é o lugar onde o fruto
tem o menor preço, entre as capitais brasileiras. Depois visitar o Mercado
Ver-O-Peso, para observar a movimentação dos trabalhadores, atores sociais que
têm o mercado, como palco que exibe um espetáculo de cores e sons originados da
movimentação dos corpos e dos produtos, um cenário singular.
Ainda no Ver-O-Peso é bom
circular entre as bancas abastecidas de peixes, cereais, batatas e frutas…
Sentir o forte cheiro das plantas medicinais, dos condimentos que temperam os
saborosos pratos, preparados com tucupi, jambu, a goma de mandioca, entre
outros alimentos.
Se por acaso não se pode
ficar para comer as iguarias oferecidas em pequenos restaurantes e lanchonetes,
vale ao menos tomar um suco que pode ser de taperebá, cupuaçu, graviola ou
bacuri, este último é o meu preferido.
Olhar o rico artesanato e depois sair caminhando até as docas, para
tomar um sorvete de frutas regionais. Foi no sorvete que pude matar a saudade
de dois sabores de frutas da infância, que não consegui encontrar em Rio
Branco, bacaba e bacuri. Os sabores são inspiradores:
BACABA
E PATAUÁ
Minha
aldeia está escassa
De
valiosas palmeiras
Na
feira não tem bacaba,
Isso
não é brincadeira!
E
nas matas só se encontra
Uma
aqui, outra acolá…
Mas
quem sumiu de uma vez
Foi
o fruto gorduroso,
Cujo
nome é patauá.
Seu
azeite era um colosso
Fazia
parte da mesa,
No
jantar e no almoço.
Só
resta agora o açaí,
Este
com grande fartura
Talvez,
porque o açaí
Seja
uma fruta de cor
Ora
só, mas que besteira…
Não
tem fruta incolor.
É
que o açaí, minha gente,
Caiu
na boca do mundo,
Patauá
e a bacaba
Não
puderam chegar lá
Foi
grande o desmatamento,
A
bacaba, quase acaba
E o patauá, ao Deus dará…
A título de provocação ao
leitor que desconhece as frutas da região, cabe bem um destaque para enaltecer
o bacuri, fruto da Platonia esculenta,
grande árvore da Amazônia, até mesmo porque viajar pela região é um passeio
pela gastronomia. No Acre o fruto é raro, só se encontra na época, e não se
produz nenhum alimento, dele derivado. Diferentemente de Manaus e principalmente
Belém, onde se encontra o fruto, em tamanho maior que no Acre, o que favorece a
produção de muito suco e sorvete, mesmo fora da época, quando a polpa é
congelada e consumida ao longo do ano.
Vale destacar que o suco e o
sorvete de bacuri são mais caros de que muitos outros frutos regionais. Isso
pelo fato da fruta dispor de pouca polpa e claro, a valorização dada pelos
locais e pelos visitantes, em razão da textura macia e do delicioso sabor, um
agridoce incomparável.
Em
meio a um suco e outro, chega a hora do almoço, a melhor opção é um prato de
peixe, seja ele pirarucu, tambaqui, pacu e tantos outros que desconheço os
nomes. Pode ser frito, assado cozido ou moqueado. Seja regado ao tucupi, leite
de coco ou mesmo no caldo. Depois de tanta comida o corpo pede uma rede, mas é
melhor fazer uma caminhada para visitar os monumentos de Belém. Observar a
arquitetura pelas razões referidas anteriormente e entender um pouco da
História da cidade. Nem é preciso repetir que o mercado Ver-O-Peso é o ponto de
partida.
O ideal é que cada visitante
faça o seu roteiro, desde que inclua o Forte do Presépio, o Theatro da Paz, a
estação das docas e a casa das onze janelas. Tanto em Manaus, quanto em Belém a
sugestão aqui é centrar a atenção nos trabalhadores das regiões portuárias e
dos mercados. Lançar um olhar especial às crianças da Amazônia, que estão “há
anos luz” de distância, de dispor da atenção merecida.
Em Manaus, nossa estada foi
cheia de particularidades na companhia de amigos, velhos e novos. O carinho da
hospedagem na casa de Laudicélia, Antonio e seus filhos, que nos fizeram
desfrutar do convívio familiar, saboreando muitas tapiocas e charutos de couve
com carne moída, no estilo bem acreano, afinal eles são do Acre também.
Ainda na companhia de Laudicélia
e Antonio fizemos um passeio pelas ruas sombreadas de mangueiras e como não
poderia deixar de ser, pelo mercado, para olhar as diferentes espécies de
peixes, o descarregamento dos barcos, o frenético movimento dos trabalhadores
que sobem e descem escadas e rampas transportando mercadoria. Depois de tudo
apreciar, compramos algumas frutas, para em casa fazermos a maior festa com as
crianças, que leram poemas e ouviram atentas algumas canções.
Entre folhas fizemos novos
amigos nos dias manauaras, numa corrente do bem que, segundo a Rosângela
Cardoso, a corrente tem um forte elo que é a Elione Benjó. Esta amiga, também é
do Acre, se lá não nasceu, mas por lá viveu muitos dias. Foi nas reuniões da
Secretaria Regional do Acre, da Sociedade Brasileira para o Progresso da
Ciência – SBPC, que conheci Elione Benjó, juntas aprofundamos os debates
acadêmicos e científicos no Grupo de Estudos dos Povos Nativos – Gepon. As
discussões científicas e a amizade foram se fortalecendo com o tempo, a ponto
de hoje nos tratarmos como irmãs, dado o carinho que temos uma pela outra.
Mas porque iniciei o
parágrafo anterior falando sobre, entre folhas e Rosângela Cardoso? Esta nova
amiga abriu as portas de sua casa para nós e fizemos a maior festa, junto à
família dela, com direito a peixe assado na brasa, para o almoço, café com
tapioca para o lanche, fotografias das plantas e cotias, no quintal, cantorias
e muita conversa boa.
Rosângela é uma artista que
utiliza a técnica monotipia, para pintar camisetas, com folhas exclusivamente
da Amazônia. Seu ateliê é na sua própria residência, ambiente mergulhado em
plantas nativas e cultivadas que inspiram a produção de obras de arte, embora
feitas para vender, não podem ser vistas como meros produtos comerciais.
Anama é a logomarca da arte
de Rosângela Cardoso, que por enquanto pode ser adquirido em dois lugares - na
galeria Amazônia, em Manaus e na loja Arco Íris, em Alter do Chão – PA. Este
comercial não envolve valor financeiro, mas mesmo antes de pensar em fazê-lo,
fomos presenteados por ela, com duas camisetas, uma com pintura da folha do
cupuaçu e outra com a folha da taioba. Mas é bom o leitor saber que a folha da
taioba da Amazônia, não é comestível, dela come-se a batata, embora a folha da
taioba do Sudeste brasileiro seja semelhante a da Amazônia, são plantas
diferentes, nada que um agricultor ou botânico não possa explicar melhor.
A visita à casa/ateliê da Rosângela foi na volta do passeio da Praia da Lua, que Elione nos levou. Local onde podemos armar a rede, literalmente dentro do rio, nas árvores que povoam a praia e adentram as águas. Comemos Jaraqui assado na brasa, tomamos banho no rio Negro, aproveitando o máximo possível o dia de sol, só não esperamos a lua chegar. Um dia para não ser esquecido!
À noite, quando já nos encontrávamos instalados no barco que teria destino a Alter do Chão, no porto de Manaus, fomos surpreendidos com a presença da Rosângela que nos levou um pão caseiro integral, com linhaça, embrulhado com imenso capricho num guardanapo de tecido quadriculado, vermelho e branco, com borda rendada, um luxo!
> Segunda crônica que integra o livro, ainda não publicado, intitulado “Pelos rios ao sabor da fruta”, relato da viagem dos artistas Eliana Castela e Jorge Carlos, o Mané do Café, realizada no período de setembro a novembro de 2015, do Acre ao Ceará, com paradas em algumas cidades, a buscar a relação que se estabeleceu entre as pessoas da Amazônia e do Nordeste, a destacar as condições de vida das populações na atualidade. ELIANA CASTELA é natural de Rio Branco. Ativista cultural, é formada em Geografia (bacharelado e licenciatura) pela UFAC, especialista em História da Amazônia e mestre pela Universidade Federal de Viçosa. Leia aqui a primeira crônica da série.
Estou curtindo cada trecho dessa viagem que nos carrega à tira colo e nos faz vislumbrar e quase sentir o cheiro das coisas! Que coisa boa é saber de tanta gente boa pelo caminho dos errantes artistas!
ResponderExcluirAqui, da outra margem do Atlântico, ando a fazer esta viagem deslumbrante de cores, sabores, erudição, calor humano, cheiros, num mundo que desconheço, mas que tanto me encanta. Porém a toponímia local recorda-me a minha terra: Santarém, Óbidos, Alter-do-Chão, e tantas outras. Parabéns Eliana e parabéns ao Jorge.
ResponderExcluirJá agora, o ciclo da borracha atraiu diversos 'exploradores' - no real sentido da palavra - até Henry Ford criou a Fordlândia, no município de Aveiro, no Estado do Pará.
Reinaldo
Amigos Ronaldo e Reinaldo, obrigada por aceitarem o convite para viajar junto na realidade do Brasil. A contribuição dos seus comentários possibilita novos escritos.
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