Eliana Castela
Caminho
das águas na cheia
Transbordam
almas e corações dos navegantes
Leva-me
adiante, não importa o destino...
Quero
ver a floresta debruçada sobre o rio
Boto
que salta, pássaro que mergulha
Seguir
a correnteza ou contra ela
A
bordo de um barco qualquer
Quebrar
fronteiras, derrubar marcos
Saciar minha sede de mundo.
Sair do Acre, pelos rios e depois
pelas estradas, até chegar ao Ceará é uma viagem de volta, um retorno ou a
procura de um passado vivido pelos nordestinos que chegaram à floresta
amazônica, nos séculos XIX e XX, para trabalhar com o extrativismo do látex (borracha
ou seringa). A viagem é uma busca de nós, descendentes de nordestinos, nascidos
na Amazônia, para entender o trajeto percorrido pelos ancestrais.
O percurso inclui
necessariamente, as cidades de Manaus e Belém, que sediaram o recebimento e distribuição
da produção da borracha, oriunda dos seringais de toda a Amazônia e destinada à
exportação. É a necessidade de buscar
respostas que preencham lacunas deixadas pela história que nos foi contada
parcialmente, e que pede esclarecimento, para entender melhor como aconteceu o
de lá para cá. E porque não um daqui pra lá?
Começa-se a sentir o Nordeste, ainda no Norte,
mais precisamente, no porto fluvial Cai N’Água, em Porto Velho - RO, no rio
Madeira, onde tomamos o barco com destino a Manaus. A movimentação do embarque
e desembarque de passageiros, as pessoas armando e desarmando as redes, a
acomodação das bagagens e as comidas, compõem um cenário que conserva aspectos
históricos, de quando o rio era a única via de acesso para sair e entrar na
Amazônia.
O Nordeste entrou no Norte,
pelos rios, com sua gente, seus usos e costumes, hábitos, que apesar do tempo
decorrido, ainda estão presentes na fala, na culinária, no cultivo de
determinadas plantas, na rede, que substitui a cama e tantas outras maneiras de
ser, que quando se viaja pelos rios, Purus, Juruá, Acre, Madeira, etc., têm-se
a impressão, que o Nordeste habita as suas margens. O rio, caminho primeiro,
ainda hoje tem considerável importância, para muitos moradores da Amazônia.
Embora tenha havido mudanças
significativas na qualidade dos serviços fluviais, como segurança, alimentação
e comodidade nas embarcações, assim como na paisagem, com a devastação da floresta,
a viagem pelos rios, remete ao caminho percorrido por nossos ancestrais, do
Nordeste à Amazônia.
Mesmo na atualidade, ainda é
grande a importância dos rios no transporte de passageiros na região. Pode-se
considerar que o hábito de viajar pelos rios é um dos motivos que estabelece o
valor na escolha, isso quando a escolha pode ser feita. Alia-se a esse primeiro
fator, que mesmo muitos ribeirinhos dispondo de sua própria embarcação, nem
sempre é possível realizar todas as viagens com o seu próprio veículo, pois
depende da estrutura da embarcação e da distância da viagem.
O segundo fator da
importância do rio na região Amazônica, é em função de que muitas cidades, o
acesso é exclusivamente fluvial ainda hoje. Dentre outros motivos, o valor da
passagem de barco é bem menor que a passagem de ônibus. Soma-se a isso a
informalidade, ou seja, a frouxidão do controle de passageiros no transporte
fluvial, conforme constatamos.
Sobre o controle de
passageiros nas embarcações, no trecho compreendido entre Manaus e Belém, nos
foi perguntado se tínhamos passagem na hora do embarque, mas não foi exigida a
apresentação do bilhete, o que só foi feito, pouco tempo antes do encerramento
da viagem. Considerando as várias paragens, em diferentes cidades, onde
acontece embarque e desembarque de passageiros e cargas, há um favorecimento
para algum “espertinho”, ou necessitado, que queira viajar sem efetuar o
pagamento do bilhete, principalmente para quem não vai até o destino final.
No porto fluvial, Cai
N’Água, em Porto Velho, fizemos um triste registro, a situação de insegurança
em que os viajantes se encontram, com o risco de serem roubados, entre outros
danos físicos, mesmo durante o dia. À noite pouca gente se arrisca a sair do
barco, que permanece no porto alguns dias antes da viagem, durante o embarque
de cargas, que dura entre dois ou três dias. Enquanto isso, os passageiros que
desejarem, podem permanecer no barco, antes do dia da partida e economizar com
hospedagem, quando é o caso.
Como o fornecimento de
alimentação para os passageiros só ocorre a partir do início da viagem, os que
optam em ficar a bordo antecipadamente, terão que sair para as refeições. No
próprio porto existem vários restaurantes populares e pequenos comércios. Porém, a presença de alguns rapazes e
mulheres é uma ameaça, eles transitam no porto, em torno dos comércios,
agrupam-se em determinados pontos e também dormem num prédio que se encontra em
estado de deterioração, ali abandonado.
Esses homens e mulheres que
permanecem no porto trabalham em equipe, fechando um cerco, contra os
transeuntes, que são impedidos de circular com tranquilidade, quando se dirigem
às refeições ou para realizar compras necessárias para a viagem. Instalando-se
assim, uma situação atípica, aos demais portos, pelos quais passamos, nas
cidades de Manaus, Santarém e Belém. Nos demais portos os cuidados necessários,
são aqueles que se tem em qualquer estação de passageiros, como em rodoviárias
ou aeroportos de qualquer lugar do mundo.
Decidimos permanecer no
barco, um dia e meio, antes do dia da partida. Já a bordo do Almirante Moreira, no convés principal,
onde a maioria dos passageiros se instala, observamos que ainda havia bastante
espaço, poucas redes estavam armadas. Nossa antecipação foi para evitar o
ocorrido, numa das vezes que viajei de Porto Velho a Manaus, quando só fui para
o barco no dia da partida, então tive dificuldade de encontrar espaço, pois já
havia se instalado o emaranhado de redes, que é normal nessas embarcações, o
que exigiu uma habilidosa negociação com os que ali se encontravam, para
arrumar meu lugarzinho. Eu não quis repetir o inconveniente.
Depois de escolher o lugar,
armar as redes e acomodar as bagagens fomos explorar as instalações do barco.
Os banheiros de nosso convés, ainda estavam fechados, só seriam
disponibilizados no início da viagem, enquanto isso era preciso ir ao convés de
abaixo, onde só havia um banheiro disponível.
Ainda explorando o barco,
subimos ao convés tijupá e ficamos observando o embarque de cargas, frutas e
legumes eram os principais produtos, mas havia também cereais, foi o que
pudemos identificar. A movimentação no porto é frenética, depois que iniciamos
a contagem, anotamos o descarregamento de mais de dez caminhões em nosso barco,
sabe-se lá, quantos já haviam sido descarregados, antes de iniciarmos a
contagem.
Figura 1 - Porto Cai N'Água, Porto
Velho – RO
Fonte: Oliveira de Castela, 2015
O conjunto ruidoso dos
motores dos caminhões de cargas, de gritos dos trabalhadores que efetuam o descarregamento,
dos vendedores ambulantes, dos carros que deixam e apanham passageiros, o alto
volume das caixas de som tocando músicas nos barcos ancorados e os apitos de
chegada e partida das embarcações faz tremendo incômodo e manifesta o desejo de
sumir dali em busca do necessário silêncio. Mas sair do barco não era uma boa
ideia, em função da insegurança no porto, já referida anteriormente, o jeito
foi potencializar a paciência, manter a tranquilidade, ler um livro, olhar a
internet, captar uma imagem nova, com a câmera fotográfica, para não ficar
contando as horas naquela situação de reféns, do barulho que invadia o interior
do barco ou do medo de assaltos, fora dele.
A troca de informações entre
os passageiros, falando dos objetivos de suas viagens e do destino final que se
pretende atingir, são assuntos introdutórios de muitas conversas que
acontecerão ao longo de quatro dias de viagem, o que estabelece um clima de
amizade entre os viajantes. Quando alguém precisa sair do barco para fazer as
refeições ou comprar alguma coisa, os que ficam cuidam dos pertences dos que
saem.
Com a proximidade da hora da
partida, parece ocorrer um frenesi, com a tripulação e passageiros. É em cima
da hora, que a grande maioria de pessoas deixa para embarcar. Então o clima fica
mais nervoso com o espaço que vai tornando-se exíguo, com mais redes que vão
sendo armadas e juntamente com as bagagens colocadas ao chão, dificultam o
trânsito das pessoas, que devido ao movimento do barco, às vezes perdem o
equilíbrio e esbarram nas redes, que já estão ocupadas por seus donos.
De repente passa-se a morar
com muitos estranhos, dividir o mesmo espaço sem paredes, onde os lugares de
privacidade ali existentes é a própria rede, que mesmo assim, não deixa de
levar um empurrãozinho daqui e outro dali, e o banheiro, depois que se fecha a
porta.
Figura 2 - Cenário colorido de redes
no barco
Fonte: Oliveira de Castela, 2015
O apito anuncia a partida.
Naquele momento o barco já é um todo colorido pelas redes, formando um
emaranhado de modelos diversos e diferentes matizes, com varandas rendadas ou
sem varandas, redes floridas, listadas, quadriculadas, camufladas e de cor
única. Um visual digno de um cartão postal da navegação amazônica. Conforme o barco vai se distanciando do
porto, os olhos fixam-se no volume d’água do rio Madeira e na paisagem que se
move. Deixa-se a cidade para trás, enquanto a calma e o silêncio invadem os
corpos e os corações dos viajantes.
A referida crônica integra o livro, ainda não publicado, intitulado “Pelos rios ao sabor da fruta”, relato da viagem dos artistas Eliana Castela e Jorge Carlos, o Mané do Café, realizada no período de setembro a novembro de 2015, do Acre ao Ceará, com paradas em algumas cidades, a buscar a relação que se estabeleceu entre as pessoas da Amazônia e do Nordeste, a destacar as condições de vida das populações na atualidade. ELIANA CASTELA é natural de Rio Branco. Ativista cultural, é formada em Geografia (bacharelado e licenciatura) pela UFAC, especialista em História da Amazônia e mestre pela Universidade Federal de Viçosa.
A referida crônica integra o livro, ainda não publicado, intitulado “Pelos rios ao sabor da fruta”, relato da viagem dos artistas Eliana Castela e Jorge Carlos, o Mané do Café, realizada no período de setembro a novembro de 2015, do Acre ao Ceará, com paradas em algumas cidades, a buscar a relação que se estabeleceu entre as pessoas da Amazônia e do Nordeste, a destacar as condições de vida das populações na atualidade. ELIANA CASTELA é natural de Rio Branco. Ativista cultural, é formada em Geografia (bacharelado e licenciatura) pela UFAC, especialista em História da Amazônia e mestre pela Universidade Federal de Viçosa.
Su escrita nos leva a viver os momentos sem ter ido por lá. Muito grata. Continue motivada e escrevendo suas aventuras. Um dia já estivemos em algumas juntas e quem sabe Eliana se ainda não estaremos em outras no futuro. é o que mais desejo. Fica o meu gostinho de quero mais.
ResponderExcluirConcordo com o comentário de Ormifran, pois a sua descrição detalhada nos dá a sensação de estarmos lá, junto com vocês, vivenciando a riqueza do momento. Parabéns pela investida, coragem de fazer o diferente e nos trazer um conhecimento tão importante!
ResponderExcluirGrande abraço Eliana Castela e Jorge Carlos!
Não posso dizer que me surpreendeu, pois a Eliana tem uma sensibilidade ímpar e consegue descrever de forma a nos prender à leitura... A mim, esse primeiro trecho, pareceu a abertura de um Romance! Vou ficar atento...
ResponderExcluirAmigos, acolho com atenção os vossos comentários, eles enriquecerão o livro, além de promover um debate importante para nossas vidas, tanto no âmbito coletivo quanto individual.
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