Assim que chegamos à
casa da Nice e de Rosivaldo, casal que nos conquistou, na comunidade de
Jamaraquá, juntamente com a beleza do local, fomos logo atar as redes. Uma
colada na outra, tão juntas que o balançado era único para as duas, isso para
manter a “eterna” inseparabilidade dos corpos, mesmo em redes separadas, mas
quando o frio noturno apertava, uma rede sempre ficava vazia.
O redário fica embaixo de
pequenas árvores no quintal, bem próxima à entrada da trilha que é utilizada
para observação de árvores, como a samaúma ou de algum animal que venha a
cruzar o caminho. Os visitantes são guiados por agentes da própria comunidade
residentes na Flona. Rosivaldo, marido de Nice é um dos guias de turismo por
ser um bom conhecedor das espécies vegetais.
Como era a segunda vez que
nos hospedávamos com a família da Nice, já conhecíamos os atrativos noturnos do
lugar, tais como, o céu estrelado, o luar, os cantos dos pássaros de hábitos
noturnos, o medo da onça e de outros animais que poderiam, segundo a imaginação,
chegar até o redário, tudo era atrativo. Por isso, com ou sem lua, as noite em
Jamaraquá foram quase todas em claro.
Mesmo durante o dia a
floresta é um mistério, a folhagem de árvores de tamanhos diversos tece uma
cortina fechada, ultrapassada apenas pelos sons, ou quando os raios do Sol
descobrem frestas entre as folhas, tornando o ambiente mais iluminado.
À noite, os sons que têm o
silêncio como pano de fundo, combinados com a escuridão, potencializam o que já
é misterioso durante o dia. Se não se dispõe de algum recurso para iluminação,
somente a claridade da lua ajuda a enfrentar o escuro da floresta. Independente
de qualquer luz, os mistérios ficam escondidos nas sombras das árvores e em
nossa imaginação. A floresta à noite é o habitar de seres reais, lendários e
imaginários. Uma folha que cai promove ruídos que torna qualquer pessoa medrosa
ou não, desperta.
Se esse todo mistério é
conteúdo para muitas histórias que nos levam à divagações ou a provocação do
medo, muito mais conteúdo oferece, quando os ruídos noturnos comuns, são
silenciados por uma orquestra estrondosa, com vozes indecifráveis para quem
mora na cidade. Sons que harmoniosamente vão variando em volume e tonalidade, que
se aproximam e distanciam dos ouvidos, como se o vento fosse o regente.
Mas a impressão de que o vento
é o responsável, se desfaz quando a partir de um grito, que se destaca dos
demais sons, faz quedar um silêncio também assustador, fechando assim a cortina
do palco imaginário com sons reais. A orquestra se encerra deixando a pergunta
- o que será que vai acontecer agora?
Permanecemos intactos e na
expectativa da chegada de um bando de… Sabe-se lá o que! A imaginação
frutificava, os bichos poderiam estar se aproximando, invadiriam o redário,
passariam por nós destruindo tudo, seguiriam os seus instintos de acasalamento ou
seja lá o que fosse, mas nos destruiriam. Com uma curiosidade latente ficamos
no aguardo de mais acontecimentos, numa espera inútil que devorava a noite sem
abreviar a aurora, o espetáculo chegara mesmo ao fim.
Foi difícil retomar o sono,
o que só ocorreu quando o dia espreguiçava-se para despertar. Somente no café
da manhã, o mistério foi desvendado, os cantores noturnos que nos fizeram
perder o sono, eram integrantes de diferentes bandos de macacos guariba.
O espetáculo foi dado
sequência pela manhã, quando alguns macacos zog zog também soltaram a voz.
Rosivaldo disse - os macacos da noite também visitaram a casa, ontem à noite.
Descrever esse espetáculo, com a mesma emoção que sentimos é algo impossível, o
universo de fauna e flora, encanta e amedronta quem desconhece a floresta. Mas
para quem mora na Flona, nada mais é que um evento comum, incapaz de tirar o
sono de qualquer morador.
O
necessário mundo das crenças
Nice é liderança em sua
comunidade, por quatro anos presidiu a associação do Jamaraquá. É liderança
também em sua família, todos recorrem a ela em busca de ajuda em qualquer
situação. Após o jantar a conversa, ainda à mesa, era esticada por contações de
histórias verdadeiras, que nas cidades são chamadas de lendas.
Aquele era o momento em que
afloravam conversas repletas de simbologias, crendices e vivências. Uma das
noites as crendices foram aprofundadas, a partir da chegada de um dos irmãos de
Nice, ele buscava ajuda por haver sido picado por um escorpião, contorcia-se de
dor.
Quando o irmão chegou, não
entrou na casa, ficou no quintal, no escuro chamando pela Nice, ela ainda
estava jantando e respondia ao chamado do irmão, pedindo que ele entrasse, mas
ele permanecia lá fora, até que ela levantou-se e foi ao quintal saber o que se
passava. Quando ela voltou para dentro de casa, soubemos que ele não entrou
porque a filha da Nice, Pricila, estava grávida, e de acordo com o que eles
acreditam, se alguém for picado por escorpião e ver uma mulher grávida, a dor
aumenta consideravelmente, tornando-se insuportável e podendo inclusive, levar
à morte do doente.
Nice teve que interromper o
jantar, para preparar diferentes remédios que fizessem parar a dor do irmão. Ralou
caroço de abacate e fez um forte café, que foram colocados sobre o local
ferido. Sem sucesso, alguns parentes levaram o rapaz para a casa da mãe dele
que ficava também na vizinhança, pois ela tinha a gordura da cobra jiboia,
remédio infalível, segundo a Nice.
Senti uma angústia diante
daquela situação, pois apesar da tecnologia que favorece os transportes e a
comunicação haverem chegado até a Flona atualmente, ainda impera a dificuldade
para o atendimento de saúde emergencial, principalmente à noite, quando não se
dispõe de transporte público.
No local não existe um posto
de saúde que possa oferecer atendimento de primeiros socorros, com medicamentos
para dor, até que o doente possa chegar a um centro apropriado. Poderia se
dispor de um profissional que seria chamado no momento necessário, já que o uso
de telefones celulares e motocicletas é amplamente utilizado pelos moradores.
Alguma medida simples que fugisse aos padrões políticos dos governantes, onde
primeiro é preciso realizar uma construção para que o serviço seja oferecido.
Mas o que estou mesmo a falar? Se até nos centros das capitais brasileiras, o
atendimento à saúde é precário. Há menos vontade política, de que as reais
condições de oferecer os serviços públicos.
O ocorrido com o irmão da Nice
trouxe à reflexão de como a tecnologia que chegou até a floresta, não levou o
suficiente para resolver pequenos problemas de seus moradores, mas pode se
levantar a hipótese, de que contribuiu para a perda do conhecimento
tradicional. Conhecimento que sofreu interrupção pelo desuso e desrespeito,
entre outras razões. Como podemos acreditar nas políticas de “saúde para
todos”, municipalização da saúde, descentralização de ações e outras falácias,
frente à realidade?
Histórias, consideradas
lendárias na nossa concepção citadina, envolvem os moradores da floresta e
alguns animais como, cobras, jacarés e onças por exemplo. Ainda naquela noite
de vivências e crenças, eles contaram que recentemente mataram uma cobra
sucuri, com mais de cinco metros de cumprimentos e cerca de cinquenta
centímetros de diâmetro, após matá-la eles abriram o animal e encontraram
“quarenta e seis ovos”, que segundo o filho de Nice, Rosivan, pareciam ovos de
avestruz.
Embora a sucuri seja
vivípara, a história contada acomoda-se bem num ambiente, onde as espécies são
diversas e seus nomes e características, são também adversos. São histórias
banais nas comunidades do Jamaraquá, Maguari, São Domingos e outras localidades
da Amazônia que constroem o universo dos habitantes das florestas, num misto de
experiências e lendas, que compõem a verdade local.
A última noite em “Jamaguaringos”
foi na propriedade de Luiz, da comunidade de São Domingos. Com as redes armadas
no redário que fica bem ao lado da casa da família e desvendados alguns dos ruídos
noturnos, dormimos sem medos, sem ruídos e sob um céu estrelado, o que nos
permitiu deixar os mistérios da floresta invadir as redes e sonhos, para nas
primeiras horas do dia seguinte retornar à Santarém. Mas o leitor não pode
esquecer que “Jamaguaringos” é o nome que eu e o Jorge criamos para englobar as
três comunidades de Jamaraquá, Maguary e São Domingos, portanto, não perca o
tempo procurando este nome nos mapas.
Enquanto esperávamos o
ônibus, antes do dia clarear, em frente a casa de Luiz, um tatu veio nos
espiar, mas fugiu assustado quando o descobrimos. Ali chegava ao fim a melhor
experiência que vivenciei, confirmando as convicções de que é possível viver
com muito menos consumo, de roupas, “incrementos alimentares”, cosméticos,
embalagens, sem perder os bons hábitos de higiene e de comer bem. Assim como a
certeza de que é possível, viver com mais silêncio, calma, alegria, segurança,
saúde mental e a paz que é relegada por uma vida urbana, atropelada e
financeiramente tumultuada. Posso garantir que não estou sendo romântica.
Ao longo de toda a área da
Flona que estivemos, tanto nas praias, quanto na estrada, observamos a grande
presença de lixo como, garrafas, latas de refrigerantes e de outras bebidas,
sacolas plásticas entre outros resíduos sólidos. Motivo que ocupa um bom tempo
do barqueiro Paulo Ganv, da Nice e de outros moradores locais, na limpeza
ambiental. Durante o tempo que escrevi este trabalho, enviei alguns e-mails
para o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade - ICMBio e para
a unidade do órgão, na Flona, com o fim de obter dados sobre o número de
pessoas que visitam aquela unidade de conservação - Flona Tapajós, mas o único
retorno que recebi, é que meu pedido seria atendido, mas não foi.
* Quarta crônica que integra o livro, ainda não
publicado, intitulado “Pelos rios ao sabor da fruta”, relato da viagem dos
artistas Eliana Castela e Jorge Carlos, realizada no período de setembro a
novembro de 2015, do Acre ao Ceará, com paradas em algumas cidades, a buscar a
relação que se estabeleceu entre as pessoas da Amazônia e do Nordeste, a
destacar as condições de vida das populações na atualidade. ELIANA CASTELA é
natural de Rio Branco. Ativista cultural, é formada em Geografia (bacharelado e
licenciatura) pela UFAC, especialista em História da Amazônia e mestre pela
Universidade Federal de Viçosa. Leia aqui a terceira crônica da série.
Pois é, minha amiga!
ResponderExcluirSó quando temos contacto com a Natureza (quase primordial) é que compreendemos a futilidade de tudo o que nos cerca no ambiente 'civilizado' da cidade.
A expressão 'dormir sob um céu estrelado', afinal não é só fruto da imaginação fértil dos poetas, existe na realidade e como ela nos faz compreender que somos absolutamente ínfimos no contexto do universo e de que somos parte integrante do todo que é a Mãe Terra.
Abraços aos dois
Reinaldo
Toda essa bagagem cultural do Norte que desafia crenças e dogmas é inquietante e, ao mesmo tempo, enriquecedor! Continuemos essa viagem com vocês...
ResponderExcluirExperiência sensacional. Quando iniciei a leitura pensei que o barulho era dos chamados macacos da noite ou gogó de sola. São bravos e diz o povo que ataca mordendo o pescoço do incauto.
ResponderExcluirExperiência sensacional. Quando iniciei a leitura pensei que o barulho era dos chamados macacos da noite ou gogó de sola. São bravos e diz o povo que ataca mordendo o pescoço do incauto.
ResponderExcluirPois é Reinaldo, os poetas sabem que a natureza é a mãe e que tudo vem dela. Os bobos separaram-se da natureza, mas não existe ex-filhos, por isso o vínculo não se rompe, melhor é continuar com a mãe.
ResponderExcluirRonaldo, você é um escritor e amigo que nos ensina muito. É uma satisfação imensa poder dizer algo novo, para você.
Agradecimento especial à Feras Produções, que contribui com outras informações do universo amazônico.
Vamos seguindo viagem.
Sua crônica nos leva a refletir sobre o isolamento social que essas populações mais longínquas sofrem. Também nos traz o prazer de imaginar como seria para nós estarmos também debaixo das copas dessas árvores. Sua coragem, sabedoria sempre me inspiraram e hoje ainda mais, mas não imaginava que suas escolhas científicas poderiam nos trazer tantas iluminações, na medida em que você se dedica a coletivizar as experiências de pesquisa que vem desenvolvendo. Obrigada amiga. Força na continuidade daquilo que você sempre fez e faz.
ResponderExcluir