Para
quem nasceu no Acre, ser filha e neta de cearenses é tornar-se guardiã para a
entrada de novos conterrâneos dos ancestrais, e porque não de todos os
nordestinos? O papel de dar a eles as boas vindas tem rendido amizades
estreitas. É como receber os parentes que se perderam na distância do tempo e
no espaço.
No
Ceará também as portas estiveram abertas, a começar pela calorosa acolhida em
Fortaleza, na casa de Natasha, João e seu filho Tomás, este, gentilmente nos
cedeu o seu quarto. Deles recebemos carinho, atenção, a chave da casa, para ter
o conforto de sair e chegar a qualquer hora e acordar a hora que bem
entendesse. Ganhamos até presentes - uma pimenta saborosa e um livro muito
especial do qual falarei no próximo capítulo.
As pessoas que nos hospedam, em tantas viagens, sempre nos dão
presentes, já ganhamos até dinheiro em espécie.
Com a casa de Natasha a
nossa disposição, usufruímos de todos os espaços, o quarto para o descanso
etc., e tal; da sala aproveitamos, até mesmo para receber o querido amigo,
professor e poeta, Stélio Torquato, que é parceiro de Jorge, no livro, “... e a
gente brincava assim”, em vias de ser publicado. Stélio na companhia de sua
querida Alexandra Rodrigues, só nós quatro, em menos de duas horas fizemos um
grande encontro, com poemas, músicas, fotografias que registraram aquele curto
tempo cheio de abraços, beijos e trocas de livros. Foi o primeiro encontro
pessoal entre nós quatro. Hoje a internet oportuniza novos e bons amigos, o
primeiro encontro é na verdade um reencontro.
Também fizemos bom uso da
cozinha dos amigos João e Natasha, onde o Jorge fez, nos moldes de antigamente,
apertando entre os dedos, para retirar a polpa, dois maravilhosos sucos e nunca
antes experimentados por nós, de seriguela e umbu-cajá. Esta última fruta, eu
nem conhecia. Garanto ao leitor que não é exagero a ênfase ao fruitivo sabor
dos sucos.
Depois de instalados, rua,
circular pela cidade, descobrir praças, monumentos, pessoas nos seus cotidianos
e claro, as bancas de frutas. Em cada esquina um novo palato, novas formas e
outras cores das frutas da região. Com tantas andanças era recomendável dar uma
volta ao futuro - a praia do Futuro. E se não fosse a chuva a nos mandar para
casa, teríamos comido o caranguejo do Chico.
A
acolhida continuou em outras cidades do Ceará. Nélia, cearense, foi morar no
Acre e por lá estabelecemos uma boa amizade, a ponto de considerá-la
amiga-irmã. Nélia me falou tantas vezes de sua irmã Adinari, que mesmo sem
conhecê-la criamos um vínculo de amizade. Ambas assistentes sociais, em duas
regiões carentes do país, uma na Amazônia e a outra no Nordeste. O exercício da
profissão deu a Nélia e Adinari a oportunidade de conhecer a pobreza que tem
características definidas na cor, sexo e condição social. Muitas vezes são
gentes invisíveis na sociedade.
Conhecer Adinari estava
escrito nas estrelas, nosso encontro foi caloroso, semelhante a encontrar
velhos amigos. Ela nos levou para um fim de semana em Trairí, na casa da sua
mãe, onde fomos recebidos com simplicidade e nobreza. Com redes para dormir,
boa conversa e mesa farta, quando pudemos deliciar, o “melhor peixe no leite de
coco, do mundo!”- nas palavras de Aline, filha de Adinari, neta da responsável
pela iguaria – Madalena, a matriarca.
Mas o fim de semana foi além
de Trairí. A viagem de carro de Fortaleza até lá, deu direito a passar em
outras pequenas cidades e por menor que elas fossem Adinari abordava algumas
peculiaridades do lugar - histórias,
lendas, belezas, projetos governamentais, indústrias, lagoas, praias que
embelezam a paisagem e bobinas eólicas que mancham o belo visual das dunas, das
lagoas e das praias, ao longo do horizonte. Logo na saída de Fortaleza passamos
por Caucaia, cidade que tanto meu pai falava, mas apenas passamos.
No percurso entre Fortaleza
e Trairí, um dos destaques foi a “Monstra”. De acordo com o mito, ainda pouco
conhecido, ela se instalou no município de São Gonçalo do Amarante, ocupa uma
boa dimensão de terra e bebe três vezes mais água, que toda a população de
Fortaleza, em um mês. Ela é assustadora!
O mito da “Monstra” foi
construído a partir da instalação da Companhia Siderúrgica do Pecém, empresa de
capital misto, que tem como sócias, as empresas Sul Corena, Dongkuk Steel e a
Posco, com a Companhia Vale. Sim, a Vale, aquela que também é culpada,
juntamente com a empresa Samarco, pelo rompimento da barragem, na cidade de
Mariana, no Estado de Minas Gerais, em novembro de 2015, que gerou morte,
desabrigo de pessoas e destruição ambiental.
O mito foi construído em
meio às contradições do capital. Se a região Nordeste tem o lamentável
histórico da seca, como pode haver um alto investimento na região, destinando à
siderurgia, um volume tão considerável de água para a produção de aço,
destinado à exportação, quando as pessoas não têm água para produzir suas
próprias comidas? Certamente alguém defenderá o projeto, considerando que, a
balança comercial, a geração de emprego e outros elementos da economia de
mercado, são fatores que explicam e justificam a manutenção da “Monstra”.
O banho de mar na praia de
Flecheiras e nas lagoas que se formam ao longo da praia, transformou todos nós
em crianças, completou o passeio em Trairí e fez nascer novos laços com os
demais membros da família de Adinari e Nélia, destacando Aline e Davi, este,
também filho de Adinari, ambos adolescentes, que interagiram conosco ao longo
de toda a viagem, num clima muito amistoso.
No Santuário de Padre Cícero, Samuel a nos socorrer
Fortaleza é a cidade natal do meu pai e o Theatro José de Alencar, que é uma das maiores referências da cidade, remete diretamente a ele. De sua vida, nós os filhos, soubemos apenas fragmentos. Marcou em nossas memórias as carências materiais e afetivas que ele viveu, bem como, o desejo de libertar-se da opressão familiar, com o sonho de ser ator. Fernando de Castela, como ele se chamava, quando ainda era garoto, chegou a despertar o interesse do ator e dramaturgo Procópio Ferreira, quando o artista esteve em turnê, em Fortaleza.
No Santuário de Padre Cícero, Samuel a nos socorrer
Fortaleza é a cidade natal do meu pai e o Theatro José de Alencar, que é uma das maiores referências da cidade, remete diretamente a ele. De sua vida, nós os filhos, soubemos apenas fragmentos. Marcou em nossas memórias as carências materiais e afetivas que ele viveu, bem como, o desejo de libertar-se da opressão familiar, com o sonho de ser ator. Fernando de Castela, como ele se chamava, quando ainda era garoto, chegou a despertar o interesse do ator e dramaturgo Procópio Ferreira, quando o artista esteve em turnê, em Fortaleza.
Procópio Ferreira chegou a ir
a sua casa, para levá-lo junto com a trupe, mas a tia o escondeu, frustrando
assim o seu plano de fuga. Embora ele não tenha realizado seu sonho,
influenciou-nos fortemente a perceber que a arte, não se limita a imitar a vida
e que a poesia promove mudanças. Mas, assim como, não fomos ao Maranhão em
busca de prováveis heranças materiais, também não fomos à Fortaleza investigar
a vida pessoal, do meu velho poeta. Fomos ao Ceará, pelos tantos cearenses que
migraram para a Amazônia, na época da borracha, e pelos que continuam migrando
até hoje, não apenas por causa da seca, mas pela mesma aridez política de
eternamente.
Mas o que tem fortaleza a
ver com o Padre Cícero? No nosso caso, é o livro que nos foi presenteado, pelos
amigos João e Natasha - A Cabeça do Santo, de autoria de Socorro Acioli. A
escritora escreve sem ferir a religiosidade de quem quer que seja, mesmo
abordando os que creem, os que não creem, os que fingem crer, para se
aproveitar dos que precisam crer, e
outros temas mais. A leitura do livro foi excelente para preparar o terreno da
visita ao santuário do Padre Cícero, na cidade do Juazeiro do Norte, além de orientar
numa experiência particular que nos ocorreu, conforme relatado mais à frente.
Conhecer o Juazeiro do Norte
para nós, nada teve a ver com uma religiosidade própria e sim, com a
religiosidade de pessoas que depositam na imagem do Padre Cícero, a esperança
de vencer as dificuldades da vida, a falta d’água, as doenças, a pobreza, a
fome, a solidão… Muitos desses problemas poderiam ser solucionados, se não
fossem os vícios políticos, o sistema cruel que atravessa séculos mantendo
mazelas como as causadas pela seca no Nordeste.
Visitar os templos e
santuários é visitar a realidade dos povos. A religiosidade popular é própria
da humanidade. A busca do sagrado e a crença num ser divino é o que concede
respostas para muitos povos. No entanto, a religião traz elementos doutrinários
que podem levar ao distanciamento da religiosidade, enquanto manifestação
cultural de um povo, mas esse é um território problemático, inadequado para ser
abordado neste trabalho, que pretende apenas dizer as impressões da visita ao
Horto santo do Juazeiro e como isso decorreu.
Estátua do Padre Cícero, Juazeiro do
Norte Foto: Oliveira de Castela, 2015 |
No ônibus, ao longo do trajeto que conduz à
colina do Horto, de longe pode ser avistado parte do Santuário, de tão alta que
é a construção. A estátua de Padre Cícero também é imensa, tem 27 metros de
altura. O tamanho da estátua sugere o poder do santo para os devotos. É curioso
chegar perto do cruzeiro, onde as velas acesas choram grossas lágrimas de cera,
pelos pedidos almejados, concretizados e não realizados. Observar os ex-votos
amontoados é como se estivéssemos a olhar um ambiente, após uma catástrofe sem
sobreviventes, que juntamente com fotografias e outros objetos deixados, em
meio ao apelo, dúvida e certeza do atendimento, sugere, contraditoriamente, um
cenário de medo. Esse todo pôde ser observado desde o centro da cidade do
Juazeiro do Norte até o Santuário.
O horário em que fizemos a visita era por volta de meio dia, o sol estava tinindo, como costumamos dizer, o que nos impedia de olhar por muito tempo, para a estátua, branca e reluzente de doer nos olhos.
O horário em que fizemos a visita era por volta de meio dia, o sol estava tinindo, como costumamos dizer, o que nos impedia de olhar por muito tempo, para a estátua, branca e reluzente de doer nos olhos.
Terminamos a visita e
descobrimos que o próximo ônibus que nos levaria do Santuário a estação do
metrô demoraria muito. A distância era considerável, juntamente com o forte
sol, não era nada recomendável a quem não estava lá em penitência descer aquela
imensa colina. Como não havia táxis disponíveis, resolvemos arriscar e pedir
uma carona.
Sem nenhuma cerimônia demos
a mão para um carro. O motorista fez a gentileza de parar e se desculpar por não
dar a carona, disse que estava indo na direção oposta. Desolados, mas atentos a
outros carros ficamos no ponto do ônibus, qual não foi a nossa surpresa, quando
após cerca de quinze minutos, o carro, ao qual o motorista se desculpara por
não nos atender, parou convidando-nos a entrar. Disse que iria apenas “apanhar
uma mulher” e então seguiria para nos levar à estação do metrô.
Depois descobrimos que a
“mulher” que ele se referira era a mãe dele. Ela chegou ao seu destino e
seguimos viagem com ele. O rapaz, que até então tinha se mantido calado,
começou a falar do cotidiano, dando demonstrações de arrogância e
individualismo, nada condizente com sua atitude, quando parou a primeira vez,
para justificar-se por não nos atender, assim como haver retornado e oferecer a
carona, como se fosse um compromisso próprio, e era. Fazendo um hiato no tom de
sua fala até então, ele disse - nós temos a maior atenção com os peregrinos,
tudo que pudemos fazer por eles, nós fazemos!
A expressão dele provocou em
mim um acesso de riso, quase incontrolável. Isso aliado ao medo que Jorge, meu
companheiro, não se contivesse e revelasse que não éramos peregrinos e o rapaz
tivesse a reação de nos deixar no meio do caminho. Mas tanto Jorge, quanto eu, assumimos a
postura certa, não revelamos que éramos apenas turistas, para evitar que
acontecesse o ocorrido com Samuel, personagem do livro, A Cabeça do Santo, de
Socorro Acioli, acima referido.
Samuel passou fome e sede,
entre outras privações, ao longo da caminhada, saindo do Juazeiro do Norte, até
Candeias, a fim de atender ao último pedido de sua mãe. Quase desfalecido, ele
foi socorrido por uma família de peregrinos, que o deram de beber, amenizado o
cansaço, quando então, ele revela não ser peregrino… Bem, o que aconteceu com
Samuel, os curiosos terão que ler o livro e descobrir. O fato é que para nós,
Samuel serviu de lição.
Leiam aqui as crônicas anteriores:
- Primeira: O início é no Cai N’Água
- Segunda: Capitais da borracha
- Terceira: A “Pérola do Tapajós”
- Quarta: Uma noite de medos e macacos
- Quinta: Infâncias roubadas na Amazônia
- Sétima: O Cariri que nos habita
Ah! O Ceará e seus mistérios, sincretismo... Dizem os cientistas que nosso cérebro necessita de muita água! Com tanta escassez, como a cabeça deles é tão grande? E essa gama de talentos que alegram o país inteiro numa demonstração de grande conteúdo cerebral? O Pe. Cícero, homem que foi muito inteligente e proclamou a si mesmo como santo também deu título a Lampião e quem contestaria tal autoridade? Difícil mesmo é ser tão hospitaleiro quanto o nordestino... E vamos viajando aos sabores de um "beijo travoso de umbú-cajá", como cantou Alceu Valença em sua Morena Tropicana! Muito legal, peregrinos amigos Eliana Castela e Mané do Café (vulgo Jorge)!
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ResponderExcluirÉ espantoso como essa viagem pelas terras do Nordeste, onde o chão é tão árido e, no entanto, todos os caminhos por onde têm passado são tão verdejantes de amizade e de hospitalidade.
Tem sido uma bela viagem pelos campos da fraternidade, da cultura e de um Brasil que pouco (ou quase nada) aparece no Jornal Nacional.
Continuo a viajar com muito prazer por esse mundo desconhecido (pelo menos para mim) na companhia dos meus queridos amigos Eliana e Jorge.