Andarilho qualificado dos rios. O fruto
principal do rio. O senhor absoluto do rio. A chegada do gaiola à cidadezinha
dispersa a neblina da distância e do isolamento. Surgem as formas de um ser
metálico, navegador de padrão ao pé de cada rio, na linha precisa do rastro da
civilização. Belém do Pará e Manaus, as cidades dançam nas imaginações locais,
clareiam desejos e esperanças, sabem nos cercar de oferendas e de atrativos. Os
gaiolas são naus das cidades, corpo e leme a guiar a alma de Belém e Manaus
através de ínvios rios e de cidadezinhas como a nossa, adormecidas no verde.
O gaiola apita antes de chegar. Ainda ninguém
o vê, a volta do rio cinge-lhe o vulto, há o barulho das máquinas, decomposto
no ar. Súbito, ele aparece, o rio está cheio, a silhueta brota acima das
margens. Logo se identifica, o logotipo da empresa pintado na chaminé. Uma estrela,
uma cruz, uma letra, um círculo, uma cor específica. Da janela, em lateral do
barracão, vejo-o atracar no barranco da cidadezinha. Rolos de fumaça galgam a
chaminé e atingem rampas de nuvens baixas. Acredito, pio, o que me dizem, as
fumaças vão para o céu, viram nuvens, elas se purificam em flocos de algodão,
os santos enxugam com elas as lágrimas de ver tantos pecados na Terra.
Ter-se um gaiola no porto, estar-se próximo
ao espírito civilizado, ao corpo das relíquias materiais. Todos consomem um
ambiente de promessas, de renovação, que o gaiola é seu pastor, a flauta de
sons maviosos. Traz o sortido de coisas para agradar sonhos e necessidades. Artigos
de uso e de consumo. Imprevisíveis, belos, sofisticados. Abarrotam as lojas da
ponte.
Visto o gaiola, na companhia de meu Pai. Aquilo
que vejo e ouço é sopro do meu grande anseio de conhecer Manaus e Belém do
Pará. Enquanto meu Pai trata de negócios, escapo, através dos conveses. Peregrinação
de alvoroços, o espírito exultante, olhos feitos para captar e fixar. O dispenseiro
de bordo me oferece biscoitos e bombons da Fábrica Palmeira, de Belém do Pará,
matéria e cor de vida que aclamo com o delicioso sabor do fruto interdito.
O deslumbramento das engrenagens complexas do
navio, o maquinista me apontando a caldeira enorme, de entranhas vermelhas, a
dança diabólica do fogo que a lenha alimenta, as máquinas de propulsão das duas
hélices, os clarões brancos do vapor misturado com pingos d’água fervente, a
desomposição em cheiro indefinível, um assobio monótono, monocórdio. A retórica
dos engenhos parados, na minha frente, sobrepõe-se à razão. Só o motor da luz
elétrica, matraqueando sem espalhafatos um falar mecânico, ininterrupto,
abafado. O espaço conciso do gaiola torna-se, para mim, o centro de gravidade
do mundo. Ele não cumpre a dinâmica dos espaços, não demarca as cidades que
ardo em desejo de conhecer? O gaiola implanta-me horizontes oferecidos, tácitas
experiências, repousa sobre a imaginação justaposta ao maravilhoso.
Havia, ainda, outro refúgio dourado para
atear flama a minha alma. A mala remetida pela nossa família, em Belém do Pará.
Minha Mãe, de tempos em tempos, fazia encomendas a minha avó de roupas e de
objetos de uso especial. A mala de Belém, uma arca de tesouro. Queria adivinhá-la,
que roupas, que presentes me serão reservados? A contagem regressiva dos dias,
para a vinda do gaiola, a frequência da fantasia. Afinal, aberta a mala, o
primeiro sopro de cheiro do Pará, fina exalação dos substratos, ainda
desconhecidos. Pouco a pouco, descobriam-se as cores, as formas, os
destinatários das peças arrumadas na mala. Uma cerimônia assistida pela
família, com exclamações e comentários. Ritual exclusivo de minha Mãe, abrir a
mala, desvendar os segredos daquela carga suave. A graça, o prazer alegórico, o
permanente odor do cheiro de papel, especialidade da alquimia florística
paraense, transcendiam o momento. Liturgia, acenos, fragrâncias que se ligaram,
para sempre, à mala trazida pelo gaiola.
Quando o navio parte, vislumbro-o nas lentas manobras, até que a proa, antes postada para cima, torneie o rumo, encontre o posicionamento certo, domínio de rio que lhe rasga o caminho de volta às cidades, os porões cheios de borracha. Formidável vulto. A chaminé despoja-se de fumos escuros da caldeira de chamas voláteis. Os apitos de despedida, longos de saudade, abrem os ares com vapor branco. O mesmo vapor assistindo a rotação das hélices, mandíbulas corroedoras de água para a energia e a ação do movimento. Faz-se um grande vazio. Na paisagem e dentro de mim.
Quando o navio parte, vislumbro-o nas lentas manobras, até que a proa, antes postada para cima, torneie o rumo, encontre o posicionamento certo, domínio de rio que lhe rasga o caminho de volta às cidades, os porões cheios de borracha. Formidável vulto. A chaminé despoja-se de fumos escuros da caldeira de chamas voláteis. Os apitos de despedida, longos de saudade, abrem os ares com vapor branco. O mesmo vapor assistindo a rotação das hélices, mandíbulas corroedoras de água para a energia e a ação do movimento. Faz-se um grande vazio. Na paisagem e dentro de mim.
- Imagens: "Álbum do Rio Acre: 1906-1907", de Emílio Falcão.
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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
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