terça-feira, 29 de novembro de 2016

O FESTIVAL DE CINEMA PACHAMAMA E A CONDIÇÃO COLONIAL DO AUDIOVISUAL NO ACRE

João Veras

Tenho como indiscutível a importância do Festival Pachamama para o cinema latino americano, para o brasileiro e para o acreano (existe!) como um evento que difunde, promove visibilidade e provoca o pensar sobre as audiovisualidades produzidas nestes territórios geoculturais - que é também refletir sobre a nossa condição latina - como processo político e estético muito mais que como mero produto de consumo/entretenimento. Este é um aspecto que carrega outros não tão expressos. Pretendo aqui pensar a respeito.

O Pachamama, todavia, com essa grandiosidade de importância, não passa de una isla pequenita afastada em um lugar distante e sem tradição na cena cinematográfica do continente para a qual alguns poucos – muitos poucos – visitam/frequentam anualmente procurando acessar películas contemporâneas que estão fora do esquadro da indústria mundial do cinema. Para aonde outros buscam reconhecimento/troféu/título/currículo, aprendizagem, troca, trabalho, grana, ocupar tempo, amizade, paquera, diversão, aprendizagem, entretenimento... Alguns se limitam a cumprir a nobre missão social de abrir e fechar o evento, quando o foco público mesmo reduzido é maior, coisa de poucos socialites e políticos da aldeia. Imaginam: é fashion, é de vanguarda, talvez popular... Os demais destas turmas, nem isso, passam ao largo. Vade-retro, devem pensar.

Não por falta de divulgação, o público escasso é quase sempre o mesmo. O Festival se esforça em não passar em branco para a plateia e sai tentando se espraiar pela cidade. Muitas sessões e debates são salvos (sobretudo em quantidade) por professores e seus alunos espantados com o que não é Hollywood. Motivos todos legítimos! Ninguém é obrigado a gostar (nem entender) de cinema, muito menos daquele tipo tão estranho à massa celebrado pelo festival. Findo o evento, quase todos retornam à sua rotina cômoda de consumir o mesmo em suas telas privadas. Ano que vem a ilhazinha aportará de novo. Massa!

Insisto na figura da ilha para também pensar a relação do festival com a realidade local. Interessa-me aqui tratar da influência e importância para nosotros que ficamos depois da badalada Pachafesta. O que faço não é só como contraponto para o não local, para los otros. Não que o evento deva ser responsabilizado pela política audiovisual desde aqui. Trata-se de pensar com ele e a partir dele – porque com ele sinto uma sugestão de que estamos bem nesta área – e além dele – pois se trata de um evento, como todo aquele dependente de verba estatal com a qual é possível a sua realização e sem a qual vira tão-somente mais uma lembrança do que um dia aconteceu nesta terra do “já teve”. É necessário ter muito claro os seus caracteres, de índoles precárias, tanto temporário quanto de dependência – dois dos seus limites.

Há sete anos que o festival é realizado em Rio Branco. E tem acontecido, ao que me parece, sempre com apoio dos poderes governamentais locais. Todavia, estes mesmos poderes, especialmente da área cultural - nesse período (e também antes) jamais ofereceram qualquer política de Estado voltada para o estímulo e apoio para o vídeo e o cinema da região. Se este apoio ao festival – que é muito pequeno (tendo em vista que o evento tem sido sustentado basicamente por verba federal) – é, para os governos locais, as suas parcelas de apoio ao audiovisual da terra, então reafirmo: continuamos sem política para área, inclusive sob o ponto de vista de um acesso democrático e participativo.

Noutro aspecto, reduzir uma política de audiovisual apenas ao intercâmbio (dado como um dos fortes objetivos do festival vinculado ao apoio oficial) não basta, sobretudo esta espécie de intercambio em que a reciprocidade não funciona, tendo em vista que sugestiona – senão patenteia - um “lugar de fora” a partir do qual o conhecimento esperto advém. Em regra, quem julga, quem palestra e quem ensina é “de fora”, o que coloca o de “dentro” na outra ponta “oca” da condição de saber e poder. A velha métrica colonial.

O fato dessa efetiva ausência de política cultural para o audiovisual local reflete diretamente na própria programação do festival que, a cada ano, tem dificuldade de atender à necessária (imagino) cota de filmes acreanos. Nem pensar incluí-los no rol das obras competitivas. Acho que nestes sete anos tal fenômeno nunca aconteceu. Não somente pela noção de qualidade que os festivais impõem, mas por falta mesmo de obras. E porque falta qualidade e porque não tem obra? Buscar respostas para estas perguntas, penso, é fundamental.

Nesse sentido, no último dia do festival, numa tarde quente de sábado, “foram rodados” três filmes que estavam fora da competição e qualificados na programação como parte da Mostra Amazônia. Os três foram feitos no Acre e sobre o Acre. Nenhum teve qualquer apoio dos poderes públicos nem locais nem federal. Um deles faz questão de dizer isto, com todas as letras, na sua abertura. O que demonstra que, apesar da ausência do Estado, como fomentador da expressão audiovisual e garantidor do constitucional direito cultural, a produção resiste. Não tenho dúvida de que se fossem feitos com melhores condições (estrutura, equipamento...), o que significa com verba suficiente para suportar os desejos criativos, tais obras estariam não na programação de mostras em uma tarde quente de sábado, mas na competição e para além das fronteiras locais. Quem sabe assim, para o cinema latino, esta fronteira distante não seria tão distante e o evento não seria tão ilha.

Em alguma das edições do festival, as condições de produção locais do vídeo e do cinema foram de fato debatidas em sua programação oficial. Sei que o “pessoal do audiovisual” nesta oportunidade reclamou política pública para a aérea. Lembro que foi realizado um evento especial a respeito, inclusive com a chancela estatal. Apareceu até uma associação nacional de vídeo com representação local. Mas nada foi feito. E tudo se aquietou. Talvez o debate tivesse no fundo tal intento (coisa de doido). E o Pachamama – essa é a minha impressão – deixou de tocar nesse assunto, pelo menos de forma direta, objetiva, enfática. A sensação que tenho é que as discussões de seu interesse estão voltadas ou para questões técnicas ou para os temas – no campo da política - que o cinema latino americano (vale dizer, tudo que se faz fora daqui) trata. Sobre a política local, nada. Na verdade, outra intuição que tenho é que o “pessoal” do audiovisual daqui “não gosta muito” de produzir algo que trate – de forma crítica – dos poderes constituídos locais. E olha que só estou me referindo à questões em torno da política cultural do audiovisual! Eu compreendo as razões. Não vivemos ainda em plena liberdade de pensamento e criação. Especialmente se essa liberdade pretender ser exercida com dinheiro público. Havendo o mínimo de indícios de crítica a resposta é enfática: no hay dinero. Quem vive aqui sabe como funciona o “nosso” regime democrático. Penso que realizar um filme a tal respeito nos colocaria na tradição da crítica de um certo cinema latino, certamente. Enredos temos de sobra.

Fachada do Cine Teatro Recreio anunciando o Festival Pachamama 2016
Nesta edição do Festival, a Secretaria de Estado de Comunicação e a Fundação Aldeia – e não a Fundação Estadual de Cultura Elias Mansour, foram homenageadas. Ambos os fatos significativos. A justificativa da homenagem consta da matéria jornalística produzida pela agência de notícias do governo: “Como forma de reconhecimento pelo apoio [ao Festival] ao longo das sete edições.” Em síntese, pela divulgação do evento. Legítimo o reconhecimento. É claro que a divulgação é importante. Mas, para os interesses locais, sem obra para que serve a divulgação? Nesse sentido, penso que o festival (não necessariamente a sua organização mas especialmente a cena que alberga), pelo seu caráter, poderia – senão deveria - se comprometer, neste exato aspecto, de forma explícita e concreta, com os interesses da produção local, o que faria não exatamente celebrando quem muito pouco faz pela produção, mas questionando a ausência de política pública para o audiovisual local. É de conhecimento público que a TV Aldeia há tempos que não produz nada. Nem programa de entrevistas com os políticos alinhados. Não preciso nem falar no que diz respeito a apoio à produção do audiovisual local. Infelizmente, o sistema de comunicação do Estado – especialmente pelo meio televisivo – tem se reduzido à difusão diária de dois produtos: um pequeno telejornal de caráter oficial e a retransmissão da programação do sudeste. Agora não estou a tratar de uma impressão mas de fato. Devemos agradecer por isto?

Desejo que o Pachamama, como um dos importantes hospedeiros/difusores temporais do cinema latino americano contemporâneo, tenha efetivamente uma razão local de existir (em torno de uma produção audiovisual a partir do olhar daqui) e não se acomode no papel de um tipo de “laranja” da audivisualidade externa (com as suas qualidades e importâncias) e de uma espécie de capa que tem contribuído para acobertar, de alguma forma, o violento déficit de política cultural local no campo do audiovisual. 

Não merecemos viver somente para expectar/reproduzir o que vem “de fora” (mesmo que este “de fora” não venha da Hollywood colonizadora), tampouco silenciar frente a uma forma velada de política estatal de censura ao audiovisual (especialmente em sua potência de criticidade). Será que a condição colonial - contra a qual, em regra, o cinema latino americano se debate historicamente - ainda permanece e se fortalece justamente no contexto do evento que se propõe a homenagear a resistência? Que martírio é esse, Acre?

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