Minha
filha:
Hoje
é teu aniversário. Embora esta carta só te chegue às mãos daqui a uma semana,
faço de conta que aprisionei o tempo neste papel, feito passarinho na gaiola, e
te envio minhas bênçãos e um beijo, desejando que este dia seja de felicidade,
ao lado de teu marido e de teus filhos. Também quero aproveitar para te contar
as novidades.
Minha
filha, esta guerra está trazendo muita miséria à nossa cidade. Cada embarcação
que chega despeja nos barrancos centenas de nordestinos, convocados como
“Soldados da Borracha”. Os pobres “arigós”, enquanto esperam a baldeação –
alguma lancha ou batelão que os leve para os seringais –, ficam embaixo das
mangueiras, e matam a fome comendo mangas. A rua da frente é uma fedentina só:
todos com diarreia. As autoridades conseguiram, provisoriamente, alojá-los na
antiga Fábrica de Castanha, no Quinze. Estão lá amontoados feito bichos,
famintos, doentes, esmolando. Mas cada chatinha ou gaiola que chega, são mais
“arigós”, mulheres, crianças, e agora o prefeito botou algumas famílias na casa
da Hemita, aqui no Beco.
Não
sei se te contei, na outra carta, que Hemita morreu. Foi muito triste, minha
filha. Ela pegou aquela doença, não cuidou, e a sífilis tomou seu corpo
inteiro. Por causa disso, os homens andam arredios, e o jornal vive falando que
as mulheres do Beco-do-Mijo estão todas infectadas, que a Saúde Pública não
toma providências, que somos um cancro social plantado em plena zona comercial,
um vexame para as famílias. E com essa desculpa, mais a chegada dos “arigós”,
exigem que nos mudemos. Para onde? Na última alagação o rio arrasou tudo que
foi casa do “Papoco”. No “Porta Larga” é longe e perigoso, e nem tem mais
lugar.
Doutor
Chico Chagas, faz vinte anos, vinha me prometendo comprar uma casinha pra mim.
Você lembra que ele sempre foi muito bom: tratou você como filha, lhe deu
estudo, o enxoval de seu casamento, a promoção de Eurico, e nunca me faltou
nada, nem mesmo quando aquela tal professora Zuzu espalhou na cidade inteira
que ele ia casar com ela. Casava nada! Aquele era enrabichado por mim. Quem é
que ia querer um homem doente? Só eu mesma pra cuidar das mazelas dele, ele
sabia. Lembra que ele só me chamava de sua Ana Néri? E, na intimidade, eu era a
deusa de seus sonhos, Heddy Lamar, o Anjo Azul, Giselle. Li o livro da tal
Giselle. Depois que você casou e foi embora, pra não pensar na vida, ficava
lendo. Gosto de ler. Doutor Chico Chagas trazia um livro todo sábado. Na
segunda ou na terça-feira, eu ia buscar outro no quarto dele, no Madrid.
Escondido, é claro. Um homem de importância dele, que já foi Diretor da
Instrução e falam até que será governador, não podia aparecer com uma
mulher-da-vida. Não importando que eu não fizesse mais a vida. Depois que você
nasceu e ele tomou conta de nós, nunca mais recebi outro homem, mas onde foi
casa é tapera, diz o povo, que não perdoa. Acho que por isso ele não casou
comigo e nunca moramos juntos. Mas sempre prometeu comprar-me uma casinha. Aqui
perto, mais fácil de ele chegar, e voltar pro seu quarto. Mês passado, veio o
delegado de polícia e deu prazo de noventa dias para que todas as casas do
Beco-do-Mijo sejam desocupadas. É pra abrigar os “arigós” (desculpa deles).
Fomos logo ao Fórum falar com doutor Chico Chagas. Como advogado quem melhor
que ele pra orientar e defender a gente? Pois ele me tratou mal, igual tratou
as outras mulheres, e disse que isso era caso de polícia, e não de justiça. De
noite mesmo veio aqui em casa, até levei um susto porque não era sábado, e
fazia muito tempo que ele não vinha. E veio zangado. O que ele me disse, filha,
não repito, é muita humilhação para uma mulher que viveu vinte cinco anos de
sua vida para um único homem, sem jamais ter exigido nada. Ele dava só o que
queria, eu recebia, obrigada. Depois saía escondido igual tinha chegado. Não
fui pedir nem que me desse uma casa, bastava dar um jeito de a gente continuar
onde estava. E ele saiu com quatro pedras na mão. De noite, então, só não me
bateu porque eu estava com dor de dentes, o rosto inchado por acolá. Assim
mesmo procurei me desculpar, agradá-lo, e sabe o que ele me disse? (tenho
vergonha de contar...) Disse que não me devia nada, que eu olhasse minha cara
no espelho, velha azul desbotada, barriguda, pelancuda. Cabelos de Heddy Lamar?
Só se cabelo de milho seco tinha mudado de nome. Que mocinha nova no “Porta
Larga”, monte de “arigozinhas” bonitas faziam qualquer coisa por uma cerveja ou
um quilo de farinha com rapadura, e ele era muito homem pra dar conta do
recado, não precisava ficar com uma velha mazelenta que nem eu.
Faz
dois meses que ele não aparece. Diz-que está amigado com uma “arigozinha” de
quatorze anos, e até botou casa pra ela na “Seis de Agosto”. No outro dia fui
ao Madrid, ela estava lá tomando cerveja com ele. Escancarado. Comigo era só
escondido. Nesse dia não conseguir falar. No outro dia voltei lá, pedi pelo
amor de Deus que ele me ajudasse, e fui enxotada feito cachorro leproso.
Estava
passando fome, não tinha pra quem apelar, resolvi voltar à “vida”. Três noites
seguidas fiz ponto no Papoco, e o dinheiro que recebi de um seringueiro bêbado
mal deu pra comprar um quilo de carne. Fui pro “Porta Larga”, e as meninas me
chamaram de vovó. Os homens riam, um me pegou pagou uma cerveja e perguntou se
eu não sabia fazer croché. Ontem um rapazinho queria porque queria que eu fosse
com ele, e toda hora dizia que eu era igualzinha a sua mãe. Deu-me todo o
dinheiro que tinha, que eu guardei pra depois lhe devolver (tem muito ladrão no
“Porta Larga”). Pois a polícia queria me prender, porque o rapaz era “menor”,
aquele dinheiro era do cunhado, passei a noite na delegacia.
Minha
filha, o prazo para desocupar a casa termina na outra semana. Não tenho pra
onde ir, e não quero continuar nessa vida. Não é que eu esteja velha, não,
muito rapaz bonito me olha. Pintei o cabelo, e com a saia franzida que eu mesma
fiz, até estou com corpo bonito. Doutor Galvão está tratando dos meus dentes,
de graça, ele é um homem muito bom e caridoso. O que incomoda, mesmo, são as
varizes. Também não estou enxergando direito. Mas dá pra fazer uma costurazinha
pra meus netos, e ajudar você na casa. Estou com muitas saudades de você. Sei
que Eurico, seu marido, não gosta muito de mim, mas não pretendo viver às suas
custas. Posso costurar e ajudar nas despesas, dar uma orientação nos estudos
das crianças, só preciso de um cantinho quieto, pra quando a velhice chegar.
A
lancha que está levando esta carta volta em seguida. Espero sua resposta. Ou
você pode me passar um telegrama, assim eu aproveito uma passagem que Domingos
Jordão me ofereceu, na “Lontra”.
Beijos
de sua mãe.
Mãe:
Recebi
sua carta. Estou escrevendo às pressas, escondido de Eurico. Ele não permitiu
sua vinda. Disse que doutor Chico Chagas prometeu indicá-lo para Comandante do
Destacamento da Vila, e não fica bem a um militar graduado, um sargento,
hospedar puta do Beco-do-Mijo. Não quer dar o que falar ao povo, reavivar
antigas histórias. Até hoje acha que a senhora sempre soube de tudo, e só
fingia ignorar, porque era enrabichada pelo doutor Chico Chagas, e também
porque não queria que os falatórios prejudicassem a sua carreira.
Melhor
assim, mãe. As crianças já estão na escola, as pessoas falam, já teve quem
dissesse que Eugeninho é a cara do doutor Chico Chagas, e precisamos esquecer
tudo isso.
Espero
que este dinheiro que lhe mando ajude a pagar o aluguel. Não é muito, mas foi
tudo que consegui da venda daquele anelzinho de ouro que doutor Chico Chagas me
deu, quando fiz quatorze anos.
Beijos
de sua filha
Ana
ESTEVES, Florentina. Enredos da memória. Rio
Branco: Fundação Elias Mansour, 2002. p.36-40
Ótimo texto. Emocionante. Professora Florentina, você é nota dez.
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