Rogel Samuel
Todo fim de ano eu me lembro de Sá Francisca,
que era uma velhinha pobre que vinha todo mês à casa de minha avó pedir comida
ou dinheiro em Manaus.
Conta a lenda que ela morava numa espécie de
gruta, um buraco de pedra ou de árvore na Vila Municipal, longe, mas ela vinha
a pé...
Minha avó a fazia entrar, ela tomava café com
pão, ou almoçava num cantinho calada, e depois ia embora, silenciosa,
misteriosa, baixinha, mística.
Eu já escrevi uma crônica sobre ela: mas
procurei em vão, não encontrei, minha “produção literária” é dispersa em
jornais antigos ou sites que se perderam.
Um dia, ela desapareceu. Minha avó mandou
alguém que sabia onde ela morava que voltou com a notícia de que ela tinha
desaparecido.
Talvez encantou-se, talvez ela era um mito
uma lenda uma alucinação de velhos como eu.
Mas a sua figura sorridente nunca se me
apagou.
QUE ME APARTO DE VÓS, OH ÓLEOS
Rogel Samuel
do Rio Negro. Das axilas
de coca-cola, de mel. Produto impuro
banho de esperma que ferve
pelas paquidérmicas chatas.
vos deixo, oh mãe de orquídeas terra
régia fera guerra estéril e amorosa
e no longo corredor me enrosco
meu aeroplano tece
sobre vossas plastificadas canoas de ferro
goma arábica unguento espesso
caboclo jovem mãe planície
negra magra seda
de vós finalmente me aparto
oh águas lixiviadas, menstruais
lembranças de ventres de tarântulas
de cristais
de vós me aparto para sempre!
esmorecido de vós, sucumbido
por vossa fênix, por vosso lenho
vos esqueço, oh pélvica morada
de mortos deuses, de profundos silos
e neste ar meu aeroplano tece
e é expelido pelas tuas pernas.
MADRUGADA
Rogel Samuel
porta calada
madrugada
o silêncio é nada
o vento me acorda
o silêncio morre
sobre esta triste noite
a quente suportada espera
volto ao sonho antigo
no sonho palavra dada
porta calada
madrugada
e que horas são?
qual tempo lembrar?
da minha janela percebo
um pedaço de rua
vento da noite nua
sopra na solidão
porta calada
madrugada
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