Crônicas indigenistas
A super lua. Foto: Assis Kaxinawa |
O dia não estava quente, nem frio. Depois de dias de chuva, os pássaros cantarolavam suas melodias numa “bagunça” de gorjeios por vezes indefiníveis.
Alguns nawa apareceram, subindo o rio com grande algazarra, pilotando seu batelão com certo descuido. Pararam na aldeia e ofereceram trocar umas “botijas”* de cachaça pelo que tivesse de carne. O negócio foi feito escambiando sete botijas por sete jabutis: “nawa estúpido e burro! Bicho tem um monte por aqui, mas bebida não!” – devem ter pensado os parentes ao fecharem o negócio. Este tipo de escambo era normal, afinal, esse nawa são vizinhos da terra indígena, dividindo com estes a solidão e a imutabilidade cotidiana de se viver em locais tão isolados.
A festa depois foi muito boa, e no mesmo dia todas as botijas estavam devidamente consumidas e jogadas em algum canto do terreiro.
Diana Kulina estava muito alegre, muito entorpecida pelo álcool, havia conversado e até cantado junto com os homens. Havia passado um pouco mal, pois não tinha costume de beber cachaça, mas logo acostumou. Assim como os demais envolvidos na festa, não se deu conta da passagem do tempo, e já de noitinha foi que, trôpega, decidiu retornar para casa, onde estava sua mãe e seus quatro filhos. A mãe ao vê-la naquele estado começou a reclamar muito, dando um “carão”, e lembrando à Diana Kulina sobre os cuidados com o uso do “veneno da alma” que tem dentro destas botijas. Gritou muito com ela por ter saído tão cedo e voltado naquele estado para casa. Isso não podia mais ocorrer, era preciso “tomar vergonha e respeitar a comunidade e a família” alertou.
Diana Kulina não falou muito, a confusão mental promovida pela embriaguez refletia-se nas palavras mal pronunciadas e na hostilidade de seus gestos. Calou-se e ficou somente sentada enquanto sua mãe continuava a ladainha sobre o que havia ocorrido. Diana fechou os olhos, meio que adormecida e a mãe, cansada de tanto que gritara resolveu ir dormir, levando consigo as crianças para suas redes, deixando-a sozinha, no escuro, encostada na parede de paxiúba**.
Amanhecer. Foto: Jairo Lima |
Na aldeia o dia começa cedo, antes do sol esquentar. É nesse horário que se cozinha a macaxeira, faz-se o “quebrajum”**** necessário para as labutas diárias. A mãe, enquanto olhava o movimento do rio, chamou logo pela Diana Kulina, pois precisava de lenha e água para preparar a comida. As crianças estavam agitadas e a menor havia molhado a rede, que precisava ser estendida no varal ao lado da casa: “DIANA” – chamou mais forte a mãe, já impaciente e lembrando-se da raiva que tivera no dia anterior e indo em direção ao local onde deixara sua filha na noite anterior, largada e dormindo o sono entorpecido do álcool. Não a encontrando chamou-a novamente, mais forte e com a preocupação começando a tomar-lhe os pensamentos.
Diana não podia responder ao chamado da mãe, pois se encontrava morta, pendurada pelo pescoço. Havia cometido suicídio usando a rede como instrumento de sua morte.
Sua mãe desesperou-se e gritando acordou os vizinhos que ainda estivessem dormindo. Todos correram para a casa, tentando de todo custo ajudar. Era tarde demais, sua filha já estava morta fazia muito tempo, estava com a língua inchada. Morreu em silêncio, pois nada se ouviu na casa durante a noite.
O dia agora já estava claro, o astro rei já aquecia o mundo daquela aldeia. Os pássaros já não gorjeavam tanto, escondidos sob as sombras ou fazendo as coisas que os pássaros fazem em seu cotidiano. O rio continuava vazando. O céu azul indicava que não haveria chuva neste dia. Mas isso não seria percebido pela Diana Kulina, vinte e três anos de idade, que morreu pelas próprias mãos de maneira ignóbil, deixando quatro filhos pequenos que, certamente, jamais esquecerão a cena de encontrar a mãe naquele estado.
E assim mais uma vida se foi às margens do rio Envira. Uma vida vendida por exatos sete jabutis.
Foto: Ion David |
O enterro dos dois seria realizado neste dia. O astro rei não sentou em seu trono, pois chovia muito enquanto cavavam o buraco onde os corpos sem vida da Diana e Antonio seriam sepultados. As mulheres da aldeia choravam muito e as crianças estavam caladas, nos cantos ou perto das avós. Ao final do dia, os corpos de Diana e Antonio já se encontravam sob o nível dos pés dos seus parentes vivos. Suas covas não tinham inscrições que indicassem ser ali a última morada de suas vidas em matéria, no entanto, foi colocada uma cruz em cada sepultura, para indicar ser ali uma sepultura. Objeto estranho que traz consigo tantos significados e significantes.
Os homens que participaram da “festa” junto com Diana e Antonio estavam calados, com aquele ar “desconfiado” de quem não queria admitir ter feito parte da tragédia.
A mãe de Diana já falava em ir embora pra outra aldeia, levando as crianças. Não adiantava ficar ali, pois o espírito da filha estaria constantemente por perto, sem conseguir seguir seu caminho para o retorno à aldeia dos antepassados. Junto com as crianças começaria uma nova vida em outra aldeia, prometendo que não deixaria nenhum dos netos se envolverem com a bebida dos nawa. Alguns comentaram a revolta que a situação causou: “mais dois que morreram por causa desse veneno...”.
Ao fim, descobriu-se a identidade dos que forneceram a bebida para troca, porém, a princípio, pouco se poderia fazer em relação ao ocorrido *****.
Hoje faz vinte dias que Diana e Antonio foram encontrados mortos. Nenhuma nota desta tragédia foi registrada em jornais ou mídias locais, afinal, este tipo de informação não interessa para a população das cidades que ficam próximas à Terra Indígena. Este drama somente ficou na memória dos que presenciaram e registrada em relatório institucional, que li no dia de ontem, para servir de base para futuras ações da equipe de indigenistas.
Seu suicídio somou-se a outros que vem ocorrendo nas aldeias do povo Madija que habitam as margens do rio Envira e Purus. Mortes por suicídio ou homicídio que sempre tem como protagonista a presença do álcool. Situação que vem se complicando cada vez, onde os esforços de indigenistas para reverter a situação, até o momento, não vem surtindo efeito.
Foto: Pedro Devani |
Talvez seja porque sua morte custou exatos sete jabutis...
O que posso fazer, no momento, é desejar que seu yuxin e o de Antonio descansem em paz e possam encontrar o caminho para a aldeia dos Ancestrais. Muito me dói não ter conseguido descobrir seus kena kuin (nome verdadeiro – nome indígena) para que sua lembrança pudesse ter sido devidamente registrada.
Boa semana a tod@s!
* Botija – é o termo usado para designar
pequenas garras plásticas de cachaça que são pequenas e de forma arredondada.
** Paxiúba – espécie arbórea em que sua casca
é utilizada para cobrir paredes das residências;
*** Balseiro – Detritos oriundos de alagações
provocadas pelo aumento dos rios, geralmente é formado por pedaços de paus ou
de árvores inteiras levadas pela correnteza.
**** Quebrajum – ou “quebra jejum”, termo
regional com o qual se designa o “café da manhã”.
***** A questão de
venda e consumo de bebidas alcoólicas por indígenas é um debate que vem
ganhando proporções, uma vez que o Estatuto do Índio, de 1973 estabelece o
crime por tal prática, no entanto, a partir da Constituição de 1988 os povos
indígenas adquiriram o status de cidadão brasileiro, com os mesmos direitos e
deveres dos não-índios (acrescentando-se, claro, as especificidades contidas no
Art 231 da Constituição). Mais sobre esta questão será tratado em textos
posteriores.
Texto belo, carregado de significados valorosos.
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