Uma história muito
triste
Que nunca ninguém
cantou,
A triste história
de Pedro,
Que acabou qual
principiou.
Não houve acalanto.
Apenas
Um guincho fraco no
quarto
Alugado. O pai
falou,
Enquanto a mãe se
limpava:
– É Pedro. E Pedro
ficou.
Ela tinha o que
fazer,
Ele inda mais, e
outro nome
Ali ninguém
procurou,
Não pensaram em
Alcebíades,
Floriscópio, Ciro,
Adrasto,
Que-dê tempo pra
inventar!
– É Pedro. E Pedro
ficou.
Pedrinho engatinhou
logo
Mas muito tarde
falou;
Ninguém falava com
ele,
Quando chorava era
surra
E aprendeu a
emudecer.
Falou tarde,
brincou pouco,
Em breve a mãe
ajudou.
Nesse trabalho
insuspeito
Passou o dia, e nem
bem
A noite escura
chegou,
Como única resposta
Um sono bruto o
prostrou.
Por trás do quarto
alugado
Tinha uma serra
muito alta
Que Pedro nunca
notou,
Mas num dia desses,
não
Se sabe porquê,
Pedrinho
Para a serra se
voltou:
– Havia de ter,
decerto,
Uma vida bem mais
linda
Por trás da serra,
pensou.
Sineta que fere
ouvido,
Vida nova anunciou;
Que medo ficar
sozinho,
Sem pai, mesmo
longínquo, sem
Mãe, mesmo
ralhando, tanta
Piazada, ele sem
ninguém…
Pedro foi para um
cantinho,
Escondeu o olho e
chorou.
Mas depois for
divertido,
Aliás prazer
misturado,
Feito de
comparação.
O menino roupa-nova
Pegava tudo o que a
mestra
Dizia, ele não
pegou!
Porquê!… Mas depois
de muito
Custo, a coisa
melhorou.
Ele gostava era da
História Natural,
os
Bichos, as plantas,
os pássaros,
Tudo entrava fácil
na
Cabecinha mal
penteada,
Tudo Pedro decorou.
Havia de saber
tudo!
Se dedicar!
Descobrir!
Mas já estava bem
grandinho
E o pai da escola o
tirou.
Ah que dia
desgraçado!
E quando a noite
chegou,
Como única resposta
Um sono bruto o
prostrou.
Por trás da escola
de Pedro
Tinha uma serra bem
alta
Que o menino nunca
olhou;
Logo no dia
seguinte
Quando a oficina
parou,
Machucado, sujo,
exausto,
Pedrinho a escola
rondou.
E eis que de
repente, não
Se sabe porque,
Pedrinho
Para a serra se
voltou:
– Havia de ter por
certo
Outra vida bem mais
linda
Por trás da serra!
pensou.
Vida que foi de
trabalho,
Vida que o dia
espalhou,
Adeus bela
natureza,
Adeus, bichos,
adeus, flores,
Tudo o rapaz
obrigado
Pela oficina,
largou.
Perdeu alguns
dentes e antes,
Pouco antes de
fazer quinze
Anos, na boca da
máquina
Um dedo Pedro deixou.
Mas depois de mês e
pico
Ao trabalho ele
voltou,
E quando em frente
da máquina,
Pensam que teve
ódio? Não!
Pedro sentiu
alegria!
A máquina era ele!
a máquina
Era o que a vida
lhe dava!
E Pedro tudo
perdoou.
Foi pensando, foi
pensando,
E pensou, que mais
pensou,
Teve uma ideia,
veio outra,
Andou falando
sozinho,
Não dormiu, fez
experiência,
E um ano depois,
num grito,
Louca alegria de
amor,
A máquina
aperfeiçoou.
O patrão veio
amigável
E Pedro galardoou,
Pôs ele noutro
trabalho,
Subiu um pouco o
ordenado:
– Aperfeiçoe esta
máquina,
Caro Pedro! e se
afastou.
Era um cacareco de
Máquina! e lá, bem
na frente,
Bela, puxa vida!
Bela,
A primeira namorada
De Pedro, nas mãos
dum outro,
Bela, mais bela que
nunca,
Se mexendo
trabalhou
O dia inteiro. Nem
bem
A noite negra
chegou,
O rapaz desiludido
Um sono bruto
prostrou.
Por trás da fábrica
havia
Uma serra bem mais
baixa
Que Pedro nunca
enxergou,
Porém no dia
seguinte
Chegando pra
trabalhar,
Não se sabe porque,
Pedro
Para a serra se
voltou:
– Havia de ter,
decerto,
Uma vida bem mais
linda
Por trás da serra,
pensou.
Ôh, segunda
namorada,
Flor de abril! cabelo
crespo,
Mão de princesa,
corpinho
De vaca nova… Era
vaca.
Aquele riso que faz
Que ri, nunca me
enganou…
Caiu nos braços de
quem?
Caiu nos braços de
todos,
Caiu na vida e
acabou.
Com a terceira
namorada,
Na primeira roupa
preta,
Pedro de preto
casou.
E logo vieram os
filhos,
Vieram doenças…
Veio a vida
Que tudo, tudo
aplainou.
Nada de horrível,
não pensem,
Nenhuma desgraça
ilustre
Nem dores
maravilhosas,
Dessas que orgulham
a gente,
Fazendo cegos
vaidosos,
Tísicos
excepcionais,
Ou formando
Aleijadinhos,
Beethovens e heróis
assim:
Pedro apenas trabalhou.
Ganhou mais, foi
subindinho,
Um pão de terra
comprou.
Um pão apenas, três
quartos
E cozinha, num
subúrbio
Que tudo
dificultou.
Menos tempo, mais
despesa,
Terra fraca, alguma
pera,
Emprego lá na
cidade,
Escola pra filho,
ofício
Pra filho, um num
choque de
Trem, inválido
ficou.
– Sono! único bem
da vida!…
Foi essa frase sem
força,
Sem História
Natural,
Sem máquina, sem
patente
De invenção, que
por derradeiro
Pedro na vida
inventou.
E quando remoendo a
frase,
A noite preta
chegou,
Pedro, Pedrinho,
José,
Francisco, e nunca
Alcebíades,
Um sono bruto
anulou.
Por trás da morada
nova
Não tinha serra
nenhuma,
Nem morro tinha,
era um plano
Devastado e sem
valor,
Mas um dia desses,
sempre
Igual ao que ontem
passou,
Pedro, João,
Manduca, não
Se sabe porque,
Antônio,
Para o plano se
voltou:
– Talvez houvesse,
quem sabe,
Uma vida bem mais
calma
Além do plano,
pensou.
Havia, Pedro, era a
morte,
Era a noite mais
escura,
Era o grande sono
imenso;
Havia, desgraçado,
havia
Sim, burro, idiota,
besta,
Havia sim, animal,
Bicho, escravo sem
história,
Só da História
Natural!…
Por trás do túmulo
dele
Tinha outro túmulo…
Igual.
ANDRADE, Mário de.
Poesias Completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte:
Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1987. p.372-377
* O poema não tem título: “Agora eu quero cantar” é o primeiro verso do
poema, publicado originalmente em “Lira Paulistana” (1945).
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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
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