domingo, 7 de maio de 2017

AGORA EU QUERO CANTAR*

Mário de Andrade (1893-945) 


Agora eu quero cantar
Uma história muito triste
Que nunca ninguém cantou,
A triste história de Pedro,
Que acabou qual principiou.

Não houve acalanto. Apenas
Um guincho fraco no quarto
Alugado. O pai falou,
Enquanto a mãe se limpava:
– É Pedro. E Pedro ficou.
Ela tinha o que fazer,
Ele inda mais, e outro nome
Ali ninguém procurou,
Não pensaram em Alcebíades,
Floriscópio, Ciro, Adrasto,
Que-dê tempo pra inventar!
– É Pedro. E Pedro ficou.

Pedrinho engatinhou logo
Mas muito tarde falou;
Ninguém falava com ele,
Quando chorava era surra
E aprendeu a emudecer.
Falou tarde, brincou pouco,
Em breve a mãe ajudou.
Nesse trabalho insuspeito
Passou o dia, e nem bem
A noite escura chegou,
Como única resposta
Um sono bruto o prostrou.

Por trás do quarto alugado
Tinha uma serra muito alta
Que Pedro nunca notou,
Mas num dia desses, não
Se sabe porquê, Pedrinho
Para a serra se voltou:
– Havia de ter, decerto,
Uma vida bem mais linda
Por trás da serra, pensou.

Sineta que fere ouvido,
Vida nova anunciou;
Que medo ficar sozinho,
Sem pai, mesmo longínquo, sem
Mãe, mesmo ralhando, tanta
Piazada, ele sem ninguém…

Pedro foi para um cantinho,
Escondeu o olho e chorou.
Mas depois for divertido,
Aliás prazer misturado,
Feito de comparação.
O menino roupa-nova
Pegava tudo o que a mestra
Dizia, ele não pegou!
Porquê!… Mas depois de muito
Custo, a coisa melhorou.

Ele gostava era da
História Natural, os
Bichos, as plantas, os pássaros,
Tudo entrava fácil na
Cabecinha mal penteada,
Tudo Pedro decorou.
Havia de saber tudo!
Se dedicar! Descobrir!
Mas já estava bem grandinho
E o pai da escola o tirou.
Ah que dia desgraçado!
E quando a noite chegou,
Como única resposta
Um sono bruto o prostrou.

Por trás da escola de Pedro
Tinha uma serra bem alta
Que o menino nunca olhou;
Logo no dia seguinte
Quando a oficina parou,
Machucado, sujo, exausto,
Pedrinho a escola rondou.
E eis que de repente, não
Se sabe porque, Pedrinho
Para a serra se voltou:
– Havia de ter por certo
Outra vida bem mais linda
Por trás da serra! pensou.

Vida que foi de trabalho,
Vida que o dia espalhou,
Adeus bela natureza,
Adeus, bichos, adeus, flores,
Tudo o rapaz obrigado
Pela oficina, largou.
Perdeu alguns dentes e antes,
Pouco antes de fazer quinze
Anos, na boca da máquina
Um dedo Pedro deixou.
Mas depois de mês e pico
Ao trabalho ele voltou,
E quando em frente da máquina,
Pensam que teve ódio? Não!
Pedro sentiu alegria!
A máquina era ele! a máquina
Era o que a vida lhe dava!
E Pedro tudo perdoou.

Foi pensando, foi pensando,
E pensou, que mais pensou,
Teve uma ideia, veio outra,
Andou falando sozinho,
Não dormiu, fez experiência,
E um ano depois, num grito,
Louca alegria de amor,
A máquina aperfeiçoou.
O patrão veio amigável
E Pedro galardoou,
Pôs ele noutro trabalho,
Subiu um pouco o ordenado:
– Aperfeiçoe esta máquina,
Caro Pedro! e se afastou.

Era um cacareco de
Máquina! e lá, bem na frente,
Bela, puxa vida! Bela,
A primeira namorada
De Pedro, nas mãos dum outro,
Bela, mais bela que nunca,
Se mexendo trabalhou
O dia inteiro. Nem bem
A noite negra chegou,
O rapaz desiludido
Um sono bruto prostrou.

Por trás da fábrica havia
Uma serra bem mais baixa
Que Pedro nunca enxergou,
Porém no dia seguinte
Chegando pra trabalhar,
Não se sabe porque, Pedro
Para a serra se voltou:
– Havia de ter, decerto,
Uma vida bem mais linda
Por trás da serra, pensou.

Ôh, segunda namorada,
Flor de abril! cabelo crespo,
Mão de princesa, corpinho
De vaca nova… Era vaca.
Aquele riso que faz
Que ri, nunca me enganou…
Caiu nos braços de quem?
Caiu nos braços de todos,
Caiu na vida e acabou.

Com a terceira namorada,
Na primeira roupa preta,
Pedro de preto casou.
E logo vieram os filhos,
Vieram doenças… Veio a vida
Que tudo, tudo aplainou.
Nada de horrível, não pensem,
Nenhuma desgraça ilustre
Nem dores maravilhosas,
Dessas que orgulham a gente,
Fazendo cegos vaidosos,
Tísicos excepcionais,
Ou formando Aleijadinhos,
Beethovens e heróis assim:
Pedro apenas trabalhou.
Ganhou mais, foi subindinho,
Um pão de terra comprou.
Um pão apenas, três quartos
E cozinha, num subúrbio
Que tudo dificultou.
Menos tempo, mais despesa,
Terra fraca, alguma pera,
Emprego lá na cidade,
Escola pra filho, ofício
Pra filho, um num choque de
Trem, inválido ficou.

– Sono! único bem da vida!…

Foi essa frase sem força,
Sem História Natural,
Sem máquina, sem patente
De invenção, que por derradeiro
Pedro na vida inventou.
E quando remoendo a frase,
A noite preta chegou,
Pedro, Pedrinho, José,
Francisco, e nunca Alcebíades,
Um sono bruto anulou.

Por trás da morada nova
Não tinha serra nenhuma,
Nem morro tinha, era um plano
Devastado e sem valor,
Mas um dia desses, sempre
Igual ao que ontem passou,
Pedro, João, Manduca, não
Se sabe porque, Antônio,
Para o plano se voltou:
– Talvez houvesse, quem sabe,
Uma vida bem mais calma
Além do plano, pensou.

Havia, Pedro, era a morte,
Era a noite mais escura,
Era o grande sono imenso;
Havia, desgraçado, havia
Sim, burro, idiota, besta,
Havia sim, animal,
Bicho, escravo sem história,
Só da História Natural!…

Por trás do túmulo dele
Tinha outro túmulo… Igual.


ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. Edição crítica de Diléa Zanotto Manfio. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1987. p.372-377
* O poema não tem título: “Agora eu quero cantar” é o primeiro verso do poema, publicado originalmente em “Lira Paulistana” (1945).

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