Morto, suavemente ele repousa sobre as flores do caixão.
Esta vida de
interesses e de lutas tão bravas,
Se cansa de colher
desejos e preocupações.
Então para um
instante, larga o murmúrio do corpo,
A cabeça perdida
cessa de imaginar,
E o esquecimento
suavemente vem.
Quem que então goze
as rosas que o circundam?
A vista bonita que
o automóvel corta?
O pensamento que o
heroiza?...
O corpo é que nem
véu largado sobre um móvel,
Um gesto que parou
no meio do caminho,
Gesto que a gente
esqueceu.
Morto, suavemente
ele se esquece sobre as flores do caixão.
Não parece que
dorme, nem digo que sonhe feliz, está morto.
Num momento da vida
o espírito se esqueceu e parou.
De repente ele
assustou com a bulha do choro em redor,
Sentiu talvez um
desaponto muito grande
De ter largado a
vida sendo forte e sendo moço,
Teve despeito e não
se moveu mais.
E agora ele não se
moverá mais.
Vai-te embora!
vai-te embora, rapaz morto!
Ôh, vai-te embora
que não te conheço mais!
Não volta de-noite
circular no meu destino
A luz da tua
presença e o teu desejo de pensar!
Não volta
oferecer-me a tua esperança corajosa,
Nem me pedir para
os teus sonhos a conformação da Terra!
O universo muge de
dor aos clarões dos incêndios,
As inquietudes
cruzam-se no ar alarmadas,
E é enorme,
insuportável minha paz!
Minhas lágrimas
caem sobre ti e és como um Sol quebrado!
Que liberdade em
teu esquecimento!
Que independência
firme na tua morte!
Ôh, vai-te embora
que não te conheço mais!
ANDRADE, Mário de. Poesias Completas. Edição crítica de Diléa Zanotto
Manfio. Belo Horizonte: Itatiaia; São Paulo: EDUSP, 1987. p.258-259
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"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
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