João Veras
I - O espetáculo
Indocumentados, do grupo acreano de teatro e música Aguadeiro, que estreou
ontem em Rio Branco, apresenta ao expectador uma série de peças – e não apenas
uma – para que quebremos a cabeça montando o mapa de nossa própria compreensão
do que é encenado/proposto. Ali nada é dado, embora repleto de dados. Coisa do
que é arte. Na primeira montagem que acabo de fazer saiu esta pequeníssima planta
baixa que a seguir documento por entre as minhas pequeninas mil memórias.
II - A cidade se
diverte. Este era o nome da coluna assinada no jornal O Rio Branco por aquele
que ficou conhecido senão como o único jornalista cultural que o Acre já teve,
Chico Pop. Chico registrava a vida cultural desta cidade especialmente nas
décadas de 70 e 80 do século passado. Tempos em que a cidade se divertia
consigo mesma, o que quero dizer, com as manifestações artísticas que, em
regra, ela mesma inventava.
Chico testemunhava
uma Rio Branco em seu movimento fincado na social impaciência política e também
estética movidas pelo sonho/luta para um mundo sempre melhor. Hoje, nem
política, senão politicalha que domina e explora ainda mais o inerte poder
popular; nem estética, senão diversão por diversão que se ressaca nas dívidas
todas do dia seguinte; nem sonho senão esse vazio de sentido coletivo antes tão
a favor do digno e do belo. Não sem motivo, esse motivo atual do que haveria
para registrar, o jornalismo cultural no Acre morreu com Chico Pop.
É hoje, esta cidade
de tantos mapas tão viciada neste triste destino de coisas inventadas que nos
são alheias e que nos torna reféns do entretenimento fora de
espaço/tempo/sentido em que vivemos, este fora que nos anestesia com doses de
esperança acrítica toda apostada na fé de uma interpretação pastoral prenhe de
poder evangélico-político-financeiro voltado para ovelhas em desespero por
prosperidade/propriedade terrena e celestial. Fosse um estado de desassossego,
mas não é. Fosse um império da poesia, mas não é. É uma negociação cega que se
resta num rogar solitário para a salvação de não se sabe de quê apartada e
exclusiva. Os outros que leiloem também suas vidas maníacas, por que e pra quê
mesmo?
Tudo nesta cidade de
agora passou a ser uma questão de fé e de empreendedorismo. Nela não mais se
diverte. Ora e negocia. Da comida expressa a fé via delivery; da aplicação de
distração intravenosa a poupar lucidez para obter dividendos insanos; da
desumanização do humano por leves prestações de cabeças cortadas à arte
compromissada com o poder inimigo da arte; da consciência sustentada por um
punhado de notas frias da folha pública de pagamento - um mundo de apostas num
carteado retórico via wireless neste supermercado social do nada com seus
carrinhos abarrotados de mortes do pensamento, do sonho e da arte.
Indocumentados me refez matéria de memórias e de presente.
III - E para não
dizer que não falei da cartografia estética da obra, esta é operada por uma
dramaturgia de tensão e surpresas fundadas numa linguagem metafórica, por isto
de intenso apelo poético-performático. A sua compreensão – a ser extraída
durante o processo de liquidificação de suas referências todas de âmbito local
– é para o expectador um desafio comunicativo, certamente de difícil acesso
aqueles não iniciados nos mapas dos núcleos de poder da cidade. O que não
importa. O que não se pode avistar pela substancia se sente na forma. E a
experiência estética é garantida por qualquer opção. Seus atores (dois rapazes
e três moças) que interpretam personagens sem nome – com seus corpos e vozes em
tensão quase permanente – se acomodam e dialogam no aparente incômodo provocado
pela diversidade de utensílios/atributos cênicos como águas-holofotes,
espelhos-máscaras e luzes movediças apertados naquele quase largo corredor não
usual para corpos desacostumados aos ajustes espaciais da linguagem cênica
desterritorializada. As acomodações para o público possibilitam a sua
integração como partícipes do discurso dramatúrgico. Não existe cidade sem
gente. O único dissenso percebido ali na tensão do aparente caos cênico se deve
à trilha sonora produzida ao vivo que, coitada e linda, fica o tempo todo
tentando puxar a narrativa para o campo lírico, enquanto todo o resto insiste
em evitar a distensão. Quando um não quer dois não brigam, diz o dito popular.
Guitarra distorcida, irmã dali, onde estais que não respondes?
Nenhum comentário:
Postar um comentário
"Quando se sonha só, é apenas um sonho, mas quando se sonha com muitos, já é realidade. A utopia partilhada é a mola da história."
DOM HÉLDER CÂMARA
Outros contatos poderão ser feitos por:
almaacreana@gmail.com