sábado, 7 de outubro de 2017

O BATEDOR

Epaminondas Barahuna



Um dos mitos mais generalizados na região do Juruá é o Batedor, duende aquático que, segundo acreditam, habita as águas dos igarapés de terra firme e, à noite, aceita o desafio do homem, respondendo com vibrantes vergastadas na superfície líquida, a cada provocação que lhe é dirigida.
As testemunhas do Batedor são muitas, numerosas e até mesmo idôneas. Parece fora de dúvida que algo agita a água, nos igarapés ou rios de pequeno curso, preferentemente à noite.
A forma simplista de raciocinar da gente que vive nesses lugares, isolada e em contato direto com a pujante e misteriosa natureza, faz com que ela, na falta de uma explicação positiva, procure buscar no sobrenatural o equacionamento de um fenômeno, que de outra forma falhara diante da sua concepção primitiva. Daí ter surgido o mito do Batedor.
Algo vergonteia as águas ou agita-as, a dar como honestas as inúmeras testemunhas – e como o promotor do fenômeno ainda não foi identificado, mais simples é tomá-lo como entidade misteriosa e encantada, cuja peculiaridade fundamental é enquizilar ou se irritar com quantos promovam ruídos que lhe perturbem o repouso e o silêncio das obscuras paragens que constituem o seu “habitat”, aceitando o pretexto para sair das profundezas dos remansosos igarapés, para vir à superfície dar uma prova da sua insatisfação, como se tentasse, pela intimidação, forçar o elemento perturbador a abandonar aqueles ermos e deixá-lo em paz.
Segundo os inúmeros depoimentos que temos ouvido, quando alguém, à margem de um igarapé, onde há o Batedor, dá um grito à noite ou dispara uma arma de fogo, o mito responde, batendo com certa violência as águas tranquilas. Geralmente, a cada provocação, ele responde com outra vergastada sobre o líquido.
O sobrenatural começa exatamente quando afirmam que ele, a cada resposta, se faz sentir mais próximo. Todavia, nunca foi identificado. Algumas pessoas chegaram a admitir que o autor do fenômeno é uma espécie de jacaré de duas caudas, mas também é fora de dúvida que não existe esse jacaré, a não ser como fenômeno teratológico, um aleijão, certamente raríssimo, se é que já foi visto. Esta seria uma explicação razoável, que, por outro lado, não se coadunaria com a tendência de dar ao mesmo, uma procedência sobrenatural, misteriosa a própria Hiléia.
Daí surgirem as estórias ou “causos” que se ouvem frequentemente no interior, em torno da existência desse mito. Contaram-nos, por exemplo, uma cena assustadora, em redor da qual o narrador empenhava o máximo de veracidade, que teria ocorrido numa propriedade no Baixo Juruá.
Alguns homens, rapazes ainda, em número de três, afeitos às lides das selvas e que se julgavam suficientemente corajosos, hospedaram-se na barraca de um seringueiro, em cujas cercanias passava um igarapé, onde o Batedor se fazia presente.
Depois do jantar, durante a pequena e animada conversação que os visitantes empreenderam, se fez ouvir o Batedor, no seu incompreendido protesto, movimentando as águas. Reunidos naquele pequeno grupo, não trepidaram em promover e renovar ruidosas provocações, à medida que percebiam que o ruído, vindo do igarapé, se aproximava. Continuaram até que o escachoar característico da agitação da água foi substituído por outro ruído forte, surrando o solo, já em terra firme, no caminho que conduzia à barraca. Isto não foi motivo de desânimo dos circunstantes. Um deles, mais ousado, na sua linguagem rude, proferiu uma pornofonia e sugeriu que o fantasma fluvial batesse ainda mais próximo. Essa sua irreverência incontida não ficou muitos segundos sem uma resposta à altura da provocação: quase imediatamente uma violenta pancada, no centro da mesa em torno da qual conversavam, apagou o candeeiro e deixou a todos estarrecidos. Depois de um pequeno silêncio de estupefação foi restabelecida a luz e os nossos heróis estavam moralmente transfigurados. Nada mais de valentia e inconveniências. Melhor seria, na conjuntura, modificar os planos de viagem. Ao invés de ali permanecerem para o pernoite, como era intenção pacífica de todos, acharam por bem partir em seguida, preferindo enfrentar os riscos da caminhada à noite, na mata. Tão assustados ficaram que iniciaram a viagem de regresso sem levar os teréns e não voltaram no dia seguinte para apanhá-los. O dono da casa – o único que não perdera a fibra – foi o portador da modesta bagagem daqueles três homens que, melhor do que quaisquer outros, conheceram de perto quanto pode um Batedor enfurecido.
Esta e outras estórias se ouvem a propósito desse mito.
De um modo geral, os “causos” relacionados com o Batedor são menos aterradores. Nunca fez vítimas. O seringueiro não o teme e deixa que ele bata pacificamente no igarapé ou no rio, quando assim o entender.
Parece, assim, diante dos inúmeros testemunhos, que algo bate nas águas, talvez um réptil ou peixe já identificado, mas que até o momento, ao que sabemos, não foi surpreendido pela vista daqueles que o ouvem. Quanto ao mais, as distâncias e o isolamento da selva sugerem a criação da fantasia, que pode oferecer uma variedade muito maior de estórias, para animar os serões, nos altos rios.
Ressalte-se que todos os depoimentos fazem questão de salientar que o Batedor não ocorre nas regiões de várzeas, mas tão somente nos pequenos cursos que serpeiam no interior das matas, nas regiões de terra firme.


BARAHUNA, Epaminondas. Estórias amazônicas. Rio de Janeiro: Edições O Cruzeiro, 1974. p.77-80

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