Um
dos mitos mais generalizados na região do Juruá é o Batedor, duende aquático
que, segundo acreditam, habita as águas dos igarapés de terra firme e, à noite,
aceita o desafio do homem, respondendo com vibrantes vergastadas na superfície
líquida, a cada provocação que lhe é dirigida.
As
testemunhas do Batedor são muitas, numerosas e até mesmo idôneas. Parece fora
de dúvida que algo agita a água, nos igarapés ou rios de pequeno curso,
preferentemente à noite.
A
forma simplista de raciocinar da gente que vive nesses lugares, isolada e em
contato direto com a pujante e misteriosa natureza, faz com que ela, na falta
de uma explicação positiva, procure buscar no sobrenatural o equacionamento de
um fenômeno, que de outra forma falhara diante da sua concepção primitiva. Daí ter
surgido o mito do Batedor.
Algo
vergonteia as águas ou agita-as, a dar como honestas as inúmeras testemunhas –
e como o promotor do fenômeno ainda não foi identificado, mais simples é tomá-lo
como entidade misteriosa e encantada, cuja peculiaridade fundamental é enquizilar
ou se irritar com quantos promovam ruídos que lhe perturbem o repouso e o silêncio
das obscuras paragens que constituem o seu “habitat”, aceitando o pretexto para
sair das profundezas dos remansosos igarapés, para vir à superfície dar uma
prova da sua insatisfação, como se tentasse, pela intimidação, forçar o
elemento perturbador a abandonar aqueles ermos e deixá-lo em paz.
Segundo
os inúmeros depoimentos que temos ouvido, quando alguém, à margem de um
igarapé, onde há o Batedor, dá um grito à noite ou dispara uma arma de fogo, o
mito responde, batendo com certa violência as águas tranquilas. Geralmente, a
cada provocação, ele responde com outra vergastada sobre o líquido.
O
sobrenatural começa exatamente quando afirmam que ele, a cada resposta, se faz
sentir mais próximo. Todavia, nunca foi identificado. Algumas pessoas chegaram
a admitir que o autor do fenômeno é uma espécie de jacaré de duas caudas, mas
também é fora de dúvida que não existe esse jacaré, a não ser como fenômeno
teratológico, um aleijão, certamente raríssimo, se é que já foi visto. Esta seria
uma explicação razoável, que, por outro lado, não se coadunaria com a tendência
de dar ao mesmo, uma procedência sobrenatural, misteriosa a própria Hiléia.
Daí
surgirem as estórias ou “causos” que se ouvem frequentemente no interior, em
torno da existência desse mito. Contaram-nos, por exemplo, uma cena
assustadora, em redor da qual o narrador empenhava o máximo de veracidade, que
teria ocorrido numa propriedade no Baixo Juruá.
Alguns
homens, rapazes ainda, em número de três, afeitos às lides das selvas e que se
julgavam suficientemente corajosos, hospedaram-se na barraca de um seringueiro,
em cujas cercanias passava um igarapé, onde o Batedor se fazia presente.
Depois
do jantar, durante a pequena e animada conversação que os visitantes
empreenderam, se fez ouvir o Batedor, no seu incompreendido protesto,
movimentando as águas. Reunidos naquele pequeno grupo, não trepidaram em
promover e renovar ruidosas provocações, à medida que percebiam que o ruído,
vindo do igarapé, se aproximava. Continuaram até que o escachoar característico
da agitação da água foi substituído por outro ruído forte, surrando o solo, já
em terra firme, no caminho que conduzia à barraca. Isto não foi motivo de
desânimo dos circunstantes. Um deles, mais ousado, na sua linguagem rude,
proferiu uma pornofonia e sugeriu que o fantasma fluvial batesse ainda mais
próximo. Essa sua irreverência incontida não ficou muitos segundos sem uma
resposta à altura da provocação: quase imediatamente uma violenta pancada, no
centro da mesa em torno da qual conversavam, apagou o candeeiro e deixou a
todos estarrecidos. Depois de um pequeno silêncio de estupefação foi
restabelecida a luz e os nossos heróis estavam moralmente transfigurados. Nada mais
de valentia e inconveniências. Melhor seria, na conjuntura, modificar os planos
de viagem. Ao invés de ali permanecerem para o pernoite, como era intenção
pacífica de todos, acharam por bem partir em seguida, preferindo enfrentar os
riscos da caminhada à noite, na mata. Tão assustados ficaram que iniciaram a
viagem de regresso sem levar os teréns e não voltaram no dia seguinte para
apanhá-los. O dono da casa – o único que não perdera a fibra – foi o portador
da modesta bagagem daqueles três homens que, melhor do que quaisquer outros,
conheceram de perto quanto pode um Batedor enfurecido.
Esta
e outras estórias se ouvem a propósito desse mito.
De
um modo geral, os “causos” relacionados com o Batedor são menos aterradores. Nunca
fez vítimas. O seringueiro não o teme e deixa que ele bata pacificamente no
igarapé ou no rio, quando assim o entender.
Parece,
assim, diante dos inúmeros testemunhos, que algo bate nas águas, talvez um réptil
ou peixe já identificado, mas que até o momento, ao que sabemos, não foi
surpreendido pela vista daqueles que o ouvem. Quanto ao mais, as distâncias e o
isolamento da selva sugerem a criação da fantasia, que pode oferecer uma variedade
muito maior de estórias, para animar os serões, nos altos rios.
Ressalte-se
que todos os depoimentos fazem questão de salientar que o Batedor não ocorre
nas regiões de várzeas, mas tão somente nos pequenos cursos que serpeiam no
interior das matas, nas regiões de terra firme.
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