CABRA ZÉ DE AQUINO
José Augusto de Castro e Costa
Naquela carcaça habitava uma alma mui querida, prestativa, bem
humorada e espirituosa.
Paradoxalmente – porque, havia alguns anos, o
Zé de Aquino interrompera a vida de um desafeto, “em defesa da honra”. Cumprira
dezessete longos anos, preso na Colônia Penal, período em que, para driblar a
ociosidade natural dos presídios, ocupou-se em manufaturar a produção de
colchões.
Entrava ano e saía ano, e lá estava o Zé de
Aquino enchendo aqueles sacões com capim e algodão bravo.
Ao encontrar-se absolvido, fora exercer, de
fato, a atividade aprendida, e há quem o relacione como um dos primeiros
industriais do Acre, prestando atendimento tanto o quanto podia, num pequenino atacado,
ou no varejo, ou ainda, sob encomenda.
Dito assim, até parece que o Cabra Zé de
Aquino não tinha tempo para mais nada, além das confecções dos afamados
colchões. Tinha, sim, mesmo porque o Acre daquela época, por já possuir uma
atividade comercial um tanto quanto intensa, para a demanda local,
principalmente no tocante a cama, mesa e banho, produtos importados de Manaus e
Belém, dificultava o mínimo de atribuições competitivas de qualquer pequeno comércio elementar.
O produto “fabricado” pelo Cabra Zé de
Aquino, porém, tinha como destino as classes menos favorecidas, sobretudo àquelas
pessoas que habitavam as Colônias Agrícolas e
os seringais próximos a Rio Branco.
Os principais lazeres em Rio Branco estavam
no futebol, nas retretas da Banda de Música e nos papos regados à uma “lourinha
suada”, no Bar Municipal.
O maior lazer do Zé de Aquino, no entanto, era
curtir um baralho com os amigos, na arquibancada do Estádio José de Melo, quase
todas as tardes da semana, enquanto algum time reservava o campo, para efetivar
treinos técnicos e táticos.
Ali sempre encontrava-se o Cabra Zé de
Aquino a desafiar alguém interessado, e não
raras as vezes saía vencedor, habilidoso que era, em termos de carteado.
Os participantes daquele passatempo eram, na
maioria das vezes, pessoas da vizinhança do estádio, principalmente da Capoeira,
comunidade conhecida como berço de personagens esportivas, como Touca, Bararú,
Antonio Leór (Leco-Leco), Guimarães, Tião Macaco, Zezinho Pestana Branca, Caio,
músicos e ritmistas como Balaléu, Junot Hortêncio, Paulo Barbosa Bararú e
outros vizinhos mais próximos, ainda, como Elizaldo, Evaldo, Guinaldo, Babá, Piituca,
Tiãozinho, Colorau, Stélio, Dimiro, Teco, Renízio, Hipérides (Nega-Nega), Luis Jacaré Borói, Pichico, São(Sandorval), Zé
Augusto Falado, Keler, Sarará, Pitôco,
Zezé Coriolando, Mão...
As tardes de treinos no “Campo do Rio
Branco”, denominação popular do Estádio José de Melo, eram, na verdade, bastante
concorridas, fosse qual fosse o time que estivesse treinando: Rio Branco, ou
Independência, ou América, ou Vasco, era comum a presença de um certo número de
pessoas. O Atlético Acreano não se contava, pois tinha seu campo próprio – o Triângulo, no 2º
Distrito, para treinar.
E na Arquibancada, sempre encontrava-se um
grupinho disputando um Buraco, ou Vinte e Um, ou Canastra, ou até Truco. Lá
estava o Cabra Zé de Aquino, com mais dois ou três companheiros, com
assistência, inclusive, de alguns craques, como Zé Cláudio, Cidico, Cloter
(Touca), Buá, Leór, Curitiba e outros.
Na maioria das vezes a disputa lhe era
favorável, porém, algo passara a incomodar-lhe, de maneira estranha. Começara a
surgir uma certa suspeita. Sempre que o Cabra Zé de Aquino disputava com o Tião
Macaco e o Lula do Botafogo, a sorte virava-lhe. Principalmente quando estes
formavam dupla.
Tião Macaco,que ganhara o apelido dado à sua
elasticidade na prática dos saltos que efetuava nos jogos, era um tipo vistoso, louro, alto, colecionador de
inúmeras amizades, pelo seu espírito solidário, aficionado por bola,
destacando-se no vôlei, no basquete, ao lado de Sena, Amédio, José Carneiro, Kyoca, Cauhí, Mario Lamas, Pedrito, Eugênio
Mansour, e ainda no futebol, como goleiro do Rio Branco, quando substituiu Pedrito,
que mudara-se com a família para o Rio de Janeiro.
A suspeita de Zé de Aquino, porém, fora-se
avolumando e, para dirimir qualquer dúvida,
arquitetou o plano de não mais aceitar aqueles amigos em dupla, por
algumas partidas.
Suas vitórias voltaram a acontecer como
dantes. Concluiu que a suspeita tinha fundamento, porém, a título de
confirmação, Zé de Aquino concordou com o retorno dos dois.
Tião Macaco e Sula do Botafogo voltaram a
armar as suas artimanhas, porém somente foram descobertos depois da terceira
partida, quando Cabra Zé de Aquino, afinal, flagrou o surrupio da dupla (que
sempre carregava uma carta na manga).
Foi um verdadeiro deus-nos-acuda, quando Zé
de Aquino, depois de espalhar desordenadamente todas as cartas, saiu correndo
atrás dos dois que, saltando quase três metros de altura da arquibancada,
dispersaram-se mais que de repente no rumo do Cacimbão da Capoeira e
adjacências.
O perigo era a possibilidade de o Cabra andar
armado, uma vez que na época era perfeitamente normal o uso particular de armas.
Aquela pode-se dizer que foi uma cena que
teria “sido trágica se não fosse cômica”, deixando nos dois protagonistas, ou
coadjuvantes, uma verdadeira sensação de pavor – um síndrome do pânico!
Só de lembrar do passado do Cabra Zé de
Aquino, o Tião Macaco e o Lula do Botafogo portavam-se de preocupação e receio em
voltar ao campo do Rio Branco, ou deparar-se com o desafeto.
E demorou um pouco para essa preocupação
acabar. O próprio time do Rio Branco, com Guimarães, Orsetti, Bararú, Alício,
Zé Cláudio, Valdo, Erié, Dudu, Arigó, Edson Urubu e Elinho, além de Cidico,
Caetano, Onofre e Pipira, em conjunto ou individualmente, encarregara-se de
acalmar o Cabra Zé de Aquino e trazê-lo novamente às boas.
Felizmente, algum tempo depois as coisas
amenizaram-se, os ânimos serenaram e a convivência dos frequentadores dos
treinos no campo do Rio Branco voltara a reinar com seu peculiar romantismo, recheado de pilhérias, piadas,
boatos, mexericos e astúcias.
Anos depois, Tião
Macaco também transferira-se para o Rio, a fim de continuar os estudos, vindo a
graduar-se na Escola Nacional de Educação Física, fato que o levou a exercer a
atividade de Preparador Físico do Fluminense Futebol Clube e, consequentemente,
da Seleção Brasileira, na Copa do Mundo de 1978, na Argentina, sob o comando
técnico do Cap. Cláudio Coutinho, quando o Brasil, em 3º lugar, foi considerado
“campeão moral”, em vista da
graciosidade do goleiro Quiroga, argentino naturalizado peruano, em levar seis
gols da Argentina.
* José Augusto de Castro e Costa é cronista acreano. Reside em Brasília. Neste blog, já escreveu a série Brasileiro por opção, e agora escreve outra série intitulada HISTÓRIA QUE O ACRE ESCREVEU.
> Leia aqui outros textos de José Augusto de Castro e Costa.