quarta-feira, 21 de outubro de 2020

MAR DE ANJO: poemas de Marta Araújo

 MAR DE ANJO

 

Na dança de corpos loucos

Me descobri menina, mulher...

Te encontrei criança, homem...

Como em cantigas de roda, giramos,

Levados, incoerentes.

Folhas levadas ao vento,

Insanos, inconsequentes.

No teu nome te encontro anjo,

No meu nome, encontro mar.

Anjo que sabe nadar

Nas entranhas do meu corpo.

Caiu de uma nuvem qualquer

Em um mar incandescente;

Formaram uma boa química.

Amor, Paixão, Tesão, Carência?

Não importa!

“Tá delícia, tá gostoso”,

“Que seja eterno enquanto dure”... p. 10

 

TEIA ASSASSINA

 

Beijo, fatal, tresloucado

Fatal, tresloucado, beijo

Tresloucado, beijo, fatal.

Teia maldita,

Eu, presa fácil,

Vulnerável,

Perdida.

Ah, cela assassina.

Sangue rompendo vasos,

Boca insaciável;

Afasta de mim esse cálice;

Veneno bendito e letal;

E deixa a vida morrendo,

Querendo,

Necessitando,

Desse teu beijo vital. p. 23

 

METAMORFOSE

 

Breve existência conturbada;

Breve nos amores,

Breve nas angústias.

Nada é eterno;

O ponto de partida,

O ponto de chegada,

Pura metamorfose;

E é o inesperado que nos impulsiona,

É o inesperado que nos faz querer o amanhã. p. 29

 

MEMÓRIAS

 

Na solidão do barraco,

Busco nos alfarrábios

De uma memória esquecida,

Alegria e inspiração,

Para a composição.

De poesias floridas,

Que possam servir de canção

Para o séquito de amantes

Perdidos na multidão.

Inspiração eu encontro,

Difícil é deixar fluir

O que falta no coração... p. 39

 

TÚMULO DE POEIRA

 

Ao pegar os alfarrábios

E reler coisas passadas,

Tu surgistes novamente.

Eu, que tentava enterrar

Em poeiras de gavetas

A dor que nem morta estava,

vi-a subir do túmulo

com toda força e vigor.

E como que, por vingança,

Entrou, espada afiada,

Varando o coração,

E banhei-me em líquido morno... p. 91

 

ARAÚJO, Marta. Mar de anjo. Rio Branco: Fundação Garibaldi Brasil, 1999.

sexta-feira, 9 de outubro de 2020

DOIS POEMAS DE ERNESTO PENAFORT

DO POETA E SEUS ELEMENTOS

 

O poeta é um território

em permanente degredo.

o poeta, por incrível,

sente frio e sente medo.

o poeta é um promontório,

além da mão como um dedo.

(sendo a mão somente a palma

o dedo é um prolongamento

como o é do corpo sua alma.)

o poeta é um território

limitado por si mesmo.

se às vezes, por ilusório,

parece que anda a esmo,

é exatamente ao inverso:

o poeta é um promontório

procurando mais um verso

para urdir o seu poema,

(que absurda tessitura!)

instaurando no universo

a nação que anda à procura. p. 45


DA DOR MAIOR

 

líquida é esta noite

em que te encontras distante.

líquida, também,

é esta vontade minha

de te ter nos  braços

e amar com toda a força

   da minha existência de homem.

 

belo seria

o momento em que pudesse

de um só golpe sorver-te

mesmo através dos poros

deste corpo que pulsa por ti.

 

o cântico dos cânticos

não é mais belo que tu.

e cantar-te, nesta hora,

é para mim o privilégio

que dilata meu coração,

que pulsa por tua vontade,

 

líquida é esta noite

em que também me umedeço,

orvalhecendo-me por ti,

como se fosse o produto

de um céu sem deuses,

como se fosse o único astro

de um firmamento fechado.  p. 109-110

 

PENAFORT, Ernesto. A medida do azul. Manaus: Edições do Governo do Estado do Amazonas, 1982.