“A poética que pratico é como beber um copo d’água quando estou sedenta, surgiu como instrumento delicado que utilizo para transmitir minhas percepções das pessoas, dos sentimentos, do universo.”
Francis Mary
A escrita de Francis Mary é uma peça indispensável e mesmo paradigmática para a compreensão do mosaico da presença feminina na história sócio-cultural do Acre recente. É uma voz que emerge com o próprio despertar de uma nova consciência advinda de uma reviravolta no campo cultural, sobretudo na literatura, na música e na arte, fomentada a partir da década de 60 e que experimentará fortes goles de seu apogeu nas décadas de 70 e 80. O mundo vivia uma mudança de época, em que as vozes historicamente silenciadas e inferiorizadas, como era o caso das mulheres, se erguiam num discurso de ruptura, insubordinação e auto-afirmação.
Em terras acreanas, como aponta a pesquisadora Margarete Edul Prado de Souza Lopes, se sobressaíram as vozes de Fátima Almeida e Francis Mary, que “começaram a escrever na década de 70, em jornais ou participando de grupos de poesia marginal, produzida em mimeógrafo”, sendo elas as primeiras a publicar ficção e poesia, em formato de livro, no Acre. É interessante perceber o que Francis Mary faz da figura feminina, incitando na mulher a busca pela atuação no espaço público, sempre vetado às mulheres e à luta por seu lugar de sujeito na sociedade ao lado dos homens. Numa época em que a figura da mulher estava suprimida pelos dogmas clericais, a autora se volta justamente para a delicada questão da libertação feminina dos laços da submissão patriarcal [1].
O primeiro livro de Francis Mary foi “Aquiri”, publicado em 1982, única literatura do Acre que registrou os conflitos entre seringueiros e fazendeiros na década de 70. O então líder sindical Chico Mendes foi o primeiro a adquirir alguns exemplares. Mas, na imprensa já atuava desde 1976, quando publicou seu primeiro poema no jornal Rio Branco, na coluna Folha Literária, que integrava o caderno Contexto Cultural. Sua atividade se intensificou na década de 1980 onde participou das antologias: Coletâneas de Poesia Acreana (1981), Algumas poesias acreanas (1982) e Antologia dos poetas acreanos (1986). Seus outros livros são: Gota a Gota (1983), O dia em que a lua caiu no açude (1996) e Pré-históricas e outros livros (2004). Além disso, participou de várias outras antologias poéticas. Ainda se registra dela participação no teatro e atuação no Movimento de Mulheres do Acre [2].
A poesia de Francis Mary, como analisada pela professora Prado de Souza Lopes, opera um discurso de ruptura com os padrões correntes e de denúncia social, sobretudo em relação à situação da mulher e da ecologia. A pesquisadora ressalta que a mulher nos poemas de Francis Mary tem imagem variada, seja a migrante nordestina, as filhas de nordestinos ou filhas da terra. A mulher é, acima de tudo, uma mulher integrada com as forças da natureza, parte da floresta e da vida ao ar livre, que sabe desfrutar da liberdade que somente a selva pode proporcionar. Não é a mulher cristã, seguidora do catolicismo, mas sim a filha de Tupã. Ainda conforme a análise de Prado de Souza Lopes, de um modo geral, a poesia de Francis Mary se articula em torno da vida na floresta e das tradições indígenas, que se traduz em um discurso com alto teor de afetividade, de indiscutíveis vínculos com os rios, seres lendários, e todos os elementos que façam parte do mundo amazônico.
Tudo isso faz de Francis Mary uma presença marcante nas letras acreanas mais recentes. Seu fazer poético encanta não só pela beleza literária, mas, sobretudo pelo clamor humano que ecoa de sua obra. Sua voz de mulher irrompe no deserto verde para fazer parir no horizonte a aurora da liberdade.
Nota: Para um estudo mais detalhado acerca da poesia de Francis Mary, recomendo o precioso trabalho da professora Margarete Edul Prado de Souza LOPES, o livro: “Motivos de mulher na Amazônia: produção de escritoras acreanas no século XX”. Rio Branco: Fundação Elias Mansour/ EDUFAC, 2006. Às páginas 173-193, em que aborda especificamente a obra da poetisa, que serviu como base para a elaboração deste comentário.
---
MARIRI
Francis Mary
Canta
embalada
no mariri
Uma velha índia
mastiga desertos
e vomita florestas.
O pajé foi ao centro
do homem
e um pássaro
virou mulher.
A mulher se fez lava
parindo igarapés,
onde botos revelados
são novamente encantados
por história de mulheres.
Dança a tribo
inteira no ritmo
do mariri.
SEMENTE CORAÇÃO
Francis Mary
A Wilson Pinheiro
Na minha terra
planta-se corações
e nascem lutas
dessa plantação.
O chão é regado
com sangue
e as balas são sementes
que fazem calos
nas mãos...
O PARTO
Francis Mary
A noite sofrida
pariu uma estrela
sozinha.
HOMEM DA MATA
Francis Mary
Nascido do ventre da mata
foi jogado como alimento
nas entranhas do dragão mundial.
Agora sente na pele a reação
acariciando o rosto magro
da sobrevivência.
MAGIA
Francis Mary
É magia
de noite
de dia.
No seio da floresta
cobiçada,
enraizada nos nossos
corações.
No verde da canção
da jaçanã,
na beira do açude
bebendo manhã.
De noite
de dia
essa vibração.
Noite estrelada
pirilampos tomando auasca
e mirando o som.
Duendes dançado nos varadouros
e na voz da mata cantam
mil canções.
NOTURNO
Francis Mary
No bordado
As mãos velhas
Aprisionam
Estrelas e luas.
No quintal,
Bruxos e fadas
Inventam histórias
De bem e de mal
E tudo isso
Enquanto a noite espreita
O momento exato
De resgatar os astros
Deixando desertos os lençóis
Onde crianças safadas
Dormem abraçadas
A seus anjos da guarda.
APOCALIPSE
Francis Mary
Anjos ou demônios
abriram a porta da manhã
e o sol se escondeu com medo
os carapanãs cobriram o céu
destruindo tudo que era vivo
as ruas se fecharam
e a cada passo as pessoas
caíram num buraco
tão fundo, fundo, fundo
que de lá nunca mais saíram
os dentes da boca da noite trincaram
de ódio e de dor
que o céu chorou chuva
e o mundo apodreceu
e chegou uma noite sem fim.
LAVADEIRA
Francis Mary
Descer e subir barrancos,
Lata d’água na cabeça,
Roupas para quarar,
Marido bêbado na cama,
Filhos na escola da rua
E a vida deixada
Na beira do rio.
EU, NORTISTA
Francis Mary
Com essa sede
Do nordestino
Eu subi o rio
E vim parar aqui,
Trazida nos sonhos
Dos meus ancestrais,
Brotada na terra verde
No seio da Amazônia.
FILHA DA TERRA
Francis Mary
Eu nasci aqui,
No meio desse mato
Me criei.
Nadei no rio,
Bebi água dos igarapés...
Conheço todas as doenças
Dessa terra.
Conheço todos os ladrões,
Todos os exploradores
Conheço todos nós:
Filhos da miséria,
Irmãos da fome
E da esperança!
ANJO DA FARDA
Francis Mary
Xô, xô,
Anjo da guarda!
Guarda me lembra a farda
Do soldado
Cassetete na mão,
Reprimindo passeata.
ACREPECUÁRIA
Francis Mary
Em terra de bobo
Quem tem um boi
É rei.
NÃO SOU JOSÉ
Francis Mary
Céleres, enxeridas angústias
Assaltam os restos de mim!
Ergo, cansada, a bandeira da paz.
Paz, não há mais. E agora?
Quem sabe eu gritasse,
Quem sabe eu gemesse?
Para Minas não ia:
Não me chamo José!
Ia pra floresta – Alto Juruá,
Dançar com Ashaninkas,
Beber caiçuma
Comer o luar.
ACREANO
Francis Mary
Abriu o peito prás balas
cantou mais uma canção
sem medo
sem ódio na alma
partiu e sumiu no rio
a bordo de um barco pesqueiro
no fundo era um seringueiro
que ia para o rio, pescar
chegou com a roupa molhada
chegou com os olhos brilhantes
e disse que no horizonte
alguém ia lhe esperar
correu descalço na praia
jogou sua vida na água
deixou o rio levar.
---
MARY, Francis. In: Cantos e encantos da floresta I. (org. e apresentação Laélia Maria Rodrigues da Silva). Rio Branco: EDUFAC, 2004.
Antologia dos Poetas Acreanos 1986. Rio Branco: Fundação Cultural/Casa do Poeta Acreano, 1986.
Algumas Poesias Acreanas. Rio Branco: SESC; Recife: FUNDAJ/Editora Massangana, 1982.
---