quinta-feira, 27 de dezembro de 2018

POESIAS DE ANTÔNIA SAMPAIO FONTES


“Antônia Sampaio Fontes nasceu em Baturité, aos 24 de fevereiro de 1884, filha de Antônio Jardim e Maria Sampaio Jardim. Mudando-se para esta Capital [Fortaleza], casou-se com Israel Pinheiro Fontes – figura ainda lembrada e venerada pelos familiares, que cedo fechou os olhos ao mundo no recuado ano de 1934.

Cumprindo o destino de todo nordestino e mais do cearense nômade, emigrou, na companhia do marido para o alto Acre, onde seu tio Justino fizera alguma fortuna com a exploração dos seringais, na época áurea da borracha. ainda a bordo do paquete “Pará”, que os levou àquela longínqua região do país, compôs sonetos e poemas com temática do mar e da floresta. Corria o ano de 1911. Regressando, aqui se fixou definitivamente até sua morte, ocorrida aos 02 de março de 1963.” Eduardo Fontes


No meu livro SAMAMBAIA
Eu canto Deus e o amor,
Canto o mar beijando a praia,
Canto a ave, canto a flor!

SAMAMBAIA, SAMAMBAIA,
No Acre eu te conheci,
És linda como a jandaia
E o canto do bem-te-vi!

Com teu vestido de festa,
Com o teu xale rendilhado,
Tu enfeitas a floresta
Deste Acre abençoado!

Esperei anos e anos
Por esta oportunidade,
Sem olhar o desenganos
Vence o poder da vontade!

Não sei se venci ou não,
Mas um livro aqui está
Para o grande coração
Dos filhos do Ceará.

Do Ceará brasileiro,
Do meu Brasil cearense,
Do povo forte e ordeiro,
Que luta, trabalha e vence! p.17

Fortaleza, 11 de fevereiro de 1963

Minha Infância

Paródia: Meus Oito Anos
de Casimiro de Abreu

Oh! Que saudade que tenho
Do despontar da existência,
Dos meus dias de inocência,
Do meu viver de criança.

Daquelas horas amenas,
Daquelas tardes fagueiras,
Daquelas noites ligeiras,
Saudades da minha infância.

Naquele tempo risonho
Não sabia o que era amor,
Vivia alegre e contente,
Brincava ao clarão da lua,
Achava o céu tão formoso,
Mas deste tempo saudoso
Resta-me a vida somente!

Fruía ternos carinhos
Dos meus pais, a quem amava,
Dentro d’alma idolatrava,
Tempo feliz que passou!
Levando sem piedade,
Nas suas asas austeras
Minhas oito primaveras
Que o vento as desfolhou!

De tudo tenho saudade,
Dos meus mimos infantis,
Do meu passado feliz
Feito de amor e esperança!
Quando pequena e travessa,
Dizia: – Oh! Deus que ventura,
Eu quero sempre a doçura
Do meu viver de criança!

Quero viver sempre alegre,
Quero brincar descuidada!
Minha mãe, a boa fada,
Sorrindo dizia, então:
– Brinca filha estremecida,
Que hoje terás carinhos,
Amanhã talvez espinhos
Tendo amor no coração!

Com a adolescência
Foi-se a inocência,
Foram-se os mimos e as flores,
Chegaram cedo os amores,
A bela quadra da vida!...

Sou feliz bem sei, não nego,
Tenho um esposo adorado,
Porém choro o meu passado,
A minha infância querida!... p.21-22

Acre, 1908


Saudade

Saudade, triste saudade,
Que me atormenta o viver,
Deixa-me só com o sofrer
Que me dói no coração!

Não vês que eu amo e padeço
Estas saudades cruéis,
Embora veja a meus pés
Alguém de minha afeição!?

Por tanto deixa-me, deixa-me
Já não quero mais a vida,
Vivendo assim nesta lida
Não é vida, é vegetar.

Do que me serve a saudade
Se vivo sempre sofrendo,
Quer ausente, quer o vendo
Tudo é sofrer e penar!?

Eu amo a toda saudade,
Quer rosa, branca, amarela,
Porém amo mais aquela
Que não lhe conheço a cor!

Parece ser mais ardente,
Mais forte, mais tormentosa,
Esta saudade ditosa
Da ausência do nosso amor! p.23

Acre, 1903


Desengano

Amar e ser amado é belo! É tudo, eu sei!
Amar sem ser amado é triste e é o que receio,
Embora eu fale assim, sem conhecer o amor...
Porém suponho e penso que assim seja, e digo:

– Não deve amar-se alguém sem ser correspondido,
Mas não amar sozinho, assim, é grande horror!
Amor! que me serve dizer, e a vós mentir que o tenho
Sem conhecer sequer um só traço, um só desenho...

Sem conhecer sequer o que significa Amor?
Não digo. É crime, sim, mentira, é feio.
Sou franca e pura a confessar não creio
Que venha amar-vos nunca, ó não senhor!

Criança sou, estou na flor da idade,
De vós aceito apenas a amizade
Simples, leal, qual seja a de um irmão!

Mas vosso amor, ó nunca e peço francamente,
Perdão se ofendo, esqueça-me da mente,
Que a vós não dou jamais meu coração! p.24

Acre, 1900

Obs.: Escrito quando a autora contava 16 anos e 10 meses de idade.


Amor

Amor tem mistérios, mistérios profundos,
Mistérios tão fundos que a vida contém,
Do amor para a posse se sofre, é verdade,
Amarga saudade, saudade de alguém!

Minha alma tristonha medita ansiosa
Sozinha, saudosa pergunta-me assim:
– Que força tamanha, que imã tão forte
É este que a morte, somente dá fim?

Eu amo e padeço, inda mesmo que ao lado
De mim bem sentado te veja. É forçoso!
Eu amo este amor e a teus pés deposito
Nas asas de um sonho meu ser, meu esposo! p.25


Ao Meu Adorado Noivo Israel

Quando eu te vejo a vir, dentre os caminhos,
Com passo lento em busca ao nosso lar,
Julgo avistar a flor entre os espinhos,
E em ti, meu anjo, a flor se transformar!

Quando eu te vejo a sós assim pensando,
A mão do homem à face reclinada,
Julgo talvez me estejas repassando
A mente louca só de amor formada!

Quando te vejo, solitário e triste,
Quieto, mudo, sem falar, sem nada,
Julgo afinal que nosso amor traíste,
Já não me amas, já não sou lembrada...

Perdão! Não julgues que ofender-te quero
Falando assim do nosso amor, ó não!
Perdão! Bem sei que serás sincero
Bem como a ti darei meu coração! p.26

Acre


Solidão do Acre

Ao meu esposo Israel Pinheiro Fontes

Na solidão das florestas,
Existe o prazer também,
Que pouco gosta de festas
Vivendo ali, vive bem!

Quem me dera voltar àquelas
Florestas cheias de vida,
A ver as alvas estrelas
Por entre as ramas floridas!

Mas penso que nunca mais
A elas hei de voltar,
Por isto mando meus ais
Nas brumas do meu luar!

E digo adeus a estas matas
Prazer, dos tristes dali!
Adeus! Caboclos, mulatos,
Trinados de bem-te-vi!

Adeus, passeios nas águas
Do rio Acre adorado,
Onde sem dores, sem mágoas,
Passei muito a teu lado.

Igarapés, seringueiras,
Tucanos, antas, cutias,
Adeus, barracas ordeiras,
Onde gozei muitos dias! p.27

Fortaleza/CE, 1912


FONTES, Antônia Sampaio. Samambaia: poesias. Fortaleza: Expressão Gráfica Editora, 2009.

quinta-feira, 20 de dezembro de 2018

FRANCIS MARY: reunião de poemas

Em 1994, a poeta acreana Francis Mary, popular Bruxinha, participou da antologia nacional “Língua Solta: poetas brasileiras dos anos 90”, sob a organização de Beth Fleury. Francis Mary é autora de Aquiri (1982), com ilustrações de Hélio Melo; Gota a Gota (1983), com ilustrações do Dim; A noite em que a lua caiu no açude (1996), Pré-históricas e outros livros (2004), ambos com ilustrações de Danilo de S’Acre; e Gogó de Sola/Flor do Astral (2017). Os poemas, a seguir, foram retirados da antologia “Língua solta”, seção intitulada FILHAS DE TUPÃ, e nos dão uma boa ideia da obra da poeta.


Interior

Uma coisa eu aprendi:
Na minha cidade
tem muitas ruas
tem muitas casas
com muitas portas
muitas janelas
com muitos olhos
e principalmente
muitas línguas p.77


Filha da terra

Eu nasci aqui,
no meio desse mato
me criei.
Nadei no rio,
Bebi água nos igarapés.
Conheço todas as doenças
dessa terra.
Conheço todos os ladrões,
Todos os exploradores.
Conheço todos nós:
filhos da miséria,
irmãos da fome e da miséria. p.78


Filha de Tupã

Brincar nas copas
das árvores
com borboletas, juritis e jaçanãs.
Coração:
sabor coquinho-tucumã.
Correndo nua nas matas
como filha de tupã. p.79


Estela, a brega
Estela naufragava
em vapores de panelas,
cozinhando sonhos
que não eram dela...

Ângela Maria,
no rádio à pilha,
insistia em ser
Cinderela.

A vida borralheira
era de Estela:
noites e dias na janela,
arrastando sua eterna espera. p.80


Lavadeira

Descer e subir barrancos,
lata d’água na cabeça,
roupas para coarar.
Marido bêbado na cama,
filhos na escola da rua
e a vida deixada
na beira do rio. p.81


Boemia

À Chica Toilette

Além do jameleiro,
canções bêbadas
lembram mulheres,
culpadas de tantas
desgraças de amor.

A lua solitária
tem a boca
e o desejo idênticos
à cor do batom
daqueles que a todos
se entregou. p.82


Acreano

Nascido no ventre
da mata,
jogado como alimento
nas vísceras do dragão,
sente na pele a reação –
acariciando o rosto magro
da sobrevivência. p.83


Acrepecuária

Em terra de bobo
quem tem um boi
é rei... p.84


Anjo da Farda

Chô, chô,
Anjo da Farda!
Guarda me lembra a farda
do soldado,
cassetete na mão,
reprimindo a passeata. p.85


Colono

Mãos calejadas
da enxada,
o rosto queimando
ao sol de todo dia,
a ingenuidade analfabética,
o riso desdentado,
sem protocolo
de alegria... p.86


Seu João

Prato branco
sem feijão,
olhos fundos e
solidão
na vida do seu João. p.87


Semente coração

A Wilson Pinheiro

Na minha terra
planta-se corações
e nascem lutas
dessas plantações.
O chão é regado
com sangue
e as balas são sementes
que fazem calos nas mãos. p.88


Cara de Boi

Nas entranhas dessa mata
eu vivi.
Das entranhas dessa mata
foi que eu vim.
Cobra jiboia não me atraiu.
Mapinguari não me expulsou.
Eu corri foi de um bicho feio
com cara de boi. p.89


Seringueiro

Cipós entrelaçados
num abraço eterno,
casas de palha secas
cercadas de vastos quintais:
o seringal.
Cantos de pássaros livres
sobrevoando capoeiras e matagais
e o cheiro da amazônia enchendo
os igarapés.
Castanheiras imponentes
e seringueiras seculares
nos caminhos abertos com facões.
Seringueiro acordando cedo,
lamparina e espingarda pendurada,
penetra o útero de sua mãe
para nascer de novo,
filho da amazônia. p.90


Enchente

Não trago nos bolsos
a palavra mágica
que abra todas as portas
do entendimento
para decifrar o caos
transparente
dessa fase louca de transição.
Colonialismo latente
quer matar minha identidade.
E minha verdade
jorra pelos poros
como sangue quente
que deságua no rio
provocando enchentes. p.91


O Rio

Foi nas margens do rio
que eu te encontrei.
Foi nas águas do rio
que eu te lavei.
Foi nas lendas do rio
que eu me enlevei
e adormeci. p.92


O Boto

Mergulhou em meu cio
deslizando em meus seios
suas mãos de rio.

E eu, sereia seduzida,
Revelei meu segredo
A matrichãs e tambaquis.
Ainda guardo
seu cheiro barrento
que em noites de lua
deságua dentro de mim. p.93


Toma o Teu Coração

Taí, toma o teu coração.
Sem ele não podes viver.
Eu quero só um pedacinho;
distribui a maior parte
com quem quiseres.
Agora me dá o meu.
Fica com um pedacinho.
A outra parte
vou repartir
com todo mundo. p.94


Nada a ver

Não tem nada a ver
minhas lágrimas antárticas,
nem teu mijo coca-cola.

E não me olhe assim
com essa voz impassível
de Jornal Nacional! p.95


Naufrágio

Do caos
da minha cabeça
escapou um náufrago
pelo ouvido... p.96


Borboleta

Borboleta colorida
voando tão graciosa
pousou na minha cabeça
pensando que fosse rosa.
Borboleta, você sabe
que rosa eu não sou,
mas a rosa tem espinhos
que furam como essa dor. p.97


Minguante

Da cuia da lua
a noite despejou estrelas
que beijei

derramou lágrimas
invernosas
que chorei.
Choveu. p.98


Bordado

Mãos velhas
aprisionam
estrelas e luas.

A noite
espreita
o momento exato
de libertar
os astros

deixando vazios
os lençóis
onde crianças safadas
dormem abraçadas
a seus anjos da guarda. p.99


Crepúsculo

Pisadas
compassadas
Batidas
do coração
Vento
beijando o frio
Tempo
fazendo tricô
com o destino
do mundo... p.100


Ilusão

A mariposa,
morta de medo do dia,
procura a luz do sol
na claridade da lâmpada acesa. p.101


MARY, Francis in Língua Solta: poetas brasileiras dos anos 90 / Seleção de textos, Beth Fleury, Celso Cunha Junior e Suzana Vargas. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1994.