Humberto de Campos (1886-1934)
No dia seguinte ao da mudança para a nossa
pequena casa dos Campos, em Parnaíba, em 1896, toda ela cheirando ainda a cal,
a tinta e a barro fresco, ofereceu-me a Natureza, ali, um amigo. Entrava eu no
banheiro tosco, próximo ao poço, quando os meus olhos descobriram no chão, no
interstício das pedras grosseiras que o calçavam, uma castanha de caju que
acabava de rebentar, inchada, no desejo vegetal de ser árvore. Dobrado sobre si
mesmo, o caule parecia mais um verme, um caramujo a carregar a sua casca, do que
uma planta em eclosão. A castanha guardava, ainda, as duas primeiras folhas
unidas e avermelhadas, as quais eram como duas joias flexíveis que tentassem
fugir do seu cofre.
– Mamãe, olhe o que eu achei! – gritei,
contente, sustendo na concha das mãos curtas e ásperas o mostrengo que ainda
sonhava com o sol e com a vida.
– Planta, meu filho... Vai plantar... Planta no
fundo do quintal, longe da cerca...
Precipito-me, feliz, com a minha castanha viva.
A trinta ou quarenta metros da casa, estaco. Faço com as mãos uma pequena cova,
enterro aí o projeto de árvore, cerco-o de pedaços de tijolo e telha. Rego-o.
Protejo-o contra a fome dos pintos e a irreverência das galinhas. Todas as
manhãs, ao lavar o rosto, é sobre ele que tomba a água dessa ablução alegre.
Acompanho com afeto a multiplicação das suas folhas tenras. Vejo-as mudar de
cor, na evolução natural da clorofila. E cada uma, estirada e limpa, é como uma
língua verde e móbil, a agradecer-me o cuidado que lhe dispenso, o carinho que
lhe voto, a água gostosa que lhe dou.
O meu cajueiro sobe, desenvolve-se, prospera.
Eu cresço, mas ele cresce mais rapidamente do que eu. Passado um ano, estamos
do mesmo tamanho. Perfilamo-nos um junto do outro, para ver qual é mais alto. É
uma árvore adolescente, elegante, graciosa. Quando eu completo doze anos, ele
já me sustenta nos seus primeiros galhos. Mais uns meses e vou subindo,
experimentando a sua resistência. Ele se balança comigo como um gigante jovem
que embalasse nos braços o seu irmão de leite. Até que, um dia, seguro da sua
rijeza hercúlea, não o deixo mais. Promovo-o a mastro do meu navio e, todas as
tardes, lhe subo ao galho mais empinado, onde, com o braço esquerdo cingindo o
caule forte, de pé, solto, alto e sonoro, o canto melancólico da “Chegança”,
que é, por esse tempo, a festa popular mais famosa de Parnaíba:
Assobe, assobe, gajeiro,
Naquele tope real...
Para ver se tu avistas,
Otolina,
Areias de Portugal!
Mão direita aberta sobre os olhos, como quem
devassa o horizonte equóreo, mas devassando, na verdade, apenas os quintais
vizinhos, as vacas do curral de Dona Páscoa e os jumentos do sr. Antônio
Santeiro, eu próprio respondo, com minha voz gritada, que a ventania arrasta
para longe, rasgando-a, como uma camisa de som, nas palmas dos coqueiros e nas
estacas das cercas velhas, enfeitadas de melão São Caetano:
Alvíssaras meu capitão,
Meu capitão general!
Que avistei terras de
Espanha.
Otolina,
Areias de Portugal!
A memória fresca, e límpida, reproduz, uma a
uma, fielmente, todas as passagens épicas, todas as canções melancólicas e
singelas da velha lenda marítima com que o majestoso mulato Benedito Guariba,
uma vez por ano, à frente dos seus caboclos improvisados em marujos
portugueses, alvoroça as ruas arenosas de Parnaíba. O vento forte, vindo das
bandas da Amarração, dá-me a impressão de brisa do oceano largo. O meu camisão
branco, de menino da roça, paneja, estalando, como uma bandeira solta. O
cajueiro novo, oscilando comigo, dá-me a sensação de um mastro erguido rolando
diante de mim, na curva do horizonte, onde o céu e o mar se beijam e misturam,
as terras claras de Espanha, e areias de Portugal.
Pouco a pouco, a noite vem descendo. Um véu de
cinza envolve docemente os coqueiros dos quintais próximos. Os bezerros de Dona
Páscoa berram com mais tristeza. As vacas, apartadas deles, respondem com mais
saudade. Os jumentos do sr. Antônio Santeiro zurram as cinco vogais e o
estribilho "ípsilon", marcando sonoramente as seis horas. Os do sr.
Antonio do Monte, ao longe, conferem e confirmam o zurro, o focinho para o
alto, olhando o milho de ouro das primeiras estrelas. E eu, gajeiro de uma nau
ancorada na terra, desço tristemente do folhudo mastro do meu cajueiro,
sonhando com o oceano alto, invejando a vida tormentosa dos marinheiros
perdidos, que não tinham, pelo menos, a obrigação de estudar, à luz de um
lampião de querosene, a lição do dia seguinte...
Aos treze anos da minha idade, e três da sua,
separamo-nos, o meu cajueiro e eu. Embarco para o Maranhão, e ele fica. Na
hora, porém, de deixar a casa, vou levar-lhe o meu adeus. Abraçando-me ao seu
tronco, aperto-o de encontro ao meu peito. A resina transparente e cheirosa
corre-lhe do caule ferido. Na ponta dos ramos mais altos abotoam os primeiros
cachos de flores miúdas e arroxeadas como pequeninas unhas de crianças com
frio.
– Adeus, meu cajueiro! Até à volta!
Ele não diz nada, e eu me vou embora.
Da esquina da rua, olho ainda, por cima da
cerca, a sua folha mais alta, pequenino lenço verde agitado em despedida. E
estou em S. Luís, homem-menino, lutando pela vida, enrijando o corpo no
trabalho bruto e fortalecendo a alma no sofrimento, quando recebo uma comprida
lata de folha acompanhando uma carta de minha mãe: “Receberás com esta uma
pequena lata de doce de caju, em calda. São os primeiros cajus do teu cajueiro.
São deliciosos, e ele te manda lembranças...”
Há, se bem me lembro, uns versos de Kipling, em
que o Oceano, o Vento e a Floresta palestram e blasfemam. E o mais desgraçado
dos três é a Floresta, porque, enquanto as ondas e as rajadas percorrem terras
e costas, ela, agrilhoada ao solo com as raízes das árvores, braceja, grita,
esgrime com os galhos furiosos, e não pode fugir, nem viajar... Recebendo a
carta de minha mãe, choro, sozinho. Choro, pela delicadeza da sua ideia. E
choro, sobretudo, com inveja do meu cajueiro. Por que não tivera eu, também,
raízes como ele, para me não afastar nunca, jamais, da terra em que eu,
ignorando que o era, havia sido feliz?
Volto, porém. O meu cajueiro estende, agora, os
braços, na ânsia cristã de dar sombra a tudo. A resina corre-lhe do tronco, mas
ele se embala, contente, à música dos mesmos ventos amigos. Os seus galhos mais
baixos formam cadeiras que oferece às crianças. Tem flores para os insetos
faiscantes e frutos de ouro pálido para as pipiras cinzentas. É um cajueiro
moço, e robusto. Está em toda a força e em toda a glória ingênua da sua
existência vegetal.
Um ano mais, e parto novamente. Outra
despedida; outro adeus mais surdo, e mais triste:
– Adeus, meu cajueiro!
O mundo toma-me nos seus braços titânicos,
arrepiados de espinhos. Diverte-se comigo como a filha do rei de Brobdingnag
com a fragilidade do capitão Gulliver. O monstro maltrata-me, fere-me,
tortura-me. E eu, quase morto, regresso a Parnaíba, volto a ver minha casa, e a
rever o meu amigo.
– Meu cajueiro, aqui estou!
Mas ele não me conhece mais. Eu estou homem;
ele está velho. A enfermidade cava-me o rosto, altera-me a fisionomia,
modifica-me o tom da voz. Ele está imenso e escuro. Os seus galhos abraçam
coqueiros, afogam laranjeiras que noivam, ou ultrapassam a cerca e vão dar
sombra, na rua, às cabras cansadas, aos mendigos sem pouso, às galinhas sem
dono... Quero abraçá-lo, e já não posso. Em torno ao seu tronco fizeram um
cercado estreito. No cercado imundo, mergulhado na lama, ressona um porco... Ao
perfume suave da flor, ao cheiro agreste do fruto, sucederam, em baixo, a vasa
e a podridão!
– Adeus, meu cajueiro!
CAMPOS, Humberto de. Memórias: primeira parte
1886-1900. São Paulo: W. M. Jackson Inc. Editores, 1954. p. 235-242
Cajueiro plantado por Humberto de Campos nos últimos anos do século XIX em Parnaíba, no Piauí. Tombada pela lei do patrimônio histórico de Parnaíba. Foto: dinodealcantarablog.wordpress.com |