PONTO ZERO
A dois mil e dezessete
No escuro mundo em que resido,
feito duma cama de madeira e quatro paredes,
mergulho em flores placentárias, engulo-as
numa tediosa refeição.
Desenho num canto uma janela, assisto
os choros da noite e latidos vizinhos.
Rabisco uma fechadura sem chaves e me tranco
dentro do isolamento tardio.
No ponto zero duma bomba qualquer
sou a chacina e pelúcia.
Engulo o remédio e não me mato,
leio para a morte e ouço o ruído das paredes.
O escárnio do mundo tenho nos lábios
e em sons de teclas cibernéticas
dou risadas ao meu silêncio inútil.
O escarro dos outros eu carrego nos olhos
em choro infantil de dezoito anos
por não ter paixões ou amigos.
As lágrimas que da mente cuspo se unem
aos cuspes injustos
que o mundo me deu à cara. p. 13
JARDIM DO ÉDEN
Desde o primeiro sopro da vida fatal,
No Jardim do Éden não me vi entrar.
Sou errante nesta realidade sem lar,
Nunca provei frutos do bem e do mal.
Expulsão pela ingenuidade ao pensar
Ou serpente que me induza ao pecado
Não me ocorreu, jamais vi chegar.
O que haverá neste Jardim Fechado?
Não tive gênese ou divino contato,
solitário desde as faculdades inatas.
Fui construído em um mundo abstrato,
Não existem em mim naturezas exatas.
Neste Vale do sofrimento humano,
Hei de encontrar-me: Ser profano. p. 39
MODERNISMO ACREANO
Florestas psicodélicas, maquiagens, tecidos!
Toda noite de festa me parece modernismo.
Terra batida, folhas neon e cabelos
coloridos,
Funde-se tudo numa tela épica de surrealismo.
A batida na batida da batida, debatendo-se
na vaidade do corpo entre a grama e a lama.
No calor do suor da madrugada e penumbra
Eu danço no silêncio e gargalho o inconsciente.
O falso glamour deste alvorecer rosado
adorna-nos em pensamentos solitários.
Somos os netos e bisnetos dos Soldados:
A brava herança de hepatites e malárias.
Rodopios das luzes dos céus e da terra,
Rodopios dos corpos gerados na Guerra.
Os que cantam no Eixo a falsa essência
Não nasceram nas terras antropofágicas.
No cheiro da lua, no sabor das florestas,
na fumaça alcoólica nasce modernismo!
Na dor das calçadas, no espirrar dos mortos
Eu desatino e danço no alucinar da festa.
O mundo é uma imensa floresta
A arte, minha poronga, há de guiar-me. p. 47
FUGAS E CASAS: I
Nasci na Esperança
numa casa de madeira.
Suspensa por pilares,
com escada e escorregador.
Lá tinha duque, galinhas
e galos de briga.
Fui para o Novo Mundo.
Lembro das horas no ônibus,
da casa de família grande,
do raio que caiu na igreja,
da panela de pressão explodindo na cozinha
e da coleção de pontas de caixas de leite.
Subi a rua, as latas desceram.
Morei na casa que parecia o térreo
de uma indústria. Dois andares:
Na parte de cima uma grande área coberta,
com mesa para esconder-se debaixo,
e aguardar Papa chegar com chocolate.
Por lá tinha um casal de vizinhos pasteleiros
com o filho pequeno como eu
que me dizia: Teu nariz é de batata.
No resto da vizinhança, lembro dos varais,
não recordo se eram reais ou feito de sonhos.
Lembro do passeio pelas redondezas,
das árvores verdes que mais pareciam desenhos
feitos por qualquer artista. Eram belíssimas.
Naquela casa tente me matar pela primeira vez:
aos 3 anos, engoli uma moeda e me engasguei.
Cuspi para fora e tive de apanhar.
II
Voltei para a Esperança
numa casa de paredes assustadoras
e iluminação tensíssima.
O que salvava era o balanço:
Ficava na parte de trás do terreiro,
Segurando-se num galho depressivo.
Aquele balanço balançou a solidão da minha
infância.
Na fuga para Plácido de Castro
teve pato, galinha preta, cheiro de tabaco,
santos em gesso e dependurados.
Lembro de uma menina na mesma idade minha,
de cabelos desgrenhados e mão no topo da cabeça.
Tinha uma senhora ao lado com ares de avó
tristíssima.
Na casa da Nova Esperança
assaltaram-me sonhos, o medo roubou-me.
Lembro que, nessa mesma casa,
Fiz quadrinhos, fantoches, bonecos de pano.
Tive quarto e cachorros, casa na árvore (num
cajueiro)
e assistir às muitas criações dos pedreiros.
Subi a rua, as latas ficaram.
Morei na rua José Mendes
Com piscina e quarto partilhado.
Lá tinha cheiro de museu e coisa nova.
A velha vida não havia passado.
III
Mudei-me para a casa do outro lado da rua
que ainda me engole em pesadelos.
Lembro da vizinhança e dos meninos da rua,
dos passeios de bicicleta,
das bolas chutadas ao esgoto.
Lembro das lágrimas de amargura
numa paixão da sétima série.
Nas horas ouvindo Crocodile Rock
e nos segundos que ateava fogo a chuva,
descobri-me rei do sentir. Sentia muito.
Fui realocado com o passar dos anos,
posto num novo quadrado em branco
contendo uma única parede em verde-claro.
Lá estava eu com a minha falsa vaidade,
ingenuidade e passado, ego atrofiado.
Era o meu novo quarto um templo profano,
era Narciso o meu novo brinquedo. p. 103-107
FRANÇA, Di. Pondera. Rio Branco: 3 Serpentes
Edições, 2022.
Di França é artista e escritor negro nascido em
Rio Branco-AC. Graduado em Letras – Língua Portuguesa pela Universidade Federal
do Acre, onde, atualmente, é professor substituto. “Pondera” é sua primeira
obra literária, levando aproximadamente quatro anos para ser concluída. O livro
saiu pela 3 Serpentes Edições, do editor Rodolfo Minari.