segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

MENTE, CÉREBRO E LINGUAGEM

Profª. Inês Lacerda Araújo


Mente e cérebro diferem radicalmente, cada qual pertence a um nicho do ser, haveria uma diferença ontológica entre o mental e o cerebral? 

Vejamos quando se diz que um fenômeno é mental. Pensar, desejar, falar, sonhar, perceber, imaginar, parece que há um acordo quanto a serem resultado de uma atividade mental, irredutível ao físico, ao neuronal, ao cerebral.

 E o que é considerado cerebral? Um déficit de inteligência, um lapso de linguagem, depressão, transtorno de personalidade, impulso suicida, esquizofrenia, são alguns dos fenômenos listados como cerebrais, suscetíveis de modificação com a interferência de medicamentos. Estes incidiriam sobre certa região e modificariam a química cerebral. Claro, com divergências nesse terreno.

 Alguns vão mais longe: o mental pode ser reduzido aos circuitos neuronais, às sinapses. O mental seria, então, físico?!

 Esses impasses e paradoxos só existem para filósofos, psicólogos, psiquiatras para os quais há diferença de natureza, ontológica, seriam duas realidades distintas, uma imaterial, a outra material.

 O que impressiona os defensores da mente é haver o mental distinto do físico, o pensamento distinto do corpo, a consciência distinta do desvario, a capacidade de deliberar distinta dos impulsos cegos, voltar-se para si (introspecção) distinto de comportar-se e reagir ao meio.

 A tese oposta se demonstra pelo óbvio: todo o nosso comportamento e as mais variadas atividades dependem do comando cerebral. Isso pode inclusive ser detectado por aparelhos. Eles mostram que tal ou tal emoção afeta tal região, falar afeta outra, sonhar outra, e assim por diante.

Mas, se considerarmos que para falar e perceber, para pensar e imaginar, para compreender e agir, enfim, para o diversificado tipo de vida dos seres humanos, foi necessário tanto que o cérebro se desenvolvesse e se adaptasse para comandar nossas atividades, como essas atividades constituiram pessoas vivendo em sociedades e dependentes de regras e instituições, que são culturais. Na medida em que a criança entra no circuito social da linguagem, portanto, das significações e signos, dos ruídos que passam a formar signos com sentido, é impossível separar o físico/cerebral da vida humana inteligente.

É por meio de signos, da linguagem humana articulada que nos tornamos pessoas, formas de vida que empregam vários jogos de linguagem sempre mergulhados em regras que validam ou invalidam nossas atividades.

Respondemos ao meio, o enfrentamos e o modificamos desde há muito tempo. Assim, separar em duas regiões ontológicas o mental e o cerebral se deve a particularidades da cultura humana. Por exemplo, perguntar a um amigo se sua tristeza é "curável", seria classificá-la como cerebral e apostar no prozac. O mais incrível, é que isso é cultural, há poucos anos se medicaliza emoções e sentimentos "excessivos".

Enquanto que, procurar compreender as reações e sentimentos desse amigo, é algo que se faz desde que relações humanas, entre elas a amizade, passaram a constituir nossa humanidade, o ser que somos. Há milênios.

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* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e doutora em Estudos Linguísticos. É professora aposentada da UFPR e PUCPR.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

ESSA TÃO SONHADA FELICIDADE

Luísa Galvão Lessa
colunaletras@yahoo.com.br
Um dos temas mais importantes de toda a história da humanidade é a Felicidade. Ninguém ousou dizer ser o dono da verdade sobre uma definição precisa, pois mesmo os grandes gênios da Filosofia sabiam da dificuldade em definir essa tão procurada felicidade. Por isso é bom caminhar na trilha de alguns sábios para que se possa revelar seus pensamentos e certezas acerca de tal compreensão e definição.

Desde os primórdios da Filosofia, a natureza foi o referencial para as explicações da humanidade. E, de certa forma, a única verdade para aqueles que viveram esse tempo é a esperança de encontrar nos preceitos filosóficos um caminho para se buscar a felicidade. E, embora esses sábios não dominassem os mistérios da natureza buscavam, nos fenômenos naturais, uma resposta para suas inquietações interiores.

A Filosofia, enquanto ciência, é a técnica da vida. E técnica é fazer algo que a pessoa já fazia com menos esforço e mais qualidade. A Filosofia existe para que as pessoas possam viver melhor, sofrer menos e lidar mais serenamente com as adversidades. A missão essencial da Filosofia é tornar viável a busca da felicidade.

Dessa forma, todos os grandes pensadores sublinharam esse ponto. A Filosofia que não é útil na vida prática pode ser jogada no lixo. Alguém definiu os filósofos como os amigos eternos da humanidade. Nas noites frias e escuras que enfrentamos, no correr dos longos dias, eles podem iluminar e aquecer. A Filosofia apóia e consola. "O ofício da filosofia é serenar as tempestades da alma", escreveu o sábio francês Montaigne (1533-1592). Numa outra definição magistral, Montaigne definiu a Filosofia como a "ciência de viver bem".

Segundo leituras empreendidas, para Sócrates o "conhece-te a ti mesmo" é a chave para a conquista da felicidade. Para Platão a noção de felicidade é relativa à situação do ser humano no mundo, e aos deveres que aqui lhe cabem. Para Aristóteles a felicidade é mais acessível ao sábio que mais facilmente basta a si mesmo, mas é aquilo que, na realidade, devem tender todos os seres humanos das cidades, vilas, povoados.

Avista-se, então, independente do pensamento socrático, platônico ou aristotélico, a felicidade, embora possível e fonte de busca incansável, não pode ser encarada como realização final da existência, ou seja, a última azeitona da empada, pois, se for assim, não encontrá-la significa ficar com fome. E fome é algo muito ruim.

Para Aristóteles, a felicidade é relatada como sendo um bem supremo tanto para os vulgos quanto para os homens de cultura superior, considerando-a como o bem viver e o bem agir. Outros identificam a felicidade com o bem e com o prazer e, por isso, amam a vida agradável.

Para a modernidade, felicidade seria um estado afetivo ou emocional de sentir-se bem ou sentir prazer. Para Aristóteles, ter felicidade ou ser feliz é usar a razão como propriedade e fazer de tal modo que isso se torne uma virtude. Segundo o filósofo, a felicidade é o bem mais nobre e mais desejável entre os homens, chegando a identificá-la como "uma atividade da alma em consonância com a virtude."

De outro lado, para alguns, a felicidade é pautada na existência de outra pessoa em sua vida. Aí, então, a felicidade fica muito complexa e difícil para alcançar. Colocar os sonhos/realizações/desejos nos ombros de outro ser, não só castiga quem recebe essa incumbência, como escraviza quem faz isso. A busca pela felicidade, embora possa ser feita em conjunto, trás uma realização pessoal. Se é para ser feliz, é preciso ser por conta própria. Do contrário, não se é feliz nunca.

Então, compreender realmente o que seja felicidade para um indivíduo é, de certa forma, ver nas atitudes humanas, ora na sua cultura, ora em seus pensamentos, a sua necessidade, ou seja, aquilo que realmente se precisa para ser feliz. Muitas são as respostas de como se chegar à felicidade. Albert Einstein, por exemplo, disse certa vez: "se quer viver uma vida feliz, amarre-se a uma meta, não às pessoas nem as coisas", pois sabia que as paixões destroem a liberdade do ser e o apego as coisas desvirtualiza uma pessoa.

Também, já foi dito que a felicidade é algo bastante relativo, pois depende, incondicionalmente, da visão de necessidade de cada indivíduo, ou seja, a felicidade, para um capitalista, é acumular riquezas; já para um socialista-comunista, reparti-la; para um estudante, a felicidade seria construir conhecimento; para um analfabeto, saber ler e escrever; para um colecionador, completar a sua coleção; já para um amador iniciante, ter a primeira peça e assim por diante. Nessa linha de raciocínio, infere-se que o ser humano entendia e entende a Felicidade como a satisfação do "Eu-querer".

À luz dos dicionários a Felicidade “é qualidade ou estado de feliz; ventura, contentamento. Feliz é o ser ditoso, afortunado, venturoso. Contente, alegre, satisfeito. “Que denota ou em que há alegria, satisfação, contentamento”.

Existem diferentes abordagens ao estudo da felicidade - pela Filosofia, pelas religiões ou pela Psicologia. E a resposta mais concreta a essa pergunta “ O quê é a felicidade?”, pode ser assim dada: A felicidade é um estado durável de plenitude, satisfação e equilíbrio físico e psíquico, em que o sofrimento e a inquietude estão ausentes. Abrange uma gama de emoções ou sentimentos que vai desde o contentamento até a alegria intensa ou júbilo. A felicidade tem, ainda, o significado de bem-estar espiritual ou paz interior.

Contudo, toda essa definição do que seja felicidade não está completa.  Isso porque a felicidade plena e absoluta não existe. Também não existe receita, manual que possa dar garantia plena de se viver 100% feliz.  A busca é por mais momentos e sensação de felicidade. Descobrindo suas necessidades, suas metas, como e quando alcançá-las, saber reconhecer limite, respeitando e se fazendo respeitar, sabendo diferenciar você do outro, é um começo. E nessa busca, cabe a cada pessoa criar a sua receita e escrever o seu manual do que é a SUA sensação de felicidade.

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* Luísa Galvão Lessa é membro da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Acreana de Letras. Colunista do Jornal A Gazeta do Acre e do site Gosto de Ler. Artigo publicado em LINGUAGEM E CULTURA.

domingo, 19 de fevereiro de 2012

ALMA ACREANA do virtual para o papel

Acaba de sair o pequeno livro “Alma Acreana: textos esparsos”, uma reunião de alguns de meus principais textos publicados tanto no Blog Alma Acreana como em outros sites. O livro reúne treze artigos e dois poemas, todos ilustrados, revisados e aumentados. No momento é uma edição limitada, mas estamos preparando a edição para a internet. Disponibilizo abaixo o prefácio.


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O tempo foge.
O homem passa.
A palavra Fica.
Vão transcritas, aqui, minhas palavras ditas por aí. Não minhas. Maior parte colhida em jardins alheios. O arranjo, porém, é meu. Será? Versava H. Kolody que palavras são pássaros. Voaram. Não nos pertencem mais. Bendita palavra que encontra um chão onde brotar. O chão da palavra é o coração. Sem coração a palavra é como uma fonte sem água, um jardim sem flores...
Sou concreto. Sou abstrato.
Sou real. Sou virtual.
Recolhi textos esparsos do Alma Acreana. Verdadeiros, sim, porém virtuais. Não quero que morram quando um dia desaparecer o mundo, encerrado num HD de computador. O livro. Ninguém ainda inventou nada melhor. Sou moderno à moda antiga. O estalar do papel no toque dos dedos é poesia.
É uma edição limitada. Uma gratidão aos amigos. Nele encerro um naco de minha alma. Alma acreana.

Isaac Melo

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Aos amigos do Alma Acreana queremos ofertar um exemplar.
Participe por via comentários.

O QUARTO DOS PAPIROS E DAS ESTRELAS DO CÉU DE AZUL REAL – Leila Jalul

Ali no Tremembé, quase no Alto da Cantareira, eles eram apenas Joky e Mile. Sabia-se dele ser religioso ortodoxo, até pela aparência do trajar. Dela, de Mile, apenas que morava na mansão. Uma senhora mansão que tinha nos fundos um penhasco e, no penhasco, um plantio de pinheiros canadenses. Dela, da moça Mile, sabia-se nada. Sabia-se quase nada! E já era muito o nada saber...

Joki aparentava uns setenta e cinco anos; Mile, se muito, vinte e cinco. Tinha uma trança que lhe caía até a cintura. Um belo trançado de fartos pretos cabelos. Sua pele era alva. Chapéus de abas curtas, sempre de palha e descidos à frente, cobriam-lhe os pequenos olhos azuis.

Religiosamente, ainda muito cedo, descia a rua. Olhava para o chão. Sorria quando cumprimentada por um ou outro vizinho. Apenas sorria. Do chão não desgrudava os olhos. Da padaria, subindo a rua, voltava com uma bisnaga de meio metro de pão e dois litros de leite em embalagens de vidro. O trajeto era repetido no cair da tarde. A mesma compra: uma bisnaga de meio metro de pão e dois litros de leite em embalagens de vidro.

Era Mile, sempre, quem atendia às batidas no largo portão de madeira. Demorava a abrir. Parecia querer certificar-se se, quem bateu, poderia e deveria ser atendido. Medo? Raramente, também desconfiado, Joky vinha em seu auxílio. Também medo? O medo deveria rondar aquelas duas criaturas da mansão do penhasco com uma floresta de pinheiros canadenses. Por anos seguidos, invariavelmente às terças e sextas, em torno das seis da tarde, um senhor de óculos austeros, longa barba e roupas escuras visitava os moradores. Batia a aldrava de cobre do portão como se usando um código. Um motorista ficava do lado de fora à sua espera. Por longas horas esperava o senhor de óculos austeros.

A vizinha viu e contou tudo o que aconteceu na tarde de um outono já frio. Sempre era frio no Alto da Cantareira. Fosse verão, até. Dois homens estranhos, jamais vistos na redondeza, esperaram por bastante tempo, meia hora, ou mais, até que adentraram. Estavam numa caminhonete com grandes pacotes que pareciam pesados. O portão só foi aberto com a chegada de Joky e os homens foram recepcionados com reservas. Entraram. Do seu sobrado, a curiosa, esgueirada na janela, com olhos e ouvidos atentos pôde ver fagulhas de solda e ouvir sons de furadeira.

A vizinha do sobrado entendeu. Os homens só saíram da casa quando deixaram ser avistada uma torre mais alta que os pinheiros canadenses. Serviria para uma rádio PY? Para a comunicação com o mundo? Talvez! Queria ser uma mosca, a vizinha, nem que fosse por momentos breves, apenas para espiar como era a vida de Joky e Mile.

Anos depois, muitos, a mansão foi exposta à venda. Os vizinhos Joky e Mile voltariam para Gdańsk, na Polônia. A vizinha do sobrado fez o possível e o mais que possível para arranjar dinheiro. Vendeu o que era seu e, com o que tinha acumulado, comprou a mansão que, por décadas, causara-lhe estado de instigação permanente. Nas negociações preliminares viu que era procedente a atração irresistível. Era uma bela casa. De grandes cômodos, construída em dois níveis, transparecia guardar segredos e mistérios não de uma vida, mas de duas.

Na parte superior, em luz atenuada e indireta, uma grande sala que não servia aos visitantes. Uma sala-biblioteca, com duas imensas poltronas e dois abajures tipo sombrinha. Uma sala de leitura. Sala com livros esteticamente perfilados numa estante de mogno. Organizados sistematicamente, manuseados e guardados com disciplina e amor. Assim lhe pareceu. Na parede principal, num nicho feito sob medida, um quadro da Senhora de Chestochowa de Jasna Gora (Monte Claro), a padroeira da Polônia, feito à bico de pena e colorido com guache. Uma arte! A vizinha não deixou escapar detalhes.

Duas portas, ao serem abertas, revelavam o quarto de dormir de Joky e o de Mile. Móveis de jacarandá no quarto masculino diziam do poder aquisitivo do proprietário. Os criados mudos, de um e do outro, além de um reservatório para água e uma luminária de mesa, deixavam à mostra alguns livros marcados em meio à ultima página lida e a próxima, o que indicava a avidez pela leitura dos clássicos. No quarto de Mile, uma cama de ferro, tamanho solteirão, era pintada de branco e tinha adornos de bolas de metal prateado.

A vizinha do sobrado viu e contou que os proprietários da mansão que logo seria sua, liam Tolstói, Maximo Górki, Dostoiévski, Sócrates e Platão, ao mesmo tempo, nos ambientes onde dormiam. Dormiam acompanhados de bons autores. Talvez, quase com certeza, dessa leitura viesse a educação que mostravam possuir como maior riqueza.

Ainda durante a vistoria do imóvel, um momento foi especial e determinante para a quase garantida futura aquisição. O quarto de Mile possuía uma parede revestida com similares de papiros de tons amarelados, envelhecidos tecnicamente. As outras paredes tinham tonalidade azul marinho. No teto rebaixado, em azul real, estrelas em material fluorescente cintilavam. Uma lâmpada rotativa de parede jogava fachos direcionados que faziam bailar as constelações ali afixadas. Magia pura! Completando a decoração, parecendo retirada de um rescaldo de incêndio, a fotografia de um homem, uma mulher e uma criança menina. Fotografia antiga, em preto e branco foscos. Bem poderia ser dos avós de Mile e de sua mãe, quando menina.

Um pequeno corredor levava à cozinha. Tudo ali era branco. Um pequeno fogão, poucas panelas e louças de porcelana pintadas por Mile expressavam a pouca gula dos moradores. Um pequeno armário de condimentos e, ao lado dele, um de medicamentos que Joky tomava em horários marcados, anotados com detalhes numa lista afixada no painel da geladeira. Muitas frutas expostas em fruteiras rústicas diziam dos modos e costumes saudáveis.

Saindo da cozinha, com batentes de madeira e corrimão de barras de metal, uma escada deveria ser descida para alcançar o andar de baixo. Um canteiro de ervas para chás estava erguido em prateleiras sobre cantoneiras presas ao muro. Um jardim suspenso de camomila, hortelã, malva e outros tantos de carmelitanas, senes e macelas.

Ao centro do pequeno jardim, rigidamente limpa, uma fonte que jogava jatos iluminados por pequenas lâmpadas azuis, atraía pássaros em busca do refresco do banho e da bebericação de água. Dois pés de rosa menina, em cachos apinhados, adornavam o pedestal losango da fonte.

Um grande salão com portal e janelas de vitrais também azuis, destacava o ambiente que deveria ser chamado de porão. Uma visão divinal da floresta de pinheiros canadenses se descortinava. Uma paz de mosteiro reinava. Era o oráculo de Joki. Ali estavam a aparelhagem de rádio e um grande quadro de mensagens e lembretes vindos de todas as partes do mundo.

Esse oráculo, por anos, pela voz da vizinha compradora, serviu de quartel general para a tentativa de achar os pais de Mile. Se não os pais, algum parente. Avós, primos ou tios que lhe pudessem devolver a alegria perdida. Era no recanto sagrado, também, que, por todo o tempo de residência no Brasil, Joky fazia ligação com os familiares de outros compatriotas que, também no Brasil, cumpriram o forçado exílio. O senhor de óculos austeros servia de mensageiro. Vinham por ele os clamores da comunidade polonesa para a localização dos seus na terra deixada arrasada; através dele saíam os resultados dos contatos. Alvissareiros, ou não.

Pela voz e relato da vizinha, agora moradora da mansão, foi dito ao mundo que Mile, cujo nome verdadeiro não se sabia, fora apanhada por Joky, em estado famélico, numa praça de Gdańsk no período da invasão alemã e da caça aos judeus poloneses. Ela tinha apenas dois anos quando foi recolhida e, por sorte, não habitou os campos de concentração.

Na semana antecedente à viagem, fardos e mais fardos de bagagem foram encaixotados. Na data do embarque, surge Mile com o chapéu de sempre, vestida com a mesma tristeza de antes e sem desgrudar do chão os pequenos olhos azuis. O senhor de óculos austeros os levaria ao aeroporto. Seria ele, por poderes plenos passados por Joki, o encarregado de ultimar a venda da mansão, no que se referisse à transmissão definitiva do imóvel. Não houve festa de despedida. Saíram tão ou mais silenciosamente como enquanto ali viveram.

Pela voz da vizinha do sobrado, agora proprietária da mansão que tinha nos fundos um penhasco e, no penhasco, um plantio de pinheiros canadenses, foi dito que, no apressado do tempo, Mile esqueceu no quarto dos papiros e das estrelas do céu de azul real, talvez, quase de certo, a sua maior fortuna: a fotografia que parecia ter saído do rescaldo, onde estavam retratados um homem, uma mulher e uma criança que bem poderiam ser seus avós e sua mãe, quando criança.

A vizinha da casa do sobrado não hesitou. No próximo encontro com o soturno homem de óculos austeros devolveria o quadro embrulhado em uma página de presente, cópia similar de papiros, e escreveria num cartão com estrelas prateadas: “Para Mile, com carinho”.

Na sua primeira noite na casa, cansada pela mudança, uma dúvida pairou em seu pensar: teria sido um mero esquecimento?

No Tremembé, quase no Alto da Cantareira, está firme a mansão. Lá não mais mora a vizinha do sobrado, que se esgueirava para saber dos mistérios e segredos que pairavam sobre Joky e Mile. Os pinheiros canadenses do penhasco ainda estão lá. Parecem velhos e curvados em direção ao precipício. Para além do limite... Para onde tudo vai...

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*Publicado originalmente no site Lima Coelho.

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

A ERA DOS SERINGAIS

O Acre sempre fora muito ligado aos seringais. O seringal é parte constitutiva e essencial de sua história. A riqueza dos seringais, o látex, é que arregimentou para cá centenas de nordestinos, sírio-libaneses, portugueses... Praticamente todas as nossas cidades nasceram a partir de um núcleo de seringal. Somos, de nascença, todos filhos de seringal.

Quando, muito antanho, era moda a publicação dos álbuns iconográficos, um dentista de nome Emílio Falcão publicou o seu, o qual chamou “Álbum do Rio Acre: 1906-1907”. Trata-se do maior acervo iconográfico relativo à Revolução Acreana e da vida socioeconômica dos Seringais do Rio Acre. Um dos poucos documentos de relevância cultural que se conservaram daquele período de grande prosperidade econômica.

O álbum focaliza o vale do rio Acre logo após a incorporação do território ao Brasil pelo Tratado de Petrópolis (1903). Aí estão, numa impressionante sequência, os barracões dos seringais, com nomes brasileiríssimos, todos à beira do rio. Veem-se ainda damas em seus alongados vestidos, com chapéus, sombrinhas, leques, lenços. Bem como os cavalheiros de fraque, cartola... tudo como exigia a moda da época.

O professor Jacó Cesar Piccoli comenta que, ao registrar através de fotografias os seringais do baixo Purus, do baixo e alto Acre, da sua foz até Xapuri, Emílio Falcão não apenas documentou a paisagem do novo território conquistado aos bolivianos, mas os tipos humanos, os habitantes, os costumes da época, os tipos de embarcações (gaiolas, vaticanos, batelões, etc), enfim, aspectos de uma cultura que surgia com vigor em plena Amazônia.

Falch, sobrenome real de Emílio Falcão, elaborou o seu Álbum com informações históricas dadas pelo Capitão Libânio Macedo. Pena, conforme registrou Océlio de Medeiros, que ambos silenciaram sobre vultos históricos, como represália por não haverem contribuído financeiramente para a edição.

De qualquer forma, o que Emílio Falcão registrou é uma amostragem significativa do que foi a era dos seringais. O que faltou foram outros álbuns. O Álbum do Rio Tarauacá, o Álbum do Rio Juruá... Regiões tão belas quanto ricas.
ALTO ALEGRE - seringal central, propriedade do sr. Manoel Pereira Vianna, produz cerca de 15.000 quilos de borracha. Está situado entre Catuaba e a vila Rio Branco.

MACAPÁ - seringal na margem direita do rio, propriedade dos srs. Marques Nogueira & Ca. Este seringal e outros centrais pertencentes à mesma firma, podem produzir cerca de 180.000 a 200.000 quilos de borracha.

MACAPÁ - um pic-nic no centro deste seringal.
CAQUETÁ - seringal na margem direita, com produção de 25.000 a 30.000 quilos de borracha. É propriedade do sr. Coronel Joaquim Victor e o seu arrendatário é o sr. J. Lindozo. Neste seringal tem o Governo do Amazonas um posto fiscal e mesa de rendas.
BOM DESTINO - grande armazém para mercadorias no mesmo seringal, propriedade do sr. Coronel Joaquim Victor.

BAGÉ - seringal situado na margem esquerda, propriedade do Coronel Pergentino Eucrasio Ferreira. Pode produzir 100.000 quilos de borracha. Tem um belo campo, bonito laranjal e outras àrvores frutíferas.
SERINGAL SÃO FRANCISCO DE IRACEMA - bela propriedade do sr. Francisco Antonio de Brito. Situado à margem esquerda, pode este seringal produzir cerca de 90.000 a 100.000 quilos de borracha. Com belo campo, bastante criação, vacas de leite, etc., é um lugar aprazível.
PANORAMA - propriedade da firma Alves Braga & Cia., do Pará, sob a gerência do sr. Adolpho Brabosa Leite. Situado à margem esquerda com área de 98.106.800 m2 e 49.760.000 m2 de perímetro, produz 25.000 a 30.000 quilos de borracha. É uma bela vivenda, com boa água e muitas árvores frutíferas em seu terreno.

REMANSO - seringal que ocupa ambas as margens do rio. Seu barracão está situado na margem esquerda. É propriedade do sr. Annitiliano Ferreira de Mesquita, tem uma área de 395 milhões de metros quadrados e um perímetro de 150 km. Limita-se na margem esquerda com o seringal “Santa Severina”, pertencente ao mesmo senhor, com uma área de 150 milhões de metros quadrados e 90 milhões de metros lineares de perímetro. Completamente ocupado pode produzir cerca de 120.000 a 130.000 quilos.
NOVA FLORESTA - situado na margem direita. É seu proprietário o sr. Soares Hermanos, pode produzir 15.000 a 20.000 quilos de borracha, e é seu arrendatário presentemente o sr. Capitão José Rufino de Oliveira.

SERINGAL SÃO FRANCISCO DE IRACEMA - residência do sr. Francisco Antonio de Brito.

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*Fotografias e informações se encontram no "Álbum do Rio Acre: 1906-1907" de Emílio Falcão.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

DOIS POEMAS DE LUÍSA LESSA

TU PODES SER
Luísa Lessa 

Tu podes ser
O medo angustiante
O sangue a escorrer brilhante
A paixão constante

Tu podes ser
Aquele verso de desejo
Uma cantiga de sedução
Um amor, um carisma de um beijo

Tu podes ser
O amanhã que chega
O sol em declínio no horizonte
Um rio, um riacho, uma fonte

Tu podes ser
O fogo ardente
A chama calente
Uma paixão fulgente

TU É SABOR, LUZ, VIDA
Luísa Lessa

És o orvalho que nutre uma rosa
És a rosa que enfeita o jardim
És o jardim que ornamenta a campina
És o campo radioso sem fim
És um raio de luz no espaço sombroso
És a sombra suave e fiel
És o manto da cor de mel
És o abraço ardoroso.

És o sonho ideal da poesia
Que radia na rima do verso
Na candura do dia a dia
No segredo total do universo
És o berço a ninar o universo
És a face alegre da melodia
És degrau da eterna subida
És a vida de noite e de dia
És a vida em poesia.

És a ponte que jaz sobre o abismo
És a fonte dos mananciais
És o doce marulho das águas
És o fruto dos ninhos
És a primavera dos florais
És o forte que sustenta a cruz
És o norte a orientar caminhos.


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* Luísa Galvão Lessa é membro da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Acreana de Letras. Colunista do Jornal A Gazeta do Acre e do site Gosto de Ler. Poemas publicados em LINGUAGEM E CULTURA.

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

ALMA ACREANA - José Augusto de Castro e Costa


Alma minha gentil que aqui ainda estás,
Contemplando, perplexa, a ora sadia ora insana
Vida de um reino em busca de paz,
És, sim, única e própria alma acreana!

A propriedade de tua formação
Objeto da paz emanada de guerra,
Nasceu da exata miscigenação
De almas patrícias que a esperança encerra.

És brasileira por opção
Para seres de fato alma acreana.
Caráter firme, orgulho e decisão
De bravos, de onde o amor à pátria emana

Distingue-se algo da alma sulista,
Mas tens muito da alma cearense, pernambucana...
Destaca-se, sim, a influência nortista,
Pois desta mistura de almas és tu – alma acreana.





Foto: Marcos Pasquim

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

DEBATE EM TORNO DA PROFISSIONALIZAÇÃO DO FILÓSOFO

Profª. Inês Lacerda Araújo


Tramita no Congresso projeto do deputado Giovani Cherini (PDT - RS) que regulamenta a profissão do filósofo a fim de que este possa obter registro profissional no Ministério do Trabalho e Emprego, visando "retirar do mercado de trabalho as pessoas não-habilitadas", fazer do filósofo alguém com "vinculação à preservação e expansão do pensamento e das ideias em território nacional" (sic) é o que se lê na justificativa.

O projeto inclui itens para regulamantar a competência do filósofo, que deve:
"elaborar, supervisionar, orientar, coordenar, planejar, programar, implantar, controlar, dirigir, executar, analisar ou avaliar estudos, trabalhos, pesquisas, planos, programas e projetos atinentes à Filosofia, Pensamento e Ideias em geral e suas obras" e também ensinar filosofia, assessorar e prestar consultoria, participar de projetos que incluam lidar com o pensamento e ideias, e ainda:
"a formação de empresas ou entidades de prestação de serviço previstos nesta Lei, desde que as mesmas mantenham Filósofo como responsável técnico e não cometam atividades privativas de Filósofo a pessoas não habilitadas".

Pois bem, este projeto vem provocando inúmeras discussões pró e contra.

Se for ou não aprovado, pouco vai mudar na vida do professor de filosofia, em geral ele trabalha com carteira assinada e em geral é formado em cursos de filosofia.

Então, o que é polêmico?

Em primeiro lugar, ao definir o filósofo como detentor de uma habilidade específica além de complicado, resvala para o ridículo!

Se você não preservar e expandir pensamento e ideias em território nacional, você não é filósofo!?

Vejamos como você filósofo poderia prestar consultoria em uma empresa: ensinando ou pondo em prática a teoria do mundo da ideias platônica? Ou quem sabe definindo cidadão nos termos de Hegel? Ou discursando sobre o absurdo da vida sartreano? Ou afiando seus argumentos com base na lógica aristotélica? Sendo cético (e isso mataria qualquer projeto), ou dogmático?

Em segundo lugar, alguém com formação filosófica ao contribuir para qualquer projeto de interesse social, educacional ou político, o faz em função de uma especial capacidade de expor, de discutir, de argumentar, de fazer ver e entender aos outros como expandir noções e ideias. Basta certo nível de educação e formação ética, honestidade intelectual, e conteúdo. É preciso ter o que dizer, influenciar com uma abertura do pensamento para melhor compreensão de determinada situação ou problema.

Assim, quer se regulamente a profissão ou não, a qualidade e o tipo de participação do filósofo se dará ou não conforme a sociedade em geral solicite ou perceba que ideias podem contribuir para uma vida social mais justa, mais inteligente como diria Dewey, mais integradora.

Atingir tal nível é muito difícil e raro. Atenas na época dos filósofos legisladores, Roma com Marco Aurélio, a participação de filósofos na Revolução Gloriosa da Inglaterra (século 17), talvez alguma influência filosófica tenha havido na Inconfidência Mineira.

No mais, a filosofia entrou como ideologia em períodos de triste memória ao justificar jacobinos, fascistas, nazistas, comunistas.

Felizmente se fez a análise e crítica dessas vis noções, com papel de destaque para historiadores, políticos, jornalistas, sociólogos, e também alguns filósofos. E com a rejeição de todos que sofreram sob tais regimes de força.

PS: imaginem contratar Nietzsche como assessor do pensamento e das ideias, como avaliador e executor de projetos filosóficos (rs, rs, rs...)!!!

Ou: pensem qual foi, ou melhor, se houve influência e os resultados da filosofia positivista na virada da monarquia para a república no Brasil...

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* INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e doutora em Estudos Linguísticos. É professora aposentada da UFPR e PUCPR.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

O DIÁRIO DE CRISTHINE ASTHER ROJAS FUENTES Leila Jalul

Mal anoiteceu, o primeiro grito. Logo um segundo, abafado, e... um terceiro, cortado ao meio.

Semírames nem deu tratos à bola. Parou, parou! Já estava cansada de ouvir gritos na casa da conhecida. Não podia dizê-la amiga. Por qualquer motivo ela se assustava. Até quando uma mosca pousava em seu braço era motivo de faniquitos. Mas aqueles gritos soaram diferentes. Soaram, sim. Nada podendo fazer, desligou-se e não deu tratos à bola. Semírames só ouvia e registrava o que queria ouvir. E registrar, consequentemente!

Pouco antes das oito, outro grito. Este foi mais doído. E mais curto. Logo as luzes da casa foram todas apagadas e Semírames mais nada ouviu. Reinaram silêncio e escuridão. Pensou chamar Ricardo, ex-médico e marido de Cristhine. Desistiu. Fosse um mal-estar, ele cuidaria. Fosse uma cólica, medicaria. Fosse mais grave, conduziria a esposa para o hospital mais próximo. Por volta das onze, ainda mais abafado, um gemido e nada mais. Não se atreveu a oferecer ajuda. Nem tinha curiosidade tão aguçada, para assim agir. Mais cedo usou o telefone e não foi atendida. E foi dormir sem dar tratos à bola e sem registrar o que não gostaria ter ouvido. E fim!

No outro dia, passado o vento, tudo voltou a parecer normal. Do jirau, antes das cinco da manhã, os cumprimentos de sempre.

- Oi, Cristhine! Passou bem a noite?

- Sim, Semírames. E você?

Passaram bem a noite. As duas. Semírames evitou falar dos gritos abafados. O casal era jovem e bem poderia ter brincado de “acha eu”. Nesta brincadeira, nos costumes antigos, o marido procurava a mulher através de pistas deixadas com roupas espalhadas nos diversos cantos da casa. Havia erotismo na tal brincadeira. O ato de amor só se concretizaria quando fosse achada a calcinha e no exato lugar onde fosse encontrada. Se na sala, na sala. Se no chão do banheiro, no chão do banheiro. O assunto morreu aí. Não era curiosa e sabia do bom que era trepar.

Cristhine Asther era de origem sueca. Seus pais, geólogos, migraram para a Bolívia, instalaram-se em Oruro e trabalharam nas empresas de pesquisa e exploração de minério pertencentes a Dom Patiño, o Rei do Estanho. Ele, sim, o mesmo que inspirou Walt Disney a criar o personagem Tio Patinhas, que nadava em piscinas de moedas de ouro. As minas de Potosí não tinham fundos. E Patiño não tinha preguiça. E aliou-se a bons sócios, inclusive. E adquiriu o direito de explorar minas e mais minas. E foi dono da Bolívia. E impiedoso com os mineiros...

Tempos depois, quando Cristhine ainda era mocinha, foi morar em La Paz. Foi ali que a menina conheceu Ricardo Rojas Fuentes, estudante de medicina. Ali casaram. Contra a vontade dos pais de ambos. O choque cultural era mais que evidente. E a educação, idem.

O fundador da família:
Simón Iturri Patiño
Neste período, na década de 1940, o império de Simón Patiño, já nas mãos de Antenor, seu filho, declinava. Declinava não é bem o termo. O governo boliviano decidira nacionalizar as minas. Até os dias de hoje, entretanto, o nome do cholo Simon Iturri Patiño, o imperador, faz o maior sentido no país hermano, hoje dirigido pelo índio Evo Morales. Há os que o adoram e os que o odeiam. Do fundo das minas ecoam lamentos dos que sucumbiram.

Ricos, ainda, os pais de Cristhine voltaram para a Suécia. Insistiram para que a filha e o marido os acompanhassem. Que nada! Ricardo empacou e, em nome do laço do casamento, fez com que a menina também ficasse. Grávida de poucos meses, apaixonada, deixou que os pais voltassem sozinhos.

Miséria pouca é tiquinho; desgraça muita é vizinho ruim, diz o dito. Descoberto em falcatruas no estado boliviano e por erros no desempenho da profissão, Ricardo foi cassado nos seus direitos políticos e profissionais. Os grandes chefes militares não perdoavam! Fora o lixo boliviano! Por la pátria, compañeros! Viva Bolívia, nuestra pátria querida! Gritos de guerra eram ouvidos por las calles. De norte a sul, de leste a oeste.

O lixo Ricardo Rojas Fuentes bandeou-se de mala e cuia para o Brasil. Ainda tentou exercer a medicina, no que foi impedido, felizmente! De genro de um auxiliar direto do império de Simon Patiño, o Rei do Estanho, virou o Rei das Saltenhas. E foi no Brasil, na região fronteiriça, que nasceu Juan Simon Patiño Asther Rojas Fuentes – o Juanito. Nasceu sem pernas e com apenas tocos de braços. A talidomida havia feito mais uma de suas vítimas. Por prescrição do próprio pai. Sem culpas, diga-se. Fossem condenados todos os médicos que se valeram da talidomida...

Juanito, segundo Semírames, foi a criança mais querida e bem tratada pela mãe. Do pai, em dobro, teve o desprezo. Durou pouco o menino. Não resistiu às fragilidades da época. E o casal ainda estava jovem.

As finanças estavam de mal a pior. As saltenhas, embora saborosas, não geravam a fortuna do estanho e nem eram compatíveis com os honorários médicos. Muito trabalho e pouco ganho. Vida difícil! Por mais que Cristhine se desdobrasse. Tinha tremores de cansaço e maçãs do rosto em brasas. De sol a sol, debaixo do calor infernal amazônico, o forno de barro assava as empanadas famosas e representativas da gastronomia boliviana.

Os ventos sopravam os dias. Vez por outra, entre brisas, Semírames ouvia coisas. Deviam vir da brincadeira do “acha eu”. Não, não era. Era improvável que ainda mantivessem tanto tesão para o esconde-esconde. Há muito não se brincava mais disso. Deixou de ser moda. Havia, isto sim, sessões de tortura na casa vizinha. Certa ocasião, não tolerando mais tantos maltratos, confidenciou com Semírames sobre as atrocidades do marido.

Um dia, luzes apagadas e muitos gritos, Semírames sentiu-se na obrigação de chamar a polícia. Arrombada a porta, sobre a cama, deformada, estava Cristhine. Seu rosto desfigurado parecia uma bola de carne moída. A agressão foi tamanha que roubou-lhe os sentidos.

Em flagrante, sem desculpas, o Rei das Saltenhas foi levado pelos policiais. No mês seguinte, com a ajuda das autoridades brasileiras, Cristhine embarcou para junto de seus pais, em Gotemburgo, na nórdica Suécia.

Os fatos narrados em um cuaderno de apontamentos de Cristhine , nunca mostrados ao mundo, diziam, com passagens encobertas por tarjas pretas, do sofrimento de um ser humano que, por anos, experimentou períodos de terror e sofrimento. Saiu da escravidão com a altivez própria das mulheres verdadeiramente dignas. Entre receitas com a utilização de calabazas, choclos, maiz, papas e frijoles, as razões que levavam o marido a fazê-la a mais humilhada das criaturas: a fortuna dos seus pais. Ele a queria a qualquer custo.

Na última narrativa sobre torturas sofridas, estavam, com todos os erres e esses, os planos sórdidos de Eduardo Rojas Fuentes: Cristhine deveria pedir uma viagem até onde eles estavam e lá, sem deixar rastros, ele mesmo daria fim aos dois. Herdeira única...

Semírames ficou aliviada. O Rei das Saltenhas, torturador por vocação, cumpriria o seu degredo. Os reinados acabam. Até o de Simon Patiño, cuja memória causou orgulho aos seus herdeiros. Com uma diferença: a história de Cristhine é verdadeira. É real. A de Simon Patiño, sabe Deus! Sua “história” oficial mais parece fantasia. Biógrafos da época, entretanto, dizem de outra faceta do bilionário, não bem ao estilo de Walt Disney.

Das minas de Potosí ainda ecoam gemidos e uivos de dor. Na alma e no coração de Cristhine reina a paz. Não quis viver às custas dos pais e, corajosamente, empenhou-se em ter seu próprio meio de vida. Em Gotemburgo, até pouco tempo, era a rainha das saltenhas e delas sobreviveu. A iguaria fez mais sucesso que a sopa de urtigas com couve e era o que ela bem sabia fazer.

Do repulsivo Eduardo Rojas Fuentes, felizmente, Semírames nada mais soube. É o inferno o seu merecido lugar, assim responde quando perguntada.

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*** Publicado originalmente no site Lima Coelho.

sábado, 4 de fevereiro de 2012

FLORESTA - José Augusto de Castro e Costa


Floresta, és tu sublime inspiração
De Deus – esplendorosa criação!
Favoreces o equilíbrio das matas,
Assim como proteges as límpidas cascatas!

Floresta, é a sombria casa da flor esta.
Nas flores, nas folhas, nos caules, enfim em festa
És esperança real deste céu, deste rio-mar, desta terra...
Depósito energético que a natureza encerra!

A brisa que sopra na folhagem
Conta mil segredos para a flor...
A natureza a escutar esta homenagem
Diz serem tais, cantos de amor!

Tuas matas, a natureza sente,
Vibra, encanta e emana chama ardente
De belezas plásticas e eterno fulgor,
No triunfo imortal do soberano amor!

Bendito o verde que de ti fulgura
Ao banhar-te o sol – o real rei de luz pura...
Transportando raios coloridos em águas cristalinas
A esperá-los nos rios, igarapés, nas relvas das campinas!

Bendita sejas Floresta nossa de cada dia!
Que Deus te perpetue saudável!Devolva-te todo o porte e magia...
Te recupere a selva que te foi extraída
E voltes tu a oxigenar nossa própria vida!

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* José Augusto de Castro e Costa é poeta e cronista acreano.