Ali no Tremembé, quase no Alto da Cantareira, eles eram apenas Joky e Mile. Sabia-se dele ser religioso ortodoxo, até pela aparência do trajar. Dela, de Mile, apenas que morava na mansão. Uma senhora mansão que tinha nos fundos um penhasco e, no penhasco, um plantio de pinheiros canadenses. Dela, da moça Mile, sabia-se nada. Sabia-se quase nada! E já era muito o nada saber...
Joki aparentava uns setenta e cinco anos; Mile, se muito, vinte e cinco. Tinha uma trança que lhe caía até a cintura. Um belo trançado de fartos pretos cabelos. Sua pele era alva. Chapéus de abas curtas, sempre de palha e descidos à frente, cobriam-lhe os pequenos olhos azuis.
Religiosamente, ainda muito cedo, descia a rua. Olhava para o chão. Sorria quando cumprimentada por um ou outro vizinho. Apenas sorria. Do chão não desgrudava os olhos. Da padaria, subindo a rua, voltava com uma bisnaga de meio metro de pão e dois litros de leite em embalagens de vidro. O trajeto era repetido no cair da tarde. A mesma compra: uma bisnaga de meio metro de pão e dois litros de leite em embalagens de vidro.
Era Mile, sempre, quem atendia às batidas no largo portão de madeira. Demorava a abrir. Parecia querer certificar-se se, quem bateu, poderia e deveria ser atendido. Medo? Raramente, também desconfiado, Joky vinha em seu auxílio. Também medo? O medo deveria rondar aquelas duas criaturas da mansão do penhasco com uma floresta de pinheiros canadenses. Por anos seguidos, invariavelmente às terças e sextas, em torno das seis da tarde, um senhor de óculos austeros, longa barba e roupas escuras visitava os moradores. Batia a aldrava de cobre do portão como se usando um código. Um motorista ficava do lado de fora à sua espera. Por longas horas esperava o senhor de óculos austeros.
A vizinha viu e contou tudo o que aconteceu na tarde de um outono já frio. Sempre era frio no Alto da Cantareira. Fosse verão, até. Dois homens estranhos, jamais vistos na redondeza, esperaram por bastante tempo, meia hora, ou mais, até que adentraram. Estavam numa caminhonete com grandes pacotes que pareciam pesados. O portão só foi aberto com a chegada de Joky e os homens foram recepcionados com reservas. Entraram. Do seu sobrado, a curiosa, esgueirada na janela, com olhos e ouvidos atentos pôde ver fagulhas de solda e ouvir sons de furadeira.
A vizinha do sobrado entendeu. Os homens só saíram da casa quando deixaram ser avistada uma torre mais alta que os pinheiros canadenses. Serviria para uma rádio PY? Para a comunicação com o mundo? Talvez! Queria ser uma mosca, a vizinha, nem que fosse por momentos breves, apenas para espiar como era a vida de Joky e Mile.
Anos depois, muitos, a mansão foi exposta à venda. Os vizinhos Joky e Mile voltariam para Gdańsk, na Polônia. A vizinha do sobrado fez o possível e o mais que possível para arranjar dinheiro. Vendeu o que era seu e, com o que tinha acumulado, comprou a mansão que, por décadas, causara-lhe estado de instigação permanente. Nas negociações preliminares viu que era procedente a atração irresistível. Era uma bela casa. De grandes cômodos, construída em dois níveis, transparecia guardar segredos e mistérios não de uma vida, mas de duas.
Na parte superior, em luz atenuada e indireta, uma grande sala que não servia aos visitantes. Uma sala-biblioteca, com duas imensas poltronas e dois abajures tipo sombrinha. Uma sala de leitura. Sala com livros esteticamente perfilados numa estante de mogno. Organizados sistematicamente, manuseados e guardados com disciplina e amor. Assim lhe pareceu. Na parede principal, num nicho feito sob medida, um quadro da Senhora de Chestochowa de Jasna Gora (Monte Claro), a padroeira da Polônia, feito à bico de pena e colorido com guache. Uma arte! A vizinha não deixou escapar detalhes.
Duas portas, ao serem abertas, revelavam o quarto de dormir de Joky e o de Mile. Móveis de jacarandá no quarto masculino diziam do poder aquisitivo do proprietário. Os criados mudos, de um e do outro, além de um reservatório para água e uma luminária de mesa, deixavam à mostra alguns livros marcados em meio à ultima página lida e a próxima, o que indicava a avidez pela leitura dos clássicos. No quarto de Mile, uma cama de ferro, tamanho solteirão, era pintada de branco e tinha adornos de bolas de metal prateado.
A vizinha do sobrado viu e contou que os proprietários da mansão que logo seria sua, liam Tolstói, Maximo Górki, Dostoiévski, Sócrates e Platão, ao mesmo tempo, nos ambientes onde dormiam. Dormiam acompanhados de bons autores. Talvez, quase com certeza, dessa leitura viesse a educação que mostravam possuir como maior riqueza.
Ainda durante a vistoria do imóvel, um momento foi especial e determinante para a quase garantida futura aquisição. O quarto de Mile possuía uma parede revestida com similares de papiros de tons amarelados, envelhecidos tecnicamente. As outras paredes tinham tonalidade azul marinho. No teto rebaixado, em azul real, estrelas em material fluorescente cintilavam. Uma lâmpada rotativa de parede jogava fachos direcionados que faziam bailar as constelações ali afixadas. Magia pura! Completando a decoração, parecendo retirada de um rescaldo de incêndio, a fotografia de um homem, uma mulher e uma criança menina. Fotografia antiga, em preto e branco foscos. Bem poderia ser dos avós de Mile e de sua mãe, quando menina.
Um pequeno corredor levava à cozinha. Tudo ali era branco. Um pequeno fogão, poucas panelas e louças de porcelana pintadas por Mile expressavam a pouca gula dos moradores. Um pequeno armário de condimentos e, ao lado dele, um de medicamentos que Joky tomava em horários marcados, anotados com detalhes numa lista afixada no painel da geladeira. Muitas frutas expostas em fruteiras rústicas diziam dos modos e costumes saudáveis.
Saindo da cozinha, com batentes de madeira e corrimão de barras de metal, uma escada deveria ser descida para alcançar o andar de baixo. Um canteiro de ervas para chás estava erguido em prateleiras sobre cantoneiras presas ao muro. Um jardim suspenso de camomila, hortelã, malva e outros tantos de carmelitanas, senes e macelas.
Ao centro do pequeno jardim, rigidamente limpa, uma fonte que jogava jatos iluminados por pequenas lâmpadas azuis, atraía pássaros em busca do refresco do banho e da bebericação de água. Dois pés de rosa menina, em cachos apinhados, adornavam o pedestal losango da fonte.
Um grande salão com portal e janelas de vitrais também azuis, destacava o ambiente que deveria ser chamado de porão. Uma visão divinal da floresta de pinheiros canadenses se descortinava. Uma paz de mosteiro reinava. Era o oráculo de Joki. Ali estavam a aparelhagem de rádio e um grande quadro de mensagens e lembretes vindos de todas as partes do mundo.
Esse oráculo, por anos, pela voz da vizinha compradora, serviu de quartel general para a tentativa de achar os pais de Mile. Se não os pais, algum parente. Avós, primos ou tios que lhe pudessem devolver a alegria perdida. Era no recanto sagrado, também, que, por todo o tempo de residência no Brasil, Joky fazia ligação com os familiares de outros compatriotas que, também no Brasil, cumpriram o forçado exílio. O senhor de óculos austeros servia de mensageiro. Vinham por ele os clamores da comunidade polonesa para a localização dos seus na terra deixada arrasada; através dele saíam os resultados dos contatos. Alvissareiros, ou não.
Pela voz e relato da vizinha, agora moradora da mansão, foi dito ao mundo que Mile, cujo nome verdadeiro não se sabia, fora apanhada por Joky, em estado famélico, numa praça de Gdańsk no período da invasão alemã e da caça aos judeus poloneses. Ela tinha apenas dois anos quando foi recolhida e, por sorte, não habitou os campos de concentração.
Na semana antecedente à viagem, fardos e mais fardos de bagagem foram encaixotados. Na data do embarque, surge Mile com o chapéu de sempre, vestida com a mesma tristeza de antes e sem desgrudar do chão os pequenos olhos azuis. O senhor de óculos austeros os levaria ao aeroporto. Seria ele, por poderes plenos passados por Joki, o encarregado de ultimar a venda da mansão, no que se referisse à transmissão definitiva do imóvel. Não houve festa de despedida. Saíram tão ou mais silenciosamente como enquanto ali viveram.
Pela voz da vizinha do sobrado, agora proprietária da mansão que tinha nos fundos um penhasco e, no penhasco, um plantio de pinheiros canadenses, foi dito que, no apressado do tempo, Mile esqueceu no quarto dos papiros e das estrelas do céu de azul real, talvez, quase de certo, a sua maior fortuna: a fotografia que parecia ter saído do rescaldo, onde estavam retratados um homem, uma mulher e uma criança que bem poderiam ser seus avós e sua mãe, quando criança.
A vizinha da casa do sobrado não hesitou. No próximo encontro com o soturno homem de óculos austeros devolveria o quadro embrulhado em uma página de presente, cópia similar de papiros, e escreveria num cartão com estrelas prateadas: “Para Mile, com carinho”.
Na sua primeira noite na casa, cansada pela mudança, uma dúvida pairou em seu pensar: teria sido um mero esquecimento?
No Tremembé, quase no Alto da Cantareira, está firme a mansão. Lá não mais mora a vizinha do sobrado, que se esgueirava para saber dos mistérios e segredos que pairavam sobre Joky e Mile. Os pinheiros canadenses do penhasco ainda estão lá. Parecem velhos e curvados em direção ao precipício. Para além do limite... Para onde tudo vai...
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