BAHIA, MARÇO DE 2011
QUERIDAS COMPANHEIRAS,
Neste momento importante, daqui desta “triste Bahia, ó quão dessemelhante”, tenho um pensamento massacrante do quanto gostaria de estar com vocês. De como ficaria feliz em abraçar minha amiga Concita Maia e outras tantas amigas de carinho sincero e de caminhada. Cada uma no seu quadrado, para evitar sentimentos menores, é certo?
Gostaria de ver a Karla Martins, a Mariama Morena, filha de minha estimada Célia Pedrina e a Val Fernandes, minha fotógrafa preferida. Nada seria melhor que ouvir a Verônica Padrão cantando Mercedes Sosa ou até um forrozinho. Qualquer paixão me diverte na voz de Verônica e de outras meninas que soltam as vozes nos bares e nos espetáculos da vida. Não há moeda que pague!
Um papo nas Fundações Elias Mansour e Garibaldi Brasil com as serelepes Eurilinda, Rose Farias, Talita Oliveira, Leila Hofmann, Carol de Deus e outras que não lembro nomes...
E o que dizer da vontade de beijar as mãos da velha guerreira Nilda Dantas, essa mulher que aprendi a admirar pela sua história? Uma pioneira, na acepção maior da palavra. As vozes das selvas têm uma representante de grande quilate! Nilda é sua melhor tradução.
Às meninas da imprensa, minha admiração. Elas entraram num mercado antes masculino e provaram seu valor. Eliane Sinhasique vem mostrando que babado não é bico. Abraço-a como se estivesse abraçando a todas.
Às profissionais da saúde, da educação, da construção civil, da justiça, da política, e a outras tantas batutas e competentes que atuam no Estado, meu reconhecimento. Que o abraço que envio para a Juíza Denise Bonfim, para a Doutora Solange Cruz, para a eterna musa do PCdoB, a camarada Rita Batista e para a mestra amiga Florentina Esteves, seja extensivo a todas.
Por fim, sem vontade de terminar, quero dizer algo para as meninas do batente da vida, briguentas e valorosas: mães de sangue, mães do coração, operárias, prostitutas, domésticas, presidiárias, gordas, negras, feias, cabelos pixains, originais ou plastificadas, indígenas, analfabetas ou as que sabem apenas assinar seus nomes, meninas ou idosas, amputadas ou inteiraças e a muitas outras que vivem no anonimato, que acertam, erram, se penitenciam, são condenadas por todos os tipos de leis, amam, apanham, choram, às vezes até se desesperam, mas que não se permitem jamais abandonar o barco. Para elas algo mais que um carinho ou um ramalhete de flores: uma declaração de amor em forma de poesia.
O lado quente do ser
Marina Lima
Eu gosto de ser mulher
Sonhar arder de amor
Desde que sou uma menina
De ser feliz ou sofrer
Com quem eu faça calor
Esse querer me ilumina
E eu não quero amor nada de menos
Dispense os jogos desses mais ou menos
Pra que pequenos vícios
Se o amor são fogos que se acendem
Sem artifícios
Eu já quis ser bailarina
São coisas que não esqueço
E continuo ainda a sê-la
Minha vida me alucina
É como um filme que faço
Mas faço melhor ainda
Do que as estrelas
Então eu digo amor, chegue mais perto
E prove ao certo qual é o meu sabor
Ouça meu peito agora
Venha compor uma trilha sonora para o amor
Eu gosto de ser mulher
Que mostra mais o que sente
O lado quente do ser
Que canta mais docemente.
Uma rosa para as que tombaram no caminho.
Uma reverência aos homens de alma feminina.
Companheiras mulheres acreanas, comemoremos o tempo do nosso tempo. Lutemos por mais vitórias! Agora é a hora!
Onde está meu batom?
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Este conto, a ser um dia publicado, homenageia uma velha amiga que foi lavadeira de minha mãe.
A DESASTROSA ESCOLHA DE SOFIA MARIA
Pia, pia, cotovia
pia em diapasão
se eu me chamasse apenas
Sofia, cotovia,
seria uma rima,
jamais uma solução.
Para Dona Guilhermina, a primeira presidenta
do Sindicato das Lavadeiras do Acre.
Leila Jalul
No boom do sindicalismo, discorre Sofia Maria, eu e minhas amigas Raimunda Tenório, Antonia Almerinda e Joana das Neves, diante da escravização das lavadeiras, decidimos, sob os auspícios e orientações das centrais sindicais, criar o Sindicato das Lavadeiras. Primeiro veio a Associação, como mandava a lei. Na mais pura intenção de organizar a categoria, numa cidade onde as máquinas de lavar, fossem da Brastemp, ou da Westinghouse eram apenas meros objetos de decoração, merecemos loas e versos.
Tempos difíceis aqueles. Tempos do ou vai, ou racha...
Em menos de um mês, vinte sindicalizadas. Em menos de um ano, mais de cem. Empurradas pelo grito de “lavadeiras, unidas, jamais serão vencidas”, vivemos a glória e a esperança de humanização da nossa vida laboral.
“Após a plenária, estabelecemos um listado de valores. Valores que distinguiam bem o povo mais limpo e o mais seboso. Roupas mais sujas, mais caras. Cuecas cagadas e calças com sinais de sangue de menstruação, mais valorizadas, indicavam alta na nossa tabela. Fraldas de tecido com cocô grudado, um preço. Sem os toletinhos, outro valor. Acabamos com o negócio de preço por trouxa. Por quilo, seria outra asneira. Não eram medidas justas. Éramos fortes. E foi bom, enquanto durou, enquanto valeram as decisões majoritárias. Enquanto houve consenso, em suma”.
“Um belo dia, entra na irmandade sindicalizada uma tal Socorrinha Ferreira, cooptada pelo lado da corrupção e dos desvairios do poder. Foi plantada no sindicato para semear discórdias e colher insatisfações e, por consequência, enfraquecer o movimento. Ela tinha estatura e grana para convencer algumas de nossas Marias, Raimundas e Antonias a mudarem a direção do ponteiro da dignidade. Chegou com mil e duzentas promessas de crescimento e outros tantos mil e duzentos merréis para que as trabalhadoras no trato de roupas sujas se recolhessem ao silêncio dos incapazes”.
“Nossa organização, apenas nascitura, não resistiu aos cantos e encantos da sereia do partido da situação. O governador, mais conhecido por Vagalume, por ser míope e usar óculos fundos de garrafa, não aceitava estudantes, categorias e classes se organizando. Poderiam tomar fôlego e, do dia para a noite, vai que o diabo atenta, mudariam o panorama da situação. Era um vagalume sem luz no rabo. Um homem das trevas”.
“No dia em que nossa diretoria foi presa, lembrarei até o meu último dia de vida, dois dos soldados armados com metralhadoras eram filhos de companheiras nossas. Havia lágrimas no rosto dos garotos fardados. Fingimos não conhecê-los e até entendemos que estavam ali por dever de ofício. Esta é uma imagem que guardarei para sempre. É, para mim, uma prova clara de que os fracos não são tão fracos e os fortes não são tão fortes”.
E assim, que caminho seguir, senão o da deserção? Não resistiu ser empurrada e humilhada dentro de salas frias de cadeias e prisões. Foi duro para Sofia Maria. Em seis anos envelheceu mais de dez.
Desertou. Abandonou o movimento não por causa de soldados armados, nem por conta de cara feia de governantes. Estava cansada. Não de lavar roupa, evidentemente. Estava abusada de lidar com o contraditório e com as injunções fortes do poder das armas. Estava enojada com o rebuliço interno e a falta de compreensão de algumas companheiras. Uma vez, presidindo a assembléia geral, ouviu de uma moçoila, filha da companheira Cristina, o seguinte disparate: “ Dona Sofia Maria, até pelo seu nome, você não está conosco. É pelega e está à serventia da classe dominante. Você é suspeita. Quem pôs a senhora aqui, compreendo, até pode desconhecer a sua vida. Eu, não!”
Não precisou ouvir mais nada. Silenciou. Mesmo assim prometeu para si mesma descobrir quem havia mandado o recado por aquela pivete abusada. Quem escreveu o discurso. Quem colocou a palavra “pelega” na boca da ignorante. Num simples exercício de lógica, sem grandes malabarismos, pensou que a maçã não cai longe da árvore e logo descobriu a vilania. Foi o deputado Magalhães, amigado com Socorrinha Ferreira. Nem precisou gastar seus parcos miolos. Entregou o cargo na diretoria e rumou para casa.
“Nunca me perdoei por não ter lutado mais. Estava cansada? Sim. Estava assustada? Sim, mas não tanto que não pudesse continuar”.
“Mas é preciso ter manha
É preciso ter graça
É preciso ter sonho sempre
Quem traz na pele essa marca
Possui a estranha mania
De ter fé na vida”
Até hoje, quando as Brastemps e as Westinghouses funcionam a pleno vapor, patroas folgadas não se acostumaram com o fim da servidão. Quem lava, não passa; quem cozinha, cuida de menino e limpa casa, nem lava e nem passa. Via de regra, sim. Nas regiões norte e nordeste, principalmente. Lavanderias saem pelos olhos da cara. Sem solução as madames apelam para as antigas lavadeiras de beira de rio, de cacimbões ou de olhos d’água para terem sempre limpas e cheirosas as roupas sujas de suas casas e as imundícies de seus hábitos.
O Sindicato das Lavadeiras poderia estar atual e atuante. Um pouco mais de luta, Sofia Maria poderia ter estado lá por um período mais longo. O Sindicato poderia estar vivo ainda que os tempos sejam outros.
Agora é tarde e Sofia Maria, a presidente, é morta. Sua luta continuou nas lavagens de roupas. Vida dura, mas independente. Sempre estabeleceu seu preço pelas lavagens das roupas. O maior embate, entanto, foi com os seus próprios sentimentos.
Em casa, na solidão, lembrou de Evaristo, o marido. Ele se foi para Pauini, no exato dia em que perguntou a quem ela preferia: a ele, ao filho ou ao sindicato. Sem direito a arrependimentos, ele avisou. Sem comentários, também.
Hoje, aos 86 anos de idade, deitada na rede quadriculada, sem filho, sem marido e sem forças de ter fé na vida, acaricia Lamarca, o velho cão, único e solidário companheiro que lhe restou. Perdoou-se por não ter feito mais. No seu rosto miúdo e de vincas profundas, é possível ver sorrisos.
“Mas é preciso ter força
É preciso ter raça
É preciso ter gana sempre
Quem traz no corpo a marca
Maria, Maria
Mistura a dor e a alegria...” (*)
(*) Maria, Maria, de Milton Nascimento e Fernando Brant
Esclarecimento: este texto não representa fatos da vida de Dona Guilhermina. Foca a vida de uma lavadeira de qualquer lugar do Brasil, e que, nos tempos difíceis, esteve envolvida na luta sindical. Qualquer semelhança é mera coincidência.
Para contatos com a escritora:
leilajalul@gmail.com
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*Leila Jalul é atualmente umas das maiores vozes femininas das letras acreanas, ao lado de Florentina Esteves e Robélia Fernandes. Procuradora aposentada, da Universidade Federal do Acre, é autora de Suindara (Fortaleza: Expressão Gráfica e Editora LTDA, 2007) e Absinto Maior (2007), Das cobras, meu veneno (Edição independente, 2010). Por "razões" de segurança Leila Jalul teve que deixar o Acre. Reside atualmente na Bahia.