terça-feira, 30 de setembro de 2014
segunda-feira, 29 de setembro de 2014
ASSIM FALOU ZARATUSTRA
Friedrich Nietzsche (1844-1900)
Pois o homem é o animal mais cruel.
Foi com tragédias, touradas e crucificações que até agora ele se sentiu melhor na terra; e, quando inventou o inferno, este foi seu céu na terra.
Pois o homem é o animal mais cruel.
Foi com tragédias, touradas e crucificações que até agora ele se sentiu melhor na terra; e, quando inventou o inferno, este foi seu céu na terra.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra:
um livro para todos e para ninguém. Tradução, notas e posfácio Paulo César de
Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2011. p.209
sábado, 27 de setembro de 2014
A CULPA É DA FILOSOFIA E SOCIOLOGIA
Palavras da atual candidata (me recuso a
pronunciar seu nome) do PT a presidência da República, em que, entre outras,
menospreza a filosofia e a sociologia:
“Por que criar um ensino técnico? Porque o
jovem do ensino médio, ele não pode ficar com 12 matérias, incluindo nas 12
matérias, filosofia e sociologia. Não tenho nada contra filosofia e sociologia,
mas um currículo com 12 matérias não atrai um jovem.” (em entrevista ao jornal Bom Dia Brasil 22.09.2014)
Bem, mal comecei minha vida de professor de
filosofia e já vou ter que mudar de profissão. Aceito sugestões!
Clique aqui para conferir a entrevista completa.
Leia aqui um artigo de opinião sobre a fala da presidente.
***
“Que ninguém hesite em se dedicar à filosofia
enquanto jovem, nem se canse de fazê-lo depois de velho, porque ninguém jamais
é demasiado jovem ou demasiado velho para alcançar a saúde do espírito. Quem afirma
que a hora de dedicar-se à filosofia ainda não chegou, ou que ela já passou, é
como se dissesse que ainda não chegou ou que já passou a hora de ser feliz.
Desse modo, a filosofia é útil tanto ao jovem quanto ao velho: para quem está
envelhecendo sentir-se rejuvenescer por meio da grata recordação das coisas que
já se foram, e para o jovem poder envelhecer sem sentir medo das coisas que
estão por vir; é necessário, portanto, cuidar das coisas que trazem a
felicidade, já que, estando esta presente, tudo temos, e, sem ela, tudo fazemos
para alcançá-la.”
Epicuro (341-270 a.C.)
EPICURO. Carta sobre a felicidade (a
Meneceu). Tradução e apresentação de Álvaro Lorencini e Enzi Del Carratore. São
Paulo: Editora UNESP, 2002.
“Um filósofo: um homem que continuamente vê,
vive, ouve, suspeita, espera e sonha coisas extraordinárias; que é colhido por
seus próprios pensamentos, como se eles viessem de fora, de cima e de baixo,
constituindo a sua espécie de
acontecimentos e coriscos; que é talvez ele próprio um temporal, caminhando prenhe
de novos raios; um homem fatal, em torno do qual há sempre murmúrio, bramido,
rompimento, inquietude. Um filósofo: oh, um ser que tantas vezes foge de si,
que muitas vezes tem medo de si – mas é sempre curioso demais para não “voltar
a si”... § 292
Friedrich Nietzsche (1844-1900)
NIETZSCHE, Friedrich Wilhelm. Além do bem e
do mal: prelúdio a uma filosofia do futuro. Tradução, notas e posfácio de Paulo
César de Souza. São Paulo: Companhia das Letras, 2005.
“Quem é capaz de ver o todo, é filósofo; quem
não é capaz, não o é.”
Platão
POEMA
Manoel de Barros
A poesia está guardada nas palavras – é tudo
que eu sei.
Meu fado é o de não saber quase tudo.
Sobre o nada eu tenho profundidades.
Não tenho conexões com a realidade.
Poderoso para mim não é aquele que descobre
ouro.
Para mim poderoso é aquele que descobre as
insignificâncias (do mundo e as nossas).
Por essa pequena sentença me elogiaram de
imbecil.
Fiquei emocionado e chorei.
Sou fraco para elogios.
BARROS, Manoel de. Poesia Completa. São
Paulo: Leya, 2010. p.403
terça-feira, 23 de setembro de 2014
ARCO E FLECHA
Música do acreano Sérgio Souto sobre o poema “Arco
e flecha” de Marina Silva
Arranjos e execução de Zé Carlos Santos
Arranjos e execução de Zé Carlos Santos
ARCO E FLECHA
Marina Silva
Do arco que empurra a flecha,
Quero a força que a dispara.
Da flecha que penetra o alvo
Quero a mira que o acerta.
Do alvo mirado
Quero o que o faz desejado.
Do desejo que busca o alvo
Quero o amor por razão.
Sendo assim não terei arma,
Só assim não farei a guerra.
E assim fará sentido
Meu passar por esta terra.
Sou o arco, sou a flecha,
Sou todo em metades,
Sou as partes que se mesclam
Nos propósitos e nas vontades.
Sou o arco por primeiro,
Sou a flecha por segundo,
Sou a flecha por primeiro,
Sou o arco por segundo.
Buscai o melhor de mim
E terás o melhor de mim.
Darei o melhor de mim
Onde precisar o mundo.
sexta-feira, 19 de setembro de 2014
CIENTE
Cassiano Ricardo (1895-1974)
I
O beijo com que a tarde
me ensanguenta a boca.
Fingirei que o não sinto?
Grandes borboletas,
que só nascem a esta hora,
pousam de asas fechadas
no meu labirinto.
No desmoramento
dourado do dia
a grande ave absurda
do silêncio gorjeia
mas não sei em que árvore.
II
Já na primeira infância
me roubaram o seio,
alvo, redondo, cheio,
em que eu bebia o leite
da ignorância.
Agora bebo o sangue
da filosofia.
Sangue rubro em que molho
o pão de cada dia.
E, em lugar da rosa,
resta-me o pedregulho
onde nasce o país
dos objetos sem uso.
País que fica ao norte
do imediatamente.
O país concluso.
Não existem mais frutos
em nenhum pomar
que já o meu paladar,
hoje corrompido,
não conheça – sabido.
Não há seda ou cacto
que já a minha mão
não adivinhe, logo,
experiente ao contacto
das coisas corpóreas
e das suas arestas
ou frestas.
Minha mão é um símbolo.
Ontem, rica – convexa.
hoje pobre – côncava.
III
Lembro-me, ainda hoje:
o diabo me chamou
a um canto da parede
em capcioso gorjeio,
e aí me ensinou tudo.
A primeira palavra
que aprendi a escrever
no beco da Matriz
foi um nome feio.
E quando era manhã
já eu sabia o segredo
da noite, ao meu ouvido,
que a serpente da fábula
me ofereceu, dentro
do fruto proibido.
Tinha eu muita sede.
Deu-me a vida a água
da mágoa.
Água terrível, trago-a
dentro de mim, orvalho
dentro de um baralho.
Até que escrevi “ciente”
no papel que me trouxe
o oficial de justiça
e fiquei então ciente
de que havia a injustiça.
Fiquei ciente de tudo.
(A mais triste forma
de saber é estar ciente.)
IV
O mundo me ensinou,
me cuspiu no rosto,
me fez triste e sábio.
E em meio ao triste pão
que minha mão amassa,
em meio à convicção
que substituiu o êxtase,
em meio à mais abjeta
condição de vida,
resta-me, só, a ironia
da poesia.
Resta-me só esta graça
de ser poeta.
Poesia! única coisa
que, depois de sabida,
continua secreta...
RICARDO, Cassiano. Melhores Poemas. Seleção Luiza Franco Moreira. São Paulo: Global, 2003. p.108-112
quarta-feira, 17 de setembro de 2014
LUÍSA LESSA É DIPLOMADA MEMBRO DA INTERNATIONAL WRITERS AND ARTISTS ASSOCIATION
A professora e escritora acreana Luísa Galvão
Lessa agora faz parte de uma das mais importantes entidades de escritores do
mundo, a International Writers and Artists Association (IWA), sediada na cidade
de Toledo, Ohio, USA. A Associação Internacional de Escritores e Artistas, fundada
em 1978, é a maior associação do mundo, e reúne em seu quadro príncipes, artistas,
escritores, presidentes, etc. A IWA faz intercâmbio entre escritores do mundo
inteiro e seus órgãos de divulgação nas mais diversas línguas. Tem mais de mil e
duzentos membros, em cinco continentes. Luísa Lessa é natural de Tarauacá, e
uma das educadoras mais respeitadas do Acre, membro da Academia Brasileira de
Filologia e da Academia Acreana de Letras. Abaixo transcrevemos sua carta endereçada
a Teresinka Pereira, presidente da IWA.
CARTA AO IWA
Rio Branco, 10 de setembro de 2014
Ilma. Sra.
Prof.ª. Dr.ª Teresinka Pereira
MD. Presidente da IWA – Embaixadora at Large
do Parlamento Mundial dos Estados para Segurança e Paz e Presidente de Honra da
IWA
Os meus cordiais e respeitáveis cumprimentos
a Vossa Excelência, extensivos a todos os imortais dessa honrosa instituição
IWA, que ora me acolhem como membro perene dentre as personalidades de 137 países
do globo. Sinto-me muito pequena para um mundo tão gigante e valioso pelos
escritores e poetas que agrega essa prestigiosa instituição.
Recebo o diploma de membro perene, com honra
e humildade. Eu, nascida no Igarapé Humaitá, Seringal São Luís, habitado por
algumas tribos indígenas – situado às cabeceiras do Rio Muru, distante de
Tarauacá oito dias de barco, em meio a Floresta Amazônica – nunca sonhei chegar
tão longe e alcançar tão alta honraria. Por mais distante que os sonhos me
levassem, eles não foram ousados para me conduzir a Toledo, Ohio, USA, lugar
onde os nobres confrades me acolhem como membro perene da International Writers
end Artists Association – IWA, quando posso votar na escolha do Prêmio Nobel da
Literatura e Prêmio Nobel da Paz. Meu Deus, quanta bênção na minha vida!
Eu agradeço pela distinção e apreço. E, nesta
breve mensagem eu me curvo diante da nobreza desta gloriosa instituição. Eu,
assim como muitos amazônidas, fui à luta, ‘caí no mundo’, como se diz
popularmente. E foi nele que aprendi as lições mais sublimes, que redimem meus
pecados e lavam a minh’alma feminina, forte e livre para ir adiante, sempre,
promovendo a Língua Portuguesa, o Ensino Superior, a Graduação e a
Pós-Graduação da Universidade Federal do Acre, a Cultura Amazônica, a Pesquisa
Científica Brasileira, a Poesia e a Literatura de expressão Amazônica.
Por tudo que recebo eu digo à Embaixadora at
Large do Parlamento Mundial dos Estados para Segurança e Paz e Presidente de
Honra da IWA, a brasileira, Dra. Teresinka Pereira, poderá apertar minha mão e
sentir que carrego na alma, na vida, na profissão que exercito, a arte, a
cultura, a vida e o humanismo, olhando-os como um legado precioso para aqueles
que chegarão depois de nós.
E o melhor de tudo é que embora não estejamos
diante do mesmo espelho, estamos nos olhando sempre pelos caminhos da
literatura, da arte, da cultura, do cultivo ao idioma pátrio. É como diz
Guimarães Rosas “o mais importante e bonito do mundo, é isto: que as pessoas
não estão sempre iguais, ainda não foram terminadas - mas que elas vão sempre
mudando”. Afinam ou desafinam. E nós, ao que tudo indica, temos afinado a
canção amazônica e porque não dizer brasileira?
É grande a honraria em ser confreira de Renã
Leite Pontes (Brasil); do Príncipe Di Manzartille (Itália); Eduardo Galeano
(Uruguai); Toni Morrison (Prêmio Nobel de Literatura – (USA); Ariano Suassuna
(Brasil); Fernando Henrique Cardoso (Presidente do Brasil, 1994 - 2002);
Leonardo Boff (Brasil); Prince Giuseppe Benvenuto 1o Agatino Raddino de
Gevaudan de la Casa Real di Horistal y de las Valadas Occitanas (Itália),
Marcel Marceau (France), Noam Chomsky (USA), Fernando Alegria (Chile), Carlos
Drummond de Andrade (Brasil), Rigoberta Menchü (Peace Nobel Prize in 92,
Guatemala) Ernesto Sábato (Argentina); Melina Merkuri (Grécia), Hedi Bouraoui
(Tunísia), Príncipe Dom Duarte Nuno João Pio de Orleans e Bragança (Portugal),
Eugene Ionesco (Romania), Jorge Guillön and Francisco Garcia Pavön (Espanha),
Juan Rulfo (México), Julio Cortäzar (Argentina), Fröddric Maire (França),
dentre outros importantes escritores e acadêmicos, nos 137 países de espectro
da associação.
Eu sou de estatura pequena para caminhar ao
lado de tantas grandezas, mas honrarei esse diploma como o maior tesouro que a
vida me presenteou na estação outonal dos meus 60 anos.
Que Deus nos ilumine e nos abençoe sempre.
Aceite minha eterna gratidão.
Respeitosamente,
Luísa Galvão Lessa Karlberg IWA
Luísa Galvão Lessa Karlberg IWA
terça-feira, 16 de setembro de 2014
O EMPREGO
"El empleo (O emprego) é um curta-metragem
argentino muito famoso, ganhador de diversos prêmios pelo mundo, feito em 2008
e com direção de Santiago Bou Grasso. A animação trata de maneira impactante
sobre trabalho. A ideia e a história foram de Patrício Plaza, roteirista e
produtor desse curta maravilhoso que, com menos de 7 minutos, consegue
“sacudir” muito bem a ideia/conceito comum de trabalho."
segunda-feira, 15 de setembro de 2014
O INFERNO SÃO OS OUTROS
A famosa frase de Jean-Paul Sartre (1905-1980) dita por
Garcin, personagem da peça Entre Quatro Paredes (1944).
Garcin
A estátua de bronze... (Ele a acaricia) Pois bem, este é o momento. A estátua de bronze
está aí, eu a contemplo e compreendo que estou no inferno. Eu garanto que tudo
estava previsto. Eles previram que eu ia ficar na frente desta lareira,
passando a mão nesta estátua, com todos estes olhares sobre mim. Todos estes
olhares que me devoram... (Ele se vira de
repente) E vocês, são apenas duas? Ah, eu pensava que vocês seriam muito
mais numerosas. (Ri.) Então, é isto o
inferno. Eu não poderia acreditar... Vocês se lembram: enxofre, fornalha, grelhas...
Ah! Que piada. Não precisa de nada disso: o inferno são os Outros.
SARTRE, Jean-Paul. Entre quatro paredes.
Tradução de Alcione Araújo e Pedro Hussak. Rio de Janeiro: Civilização
Brasileira, 2009. p.125
sábado, 13 de setembro de 2014
A MÃE DA MATA
Nilson Mourão
para Marina
Ó Poronga linda
Acende tua luz,
Ilumina a nossa Estrada,
clareia os varadouros
para que a Mãe-da-Mata,
a seringueira,
misteriosa e forte,
continue dando o leite da vida.
Ó lamparina linda,
acende tua luz,
resgata a nossa vida,
renova nossa alegria
de viver na floresta,
com os animais e os rios,
com o sol, a chuva e as estrelas.
Ó lamparina infinita
acende tua luz...
Cruzeiro do Sul – Ac, 23.08.1997
MOURÃO, Nilson. Cantos de Fé e Amor. Rio
Branco: Fundação Elias Mansour, 2004.
p.s. depois do nome de Marina, na dedicatória do poema ainda consta o adendo "senadora dos seringueiros".
sexta-feira, 12 de setembro de 2014
O REBANHO
Hermann Hesse (1877-1962)
— A comunidade — continuou dizendo — é uma
coisa muito bela. Mas o que vemos florescer agora não é a verdadeira
comunidade. Essa surgirá, nova, do conhecimento mútuo dos indivíduos e transformará
por algum tempo o mundo. O que hoje existe não é comunidade: é simplesmente o
rebanho. Os homens se unem porque têm medo uns dos outros e cada um se refugia
entre seus iguais: rebanho de patrões, rebanho de operários, rebanho de
intelectuais... E por que têm medo? Só se tem medo quando não se está de acordo
consigo mesmo. Têm medo porque jamais se atreveram a perseguir seus próprios
impulsos interiores. Uma comunidade formada por indivíduos atemorizados com o
desconhecido que levam dentro de si. Sentem que já periclitaram todas as leis
em que baseiam suas vidas, que vivem conforme mandamentos antiquados e que nem
sua religião nem sua moral são aquelas de que ora necessitamos. Durante cem anos
a Europa não fez mais do que estudar e construir fábricas! Sabem perfeitamente
quantos gramas de pólvora são necessários para se matar um homem; mas não sabem
como se ora a Deus, não sabem sequer como se pode passar uma hora divertida.
Observa qualquer uma dessas cervejarias estudantis. Ou qualquer dos lugares de
diversão que a gente rica frequenta! Que espetáculo mais desolador... De tudo
isso não pode redundar nada de bom, meu caro Sinclair. Esses homens que tão
temerosamente se congregam estão cheios de medo e de maldade, nenhum se fia no
outro. Mantêm-se fiéis a ideais que já não existem, e atacam, furiosos, os que
tentam erigir outros novos. Sinto o início de graves conflitos que não podem
tardar a surgir. Já não podem tardar, crê-me. Naturalmente, não irão “melhorar”
o mundo. Quer os operários assassinem seus patrões ou quer a Rússia e a
Alemanha disparem uma contra a outra, isso redundará apenas numa mudança de
proprietários. Mas tampouco serão completamente inúteis. Revelarão a falência
dos ideais de hoje e forçarão a derrocada de toda uma série de deuses da idade
da pedra. Este mundo, tal como é hoje, quer morrer, quer aniquilar-se e
aniquilar-se-á.
HESSE, Hermann. Demian. Tradução Ivo Barroso.
Rio de Janeiro: Record, 2000. p.157-158 (*Título nosso)
quarta-feira, 10 de setembro de 2014
DEFESA DE SÓCRATES
Platão (428-348 a.C.)
A morte de Sócrates (1787), de Jacques-Louis
David.
|
Alguém, talvez, pergunte: “Não te pejas, ó
Sócrates, de te haveres dedicado a uma ocupação que te põe agora em risco de
morrer?” Eu lhe daria esta resposta justa: “Estás enganado, homem, se pensas
que um varão de algum préstimo deve pesar as possibilidades de vida e morte em
vez de considerar apenas este aspecto de seus atos: se o que faz é justo ou
injusto, de homem de brio ou de covarde. No teu entender, não teriam méritos os
semideuses que pereceram em Tróia; entre eles o filho de Tétis, que desdenhava
tanto o perigo em confronto com o passar por vergonha. Querendo ele matar a
Heitor, sua mãe, uma deusa, lhe disse parece que mais ou menos estas palavras:
“Filho, se matares a Heitor para vingar a morte de teu amigo Pátroclo, tu
próprio morrerás; pois, dizia ela, o teu destino te espera logo depois de
Heitor.” Ele, apesar de ouvir a advertência, fez pouco caso do perigo da morte
e, porque temia muito mais viver com desonra, respondeu: “Morra eu assim que
castigue o culpado, mas não fique por aqui, alvo de risos junto das curvas
naus, como um fardo da terra.” Cuidas que ele se preocupou com o perigo da
morte?” A verdade, Atenienses, é esta: quando a gente toma uma posição, seja
por a considerar a melhor, seja porque tal foi a ordem do comandante, aí, na
minha opinião, deve permanecer diante dos perigos, sem pesar o risco de morte
ou qualquer outro, salvo o da desonra.
Grave falta, Atenienses, teria cometido eu,
que, em Potideia, em Anfípolis e Délio, permaneci, como qualquer outro, no
posto designado pelos chefes por vós eleitos para me comandar e ali enfrentei a
morte, se, quando um deus, como eu acreditava e admitia, me mandava levar vida
de filósofo, submetendo a provas a mim mesmo e aos outros, desertasse o meu
posto por temor da morte ou de outro mal qualquer. Seria grave e então deveras
com justiça me haveriam trazido ao tribunal pelo crime de não crer nos deuses,
pois teria desobedecido ao oráculo por temor da morte e supondo ser sábio sem
que o fosse.
Com efeito, senhores, temer a morte é o mesmo
que supor-se sábio quem não o é, porque é supor que sabe o que não sabe.
Ninguém sabe o que é a morte, nem se, porventura, será para o homem o maior dos
bens; todos a temem, como se soubessem ser ela o maior dos males. A ignorância
mais condenável não é essa de supor saber o que não sabe? É talvez nesse ponto,
senhores, que difiro do comum dos homens; se nalguma coisa me posso dizer mais
sábio que alguém, é nisto de, não sabendo o bastante sobre o Hades, não pensar
que o saiba. Sei, porém, que é mau e vergonhoso praticar o mal, desobedecer a
um melhor do que eu, seja deus, seja homem; por isso, na alternativa com males
que conheço como tais, jamais fugirei de medo do que não sei se será um bem.
Portanto, mesmo que agora me dispensásseis,
desatendendo ao parecer de Ânito, segundo o qual, antes do mais, ou eu não
devia ter vindo aqui, ou, já que vim, é impossível deixar de condenar-me à
morte, asseverando ele que, se eu lograr absolvição, logo todos os vossos
filhos, pondo em prática os ensinamentos de Sócrates, estarão inteiramente
corrompidos; mesmo que, apesar disso, me dissésseis: “Sócrates, por ora não
atenderemos a Ânito e te deixamos ir, mas com a condição de abandonares essa
investigação e a filosofia; se fores apanhado de novo nessa prática, morrerás”;
mesmo, repito, que me dispensásseis com essa condição, eu vos responderia: “Atenienses,
eu vos sou reconhecido e vos quero bem, mas obedecerei antes ao deus que a vós;
enquanto eu tiver alento e puder fazê-lo, jamais deixarei de filosofar, de vos
dirigir exortações, de ministrar ensinamentos em toda ocasião àquele de vós que
eu deparar, dizendo-lhe o que costumo: ‘Meu caro, tu, um ateniense, da cidade
mais importante e mais respeitada por sua cultura e poderio, não te pejas de
cuidares de adquirir o máximo de riquezas, fama e honrarias, e de não te
importares nem cogitares da razão, da verdade e de melhorar quanto mais a tua
alma?’ ” E se algum de vós redarguir que se importa, não me irei embora
deixando-o, mas o hei de interrogar, examinar e confundir e, se me parecer que
afirma ter adquirido a virtude e não a adquiriu, hei de repreendê-lo por estimar
menos o que vale mais e mais o que vale menos. É o que hei de fazer a quem eu
encontrar, moço ou velho, forasteiro ou cidadão, principalmente aos cidadãos,
porque me estais mais próximo no sangue. Tais são as ordens que o deus me deu,
ficai certos. E eu acredito que jamais aconteceu à cidade maior bem que minha
obediência ao deus.
Outra coisa não faço senão andar por aí
persuadindo-vos, moços e velhos, a cuidar tão aferradamente do corpo e das
riquezas, como melhorar o mais possível a alma, dizendo-vos que dos haveres não vem a virtude para os homens, mas da virtude vêm os haveres e todos os outros bens
particulares e públicos. Se com esses discursos corrompo a mocidade, seriam
nocivos esses preceitos; se alguém afirmar que digo outras coisas e não essas,
mente. Por tudo isso, Atenienses, diria eu, quer atendais a Ânito, quer não,
quer me dispenseis, quer não, não hei de fazer outra coisa, ainda que tenha de
morrer muitas vezes.
PLATÃO. Defesa de Sócrates. São Paulo: Abril Cultural, 1972 (Col. Os
Pensadores) p.20-21
segunda-feira, 8 de setembro de 2014
MARINA: DRAGÃO VERDE E AVÓ DO MUNDO
JOSÉ RIBAMAR BESSA FREIRE
Ilmo. Sr. Prof. Dr. Rogério de Cerqueira
Leite
Saudações
Inspirado no bolero de Waldick Soriano,
escrevo esta carta, mas não repare os senões, para dizer o que sinto sobre o
artigo de sua autoria Desvendando Marina, na Folha de S. Paulo, dia
31 de agosto, no qual declara: "Não me sinto confortável em ter como
presidente uma pessoa que acredita concretamente que o Universo foi criado em
sete dias há apenas 4.000 anos aproximadamente". Para lhe dar algum
conforto, mostro que não é bem assim e assinalo três imprecisões no seu
discurso.
A primeira está na contagem do tempo. Nota-se que de física V.S. entende muito, por isso ocupa merecidamente um lugar no Conselho Nacional de Ciência e Tecnologia. Mas de criacionismo, necas de pitibiribas. Quem leu os Anais do Antigo Testamento do anglicano James Ussher sabe muito bem que o mundo, criado num domingo à tarde, no dia 23 de outubro de 4.004 a.C, às 14h30, completa 6.018 anos entre um turno e outro das eleições. Tem, portanto, mais de 2.000 anos do que foi calculado por V.S.
A segunda imprecisão: sua crítica ao
criacionismo tem como referência uma versão única prestigiada pela escrita, que
parte do pressuposto de um Deus masculino como criador do universo. Isso é uma
construção judaico-cristã que não pode ser generalizada para todas as culturas,
especialmente para as da oralidade. Foi criada por machões incongruentes. Sem
útero, como pode Deus parir gente? Para os Tukano – não o PSDB, mas o povo do
Rio Negro (AM) – quem criou o universo
foi a Avó do Mundo, a Yepá-Bahuári-Mahsô. Quer saber como foi?
Filho da música
Foi assim. No princípio, o mundo não existia,
só havia escuridão e o espaço vazio e triste, o espaço frio e sem ideias, como
no horário eleitoral. Eis que surge a Ye´pá, dentro de uma nuvem branca, de
brilho intenso, dançando, embalada por cantos sagrados. A música, em forma de
redemoinho de vento, abraça, beija e acaricia o corpo da avó do mundo, penetra
sua carne, seus ossos e até seus pensamentos e a engravida, fazendo aumentar a
temperatura ambiente. Esse ato amoroso
intenso, realizado num clima extremamente quente, provoca uma enorme explosão
com um grande estrondo, gerando raios que formam um círculo rosado da cor de
jenipapo, todo iluminado. No meio da luz aparece sentada num banco uma mulher
grávida de música. É a Avó do Mundo que cria a Casa da Terra, parindo os
primeiros seres como narra Gabriel Gentil em Mito Tukano: Histórias proibidas
do Começo do Mundo. Ou seja, somos todos filhos da música que fecundou a Avó do
Mundo, incluindo aqui – incrível! – os físicos, os matemáticos e todos os
representantes do núcleo duro da ciência, mesmo os que ignoram o fato.
A terceira imprecisão é a sua visão
fundamentalista sobre ciência. Não me sinto confortável com o inventário que
V.S. faz de "todo o patrimônio intelectual que a humanidade acumulou
durante séculos", limitando-o exclusivamente ao campo da ciência. Deste
patrimônio, onde só cabe a "montanha de dados cientificamente
incontornáveis", V.S elimina a literatura, a música, a poesia, o mito e a
religião, além de outras instituições igualmente respeitáveis como a fofoca e a
jogada-de-conversa-fora.
Este discurso excludente de uma arrogância
incomensurável assusta, porque vê a ciência – mais grave ainda uma forma de
fazer ciência – como o único procedimento válido para a obtenção de
conhecimentos, que seriam eternos, definitivos, o que evidencia incapacidade de
ler outras linguagens simbólicas.
V.S. incursiona no campo médico para
diagnosticar "uma desordem do desenvolvimento neural" de Marina,
criada pela "perversão intelectual do fundamentalismo cristão". E
conclui de forma contundente, esperando convencer os leitores da Folha de S.
Paulo, de cujo conselho editorial V.S.
faz parte: "Essa é a razão por que espero que Marina não ganhe esta
eleição".
O mito
Eu ouvi bem? V.S. falou de "razão"?
Será que o pensamento racional, o método e as técnicas científicas suplantaram
mesmo o mito e a religião? – pergunta Lévi-Strauss, que vê, sem ironias, a
grandeza do Ocidente no pensamento científico, mas chama a atenção para a
função do mito na contemporaneidade e mostra como a própria ciência produz
mitos para explicar aos não-cientistas verdades inacessíveis ao leigo –
big-bang, universo em expansão, etc. Depois de estudar mitos indígenas, ele
concluiu em História de Lince que "de modo mais inesperado, é o diálogo
com a ciência que torna o pensamento mítico novamente atual". O mistério do big-bang está dentro do mito
tukano. Precisa apenas saber lê-lo.
Quem sabe ler e concordou com esse olhar foi
um matemático e físico da Universidade da Califórnia, Brian Swimme, autor de
vários livros sobre o tema, entre os quais The Universe Story e The Universe is
a Green Dragon. Este seu colega escreveu que hoje os cientistas começam a
perceber as limitações do texto científico para dar conta do universo e que a
linguagem que consegue melhor expressar sua grandiosidade é a linguagem
poética, metafórica, que afirma que o universo é um dragão verde.
V.S. conhece muito bem a história social da
ciência que nos mostra como o conhecimento científico é resultado de uma
acumulação de erros. Essa é, aliás, a grandeza da ciência. Por isso, nela
confiamos, mas sempre relativizando. O que é verdade hoje, amanhã pode não ser.
Lembro que dois grandes cientistas do séc. XIX, o botânico Martius e o zoólogo
Spix, que viajaram em 1819-1820 pelo rio Amazonas, consideraram
"fantasioso" o mito Tikuna de origem da vida, que fala de um único
ser saído da água e do qual descendem os demais. A ciência da época – foi antes
de Darwin e sua teoria da evolução – achava que o homem tinha aparecido no planeta
acabado, já pronto.
Hoje, o biólogos ensinam nas universidades
que toda a vida existente na terra descende de um único ancestral, de um
organismo unicelular que deu origem a todas as espécies vivas, visão mais
próxima do mito Tikuna do que da ciência de Martius e Spix. Além do caráter
provisório da ciência, o fato mostra que em nossos países "se vê cada vez
mais claro que a compreensão do mundo é muito mais ampla que a compreensão
ocidental do mundo" – como quer Boaventura de Souza Santos, que considera
a negação de outros modos de produzir conhecimento como
"epistemicídio".
Rogério epistemicida
Considerada incapaz por V.S. para presidir o
Brasil, além do mais Marina está sendo acusada de fundamentalista, homofóbica,
cúmplice do capital financeiro e até mesmo protetora de torturadores. O título
da matéria na FSP afirma: “Em novo recuo, marina agora defende anistia a
torturadores da ditadura". Quando li seu conteúdo, constatei que não era
bem aquilo. Os jornalistas pediram, no final da entrevista, que ela dissesse apenas
"sim" ou "não" para perguntas no formato "pinga
fogo". Revisão da Lei da Anistia? – indagaram. Ela respondeu
"não", como Dilma e Aécio. Só isso. Não lhe foi permitido discutir a
questão.
Desconfio de tudo aquilo que a mídia anuncia
que Marina disse, fez ou fará. Só aceito aquilo que eu puder ouvir de sua voz
de taquara rachada e se puder identificar o contexto que lhe dá significado.
Não adianta Marina esclarecer que separa fé e religião, na hora de editar eles
dão outra interpretação. O Jornal da Globo insistiu várias vezes para saber se
ela consultava a Bíblia antes de tomar suas decisões. Além da falta de
respeito, William Waack perdeu uma oportunidade de nos apresentar e criticar o
programa de governo da candidata. Preferiu folclorizar.
Prezado prof. Rogério, não tenho medo de
votar em Marina pelas razões que V.S. alega. Se fosse assim não teria votado no
Lula todas as vezes em que ele se candidatou. Sinceramente, estou vagando e
andando se Marina acredita que Deus criou o mundo, se Dilma reza para Nossa
Senhora Aparecida e vai ao Templo de Salomão, se o pastor Everaldo, escondido,
recebe mensagens da pomba gira, se o FHC é ateu ou se na hora de fazer sua
primeira comunhão, Rogério Leite acreditava que Deus estava presente na hóstia
consagrada, até porque a gente muda como mostram suas propostas em relação ao
pré-sal e ao pró-álcool.
O que me interessa é saber o que os
candidatos pretendem fazer com o Brasil e, mais especificamente, com as terras
e as culturas indígenas – um tópico que não foi ainda abordado por nenhum deles
e que é extremamente importante porque as sociedades indígenas constituem um
indicador extremamente sensível da natureza da sociedade que com elas interage.
No meu entender, é na política indigenista que cada candidato vai mostrar sua
cara. Este locutor que vos fala, que é um analógico confesso por limitações
genéticas e epistemológicas, espera de lideranças intelectuais, especialmente
nos núcleos duros da ciência, um comportamento mais rizomático em relação aos
saberes outros. Não seja um epistemicida ingrato, Rogério, reconheça que o
big-bang é produto de um ato amoroso e agradeça ao povo Tukano o fato de ser
filho da música.
Atenciosamente,
Taquiprati, filho da musica e da avó do
mundo.
MUDANÇA
Matias Aires (1705-1763)
Não somos firmes no amor, porque em nada podemos ser constantes:
continuamente nos vai mudando o tempo; uma hora demais é mais em nós uma mudança.
A cada passo que damos no decurso da vida, imos nascendo de novo, porque a cada
passo imos deixando o que fomos, e começamos a ser outros: cada dia nascemos,
porque cada dia mudamos, e quanto mais nascemos desta sorte, tanto mais nos
fica perto o fim que nos espera. A inconstância, que é um ato da alma ou da
vontade, não se faz sem movimento; a natureza não se conserva e dura, senão
porque se muda e move. O mundo teve o seu princípio no primeiro impulso que lhe
deu o supremo Artífice; a mesma luz, que é uma bela imagem da Onipotência, toda
se compõe de uma matéria trêmula, inconstante e vária. Tudo vive enfim do
movimento; a falta de mudança é o mesmo que falta de vida e de existência, assim
a firmeza é como um atributo essencial da morte.
AIRES, Matias. Reflexões sobre a vaidade dos homens. Rio de Janeiro:
José Olympio, 1953. p.115
sexta-feira, 5 de setembro de 2014
AMAZÔNIA: HERANÇAS DE UMA UTOPIA
Amazônia - Heranças de uma Utopia (2006) aborda as
diversas tentativas de colonização da Amazônia brasileira durante o século XX.
Adotando um recorte histórico de longa duração – 100 anos – o documentário
expõe fatos, iniciativas e ações que resultaram em impactos ou mudanças
ecológicas, demográficas, políticas e econômicas.
O documentário é dirigido por Alexandre Valenti. O projeto é uma
co-produção da MPC & Associados com a Rio de Cinema Produções e a Mano a
Mano (França). O jornal francês Le Monde
publicou uma série de doze páginas sobre o documentário por ocasião de sua
exibição no canal France 5.
quarta-feira, 3 de setembro de 2014
I ENCONTRO INTERESTADUAL DE HISTÓRIA ACRE E RONDÔNIA
FRONTEIRAS AMAZÔNICAS: vivências,
representações e conhecimentos
15 a 19 de setembro de 2014
RIO BRANCO - AC
Realização
Associação Nacional de História, seção Acre –
ANPUH-AC
Associação Nacional de História, seção
Rondônia – ANPUH-RO
Coordenação dos cursos de Bacharelado em
História – UFAC e UNIR
Coordenação dos cursos de Licenciatura em
História – UFAC e UNIR
Apoio
Mestrado em Letras: Linguagem e Identidade –
PPGLI/UFAC
Associação Brasileira de História Oral –
ABHO, Regional Norte
Centro de Filosofia e Ciências Humanas –
CFCH/UFAC
Departamento de História - UNIR
Pró-reitoria de Extensão e Cultura –UFAC e
UNIR
Pró-reitoria de Pesquisa e Pós-graduação –
UFAC e UNIR
Promoção
Universidade Federal do Acre – UFAC
Universidade Federal de Rondônia – UNIR
Financiamento
Universidade Federal do Acre – UFAC
Capes/PAEP
terça-feira, 2 de setembro de 2014
O CARRINHO DE MÃO OU AS GRANDES INVENÇÕES
Jacques Prévert (1900-1977)
O pavão abre o leque
O pavão abre o leque
o acaso
faz o resto
Deus
toma o assento
e o
homem empurra.
LA BROUETTE OU LES GRANDES
INVENTIONS
Le paon fait la rouel
le hasard fait le reste
Dieu s’assoit dedans
et l’homme le pousse.
PRÉVERT,
Jacques. Poemas. Introdução, seleção e tradução de Silviano Santiago. Rio de
Janeiro: Nova Fronteira, 1985.p.100-101
A RUA DAS RIMAS
Guilherme de Almeida (1890-1969)
A rua que eu imagino, desde menino, para o
meu destino pequenino
é uma rua de poeta, reta, quieta, discreta,
direita, estreita, bem feita, perfeita,
com pregões matinais de jornais, aventais nos
portais, animais e varais nos quintais;
e acácias paralelas, todas elas belas,
singelas, amarelas,
douradas, descabeladas, debruçadas como
namoradas para as calçadas;
e um passo, de espaço a espaço, no mormaço de
aço baço e lasso;
e algum piano provinciano, quotidiano,
desumano,
mas brando e brando, soltando, de vez em
quando,
na luz rara de opala de uma sala uma escala
clara que embala;
e, no ar de uma tarde que arde, o alarde das
crianças do arrabalde;
e de noite, no ócio capadócio,
junto aos lampiões espiões, os bordões dos
violões;
e a serenata ao luar de prata (Mulata ingrata
que mata...);
e depois o silêncio, o denso, o intenso, o
imenso silêncio...
A rua que eu imagino, desde menino, para o
meu destino pequenino
é uma rua qualquer onde desfolha um malmequer
uma mulher que bem me quer;
é uma rua, como todas as ruas, com suas duas
calças nuas,
correndo paralelamente, como a sorte
diferente de toda gente, para a frente,
para o infinito; mas uma rua que tem escrito
um nome bonito, bendito, que sempre repito
e que rima com mocidade, liberdade,
tranquilidade: RUA DA FELICIDADE...
ALMEIDA, Guilherme de. Encantamento, Acaso,
Você: seguidos dos haicais completos. Campinas: Unicamp, 2002. p.196-197
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