sexta-feira, 29 de setembro de 2017

ODE DE HORÁCIO

Horácio (65 a.C.-8 a.C.) 

IV,9

Não creias hajam de morrer os versos
que canto, ao som da lira acompanhados,
por arte nunca dantes conhecida,
eu, que nasci às margens do rio Áufido,
cujas águas reboantes longe se ouvem.
Se o primeiro lugar a Homero cabe,
as pindáricas musas e as de Ceos,
as minazes de Alceu e as de Estesícoro,
graves, não se mantêm desconhecidas;
e, se Anacreonte algo cantou, brincando,
nem por isso o apagou do tempo a fuga;
o amor de Safo inda em seus versos vibra
e o calor que imprimiu à sua lira.
Nem só Helena da Lacedemônia,
admirando-lhe a coma bem cuidada,
o doirado da veste, o real cortejo
e o magno fausto, se apaixona, um dia,
por amante tão rico como o seu;
nem Teucro foi quem se serviu, primeiro,
do arco cidônio, no lançar das flechas;
nem se viu Tróia, uma só vez, sitiada;
nem só Idomeneu, tão pouco Estênelo,
combates desferiu que fossem dignos
de serem celebrados pelas musas;
nem foi o fero Heitor, nem foi Deífobo,
o primeiro a sofrer terríveis golpes,
quando a pudica esposa e os caros filhos,
heroico, defendia. Muitos fortes
varões a Agamenão antecederam;
mas foram, todos eles, sepultados,
por longa noite, ignotos e sem lágrimas,
só porque lhes faltou o sacro vate.
Pouco ou nada difere o heroi oculto
do vulgo vil que, de esquecido, morre.
Não guardarei silêncio, a teu respeito:
não serás dos meus versos esquecido,
nem hei de permitir que o tempo ingrato
impunemente os teus trabalhos, Lólio,
para sempre sepulte. Tens uma alma
prudente e sábia, sempre a mesma, quer
nas horas felizes, quer nas más;
da fraude vingadora e da cobiça,
do dinheiro ao fascínio indiferente,
não consular, no consulado apenas,
mas tantas vezes, quantas, reto juiz,
o honesto ao útil antepõe e enjeita
a culposa propina e, vitoriosa,
dos adversos assédios se liberta.
Não chamarias, com razão, feliz
o que muito possui; somente àquele
esse nome lhe cabe, que, sábio, usa
os dons dos altos deuses concedidos,
que pobreza padece aborrecida,
que mais teme a desonra do que a morte,
que a entregar não se esquiva a própria vida,
em defesa da pátria e dos amigos.


HORÁCIO. Odes e epodos. Tradução de Bento Prado de Almeida Ferraz. São Paulo: Martins Fontes, 2003. p.161-165

quarta-feira, 27 de setembro de 2017

POEMAS DE AIMÉ CÉSAIRE

Tradução e seleção: André Caramuru Aubert
(do Jornal RASCUNHO)

Nascido na Martinica, em família negra de classe média-baixa, Aimé Césaire (1913-2008) foi, acima de tudo, um gênio. Poeta, ensaísta, dramaturgo e político, tudo ao mesmo tempo. Defensor das causas anticolonialistas e dos direitos dos negros, além de ser um dos criadores do conceito de negritude, Césaire foi grande, e inovador, em tudo o que fez.

Apesar da infância pobre, acabou ganhando uma bolsa de estudos, excelente aluno que era, para a prestigiosa École Normale Supérieure, em Paris, onde, enquanto recebia uma formação rigorosa em cultura clássica, começou a escrever seus poemas. Logo se ligou, por afinidade estética e política, ao movimento surrealista, e teve em André Breton primeiro um guru e depois um admirador. Com a guerra e a invasão nazista, Césaire voltou para a Martinica. A partir de então, sua vida seria um eterno ir e vir, e num sentido não apenas espacial: ela também oscilaria entre a política e a escrita, para ele naturalmente interligadas.

Será que se poderia, então, classificar a poesia de Césaire como política? Sim, mas no melhor sentido da palavra, porque ela reflete, com intenso lirismo, todos os problemas que afligiam o autor, e estes problemas, em boa parte, eram políticos. Ao mesmo tempo, Césaire era culto ao extremo, rigoroso com a forma e um mestre do ritmo (ele adorava o recurso de repetição de palavras). Não se espere, nesta obra, clareza e simplicidade: não se trata de poesia fácil, nem de ler e muito menos de traduzir. Os ecos do surrealismo dos anos de formação estarão sempre presentes, em construções sintáticas complexas e muitas vezes obscuras, além de um sem-fim de citações eruditas. Da poesia de Césaire, pode-se talvez generalizar o que Lilian Pestre de Almeida escreveu a respeito do Cahier d’un Retour au Pays Natal: ela é uma “viagem temporal e espacial, simbólica e mítica”.

Da obra lírica de Aimé Césaire, foram publicados no Brasil o Cahier…, um longo poema com trechos em prosa traduzido por Lilian P. de Almeida (Diário de um retorno ao país natal, Edusp, 2012), e uma pequena, mas excelente coletânea dedicada a poemas mais curtos, chamada Poemas, com tradução de Nelson Ubaldo e Péricles Prade (Letras Contemporâneas, 2006), além de aparições esporádicas em revistas literárias e sites de poesia. Mas, diante da vasta produção de Césaire, isso é muito pouco. Para a presente seleção, priorizei naturalmente os poemas curtos, sem me preocupar com ordem cronológica, e evitei os já publicados por Ubaldo e Prade (exceto por um caso, Blues de la plue, que é dos que mais gosto, e para o qual arrisquei nova tradução).

LA ROUE

La roue est la plus belle découverte de l’homme et la seule
il y a la soleil qui tourne
il y a la terre qui tourne
il y a ton visage qui tourne sur l’essieu do ton cou quand te pleures
mais vous minutes n’enrolerez-voux pas sur la bobine à vivre
le sang lapé
l’art de souffrir aiguisé comme des moignons d’arbre par les couteaux de l’hiver
la biche saoule de ne pas boire
qui me pose sur la margelle inattendue ton
visage de goélette démâtée
ton visage
comme un village endormi au fond d’un lac
et qui renait au jour de l’hérbe et de l’année
germe

A RODA

A roda é a mais bela descoberta humana e a única
há o sol que gira
há a terra que gira
há o seu rosto que gira sobre o eixo de seu pescoço quando você chora
mas seus minutos não se enrolarão em seu carretel para viver
o sangue polido
a arte de sofrer afiada nos troncos das árvores pelas facas do inverno
a corça embriagada por não beber
que na beirada do poço inesperadamente me apresenta o seu
rosto de escuna sem os mastros
seu rosto
como uma vila dormente no fundo de um lago
e que renasce à luz do dia, dos pastos e do ano
germina



PRÉSENCE

tout um mai de canéficiers
sur la poitrine de pur hoquet
d’une île adultère de site
chair qui soi prise de soi-même vendange
O lente entre les dacites
pincée d’oiseaux qu’attise um vent
où passent fondues les chutes du temps
la pur foison d’um rare miracle
dans l’orage toujours crédule
d’une saison évasive

PRESENÇA

todo um maio de canafístulas
sobre o peito de puro soluço
de uma ilha adúltera de lugar
carne que tendo possuído a si mesma colhe suas vindimas
Ó lentidão entre os dacitos
uma pitada de pássaros espalhada pelo vento
na qual as cataratas do tempo passam misturadas
a pura profusão de um raro milagre
na tempestade sempre crédula
de uma não evasiva estação



AN NEUF

Les hommes ont taillé dans leurs tourments une fleur
qui’ls ont juchée sur les hauts plateux de leur face
la faim leur fait un dais
une image si dissout dans leus dernière larme
ils ont bu jusqu’à l’horreur féroce
les monstres rhythmés par les écumes
En ce temps-là
il y eut une
inoubliable
métamorphose
le chevaux ruaient un peu de rêve sur les sabots
de gros nuages d’incendie s’arrondirent em champignon
son toutes les places publiques
ce fut um peste merveielleuse
sur le trottoir les moindres réverbères tournaient leur tête de phare
quant à l’avenir anophèle vapeur brûlante is sifflait dans les jardins
En ce temps-là
le mot ondée
et le mot sol meuble
le mot aube
et le mot copeaux
conspirèrent pour la première fois

ANO NOVO

Os homens entalharam em seus tormentos uma flor
que eles empoleiraram no mais alto planalto de suas faces
a fome fez para eles um dossel
uma imagem se dissolve em sua derradeira lágrima
eles beberam até o horror feroz
os monstros ritmados pelas espumas
Naquele tempo
havia uma
inesquecível
metamorfose
os cavalos cultivavam alguns sonhos em seus cascos
pesadas nuvens ardentes se espalhavam como um cogumelo
sobre todos os locais públicos
aquilo foi uma peste maravilhosa
sobre as calçadas os menores lampiões giravam suas cabeças de farol
quanto ao futuro mosquito vapor tórrido assobiava pelos jardins
Naquele tempo
a palavra chuvarada
e a palavra chão móvel
a palavra alvorecer
e a palavra limalhas
conspiraram pela primeira vez



QUELCONQUE

Quelconque le gâteau de la nuit décoré de peitites bougies faites de lucioles
quelconque une rangée de palmiers à éventer mês pensées les mieux tues
quelconque le plat du ciel servi par des mages em drap de piment rouge
quelconque la jeune main verte du poinsettia se crispant hors de ses gants à massacre
Espoir Espoir
lorsque la vague déroule son paquet de lianes de toute odeur
et toutes les lance au cou de chevaux bigles
lorsque l’anse développe as crinière de sel godronnée au plus rare amidon d’algues e de poissons
Espoir plane Grand Duc
danse Espoire et piétine et crie parmi les attentions charmantes des remoras et le beuglement neuf
qu’ément le caïman à l’imminence d’un tremblement de terre

BANAL

Banal o bolo da noite decorado com pequenas velas feitas de vaga-lumes
banal uma fileira de palmeiras para soprar meus mais secretos pensamentos
banal o prato do céu servido por magos vestidos de pimenta vermelha
banal a jovem verde mão da poinsétia endurecendo-se para fora de suas luvas de massacre
Esperança Esperança
quando a onda desenrola seu cacho de cipós de todos os odores
e lança-os todos em volta dos pescoços dos cavalos vesgos
quando a angra exibe sua crina de sal sulcada com o mais precioso amido das algas e dos peixes
Esperança paira no ar a coruja Bufo-real
dança Esperança e bate os pés e grita em meio a atenção encantadora das rêmoras e o mugido fresco
que emite o crocodilo na iminência de um terremoto



LA PAROLE AUX OURICOUS

Où quand comment d’où pourquoi oui pourquoi pourquoi pourquoi se peut-il que les langues les plus scélerates n’aient inventé que si peu des crocs à pendre ou suspendre le destin
Arrêtez cet homme innocent. Tous de leurre. Il porte mon sang sur les épaules. Il porte mon sang dans les souliers. Il colporte mon sang dans son nez. Mort aux contrebandiers. Les frontières sont fremées.
Ni su ni insu
tous
dieu merci mon couer est plus sec que l’harmattan, toute obscurité m’est proie
toute obscurité m’est due de toute bombe joie.

Vous oricous à vos postes de tournoiment et de bec audessus de la forêt et jusqu’à la caverne dont la porte est um triangle
dont le gardien est um chien
dont la vie est un calice
dont la vierge est un araignée
dont le sillage rare est un lac à se mettre debout sur les chemins de déchant des nixes orageuses

A PALAVRA AOS ABUTRES

Onde quando como de onde por que sim por que por que por que é que as línguas mais celeradas não inventaram mais do que alguns ganchos para pendurar ou suspender o destino
Prendam este homem inocente. Todos de enganação. Ele leva meu sangue em seus ombros. Ele leva meu sangue em seus sapatos. Ele anuncia meu sangue em seu nariz. Morte aos contrabandistas. As fronteiras estão fechadas.
Nem os que se conhecem e nem os que se desconhecem
todos
obrigado deus meu coração está mais seco que o Harmatã[1], toda treva é minha
presa
toda treva me é devida e toda bomba minha alegria.

Vós abutres em seus postos de rodopios e de bicar acima da floresta e tão longe quanto é a caverna cuja porta é um triângulo
onde o guardião é um cão
onde a vida é um cálice
onde a virgem é uma aranha
onde o rastro precioso é um lago que se destaca nos caminhos descendentes das tempestuosas nixes[2]



MAGIQUE

avec une léche de ciel sur un quignon de terre
vous bêtes qui sifflez sur le visage de cette morte
vous libres fougères parmi les roches assassines
à l’extreme de l’île parmi les conques trop vastes pour le destin
lorsque midi colle se mauvais timbres sur les plis tempétieux de la louve
hors cadre de science nulle
et la bouche aux parois du nid suffète des îles englouties comme um sou

avec une léche de ciel sur un quignon de terre
prophète des îles oublièes comme um sou
sans sommeil sans veille sans doigts sans palancre
quand la tornade passe tongeur du pain des cases

vous bêtes qui sifflez sur la visage de cette morte
la belle once de la luxure et la coquille operculée
mol glissement des grains de l’été que nous fûmes
belles chairs à transpercer du trident des aras
lorsque les étoiles chancelières de cinq branches
trèfles au ciel comme des gouttes de lait chu
réajustent um dieu noir mal né de son tonnerre

MÁGICA

com uma borra de céu sobre um quinhão de terra
vocês bestas assobiando sobre a face desta morta
vocês samambaias livres entre as rochas assassinas
na extremidade de uma ilha entre conchas por demais vastas para o destino delas
quando o meio-dia cola seus selos errados nas tempestuosas dobras da loba
para além dos domínios da ciência inútil
e a soca contra as paredes do ninho que o magistrado das ilhas engoliu como um níquel

com uma borra de céu sobre um quinhão de terra
profeta das ilhas esquecidas como um níquel
sem dormir sem acordar sem dedos sem redes
quando o tornado passa roedor do pão das cabanas

vocês bestas assobiando sobre a face desta morta
a bela onça da luxúria e a concha operculada
frouxa corda dos grãos do verão que nós fumamos
belas carnes a serem pregadas pelo tridente das araras
quando as estrelas-chanceler de cinco pontas
trevos no céu como gotas de leite derramado
restauram um deus negro mal-nascido de seu trovão



ALLURE

O montagnes ô dolomies coeur d’oiseau sous men mains d’enfant
ô icebergs ô revenants vieux dieux scellés en pleine gloire
et quand même autour du feu à trois pierres couronné d’um cercle
vibrant de tipules
um étang pour les noyés se renouvelle
province des morts vous heurtez em vain la rotation des routes
où le spectacle passe du palier des flammes vertes à la tranche de maléfices
allure combats avec moi je porte la tiare solaire
gong décuple la prison dont les combats d’animaux expérimentent
les voix des hommes conservés dans la pétrification des forêts de mille ans

ma chère penchons sur les filons géologiques

MARCHA

Ó montanhas ó dolomitos coração de pássaro em minhas mãos de criança
ó icebergs ó fantasmas velhos deuses selados em plena glória
e mesmo quando  em volta do fogo há três pedras coroadas por um círculo
vibrante de típulas
uma lagoa para que os afogados se renovem
província dos mortos vocês batem em vão contra a rotação das estradas
onde o espetáculo passa do nível das chamas verdes para a borda dos malefícios
a marcha combate comigo eu porto a tiara solar
o gongo multiplica a prisão onde animais combatem experimentando
as vozes dos homens conservadas na petrificação das florestas de mil anos

minha querida nos curvemos sobre as nervuras geológicas



ENTRE AUTRES MASSACRES

De toutes leurs forces le soleil et la lune s’entrechoquent
les étoiles tombent comme des témoins trop mûrs
et comme une portée de souris grises

ne crains rien apprête tes grosses eaux
qui si bien emportent la berge des miroirs

ils ont mis de la boue sur mês yeux
et vois je vois terriblement je vois
de toutes les montagnes de toutes les îles
il ne reste plus rien que les quelques mauvais chicots
de l’impénitente salive de la mer

ENTRE OUTROS MASSACRES

Com todas as suas forças o sol e a lua colidem
as estrelas caem como testemunhas apodrecendo
e como uma ninhada de ratos cinzentos

medo algum prepara suas águas altas
que tão facilmente removem o banco de espelhos

eles jogaram lama por sobre meus olhos
e vejo eu vejo terrivelmente eu vejo
de todas as montanhas de todas as ilhas
nada deixado a salvo os poucos dentes podres
da impenitente saliva do mar



MILLIBARS DE L’ORAGE

N’apaisons pas de jour et sortons la face nue
face aux pays inconnus qui coupent aux oiseaux leur sifflet
le guet-apens s’ouvre le long d’un bruit de confins de planètes
ne fais pas attention aux chenilles qui tissent souple
mais seulement aux millibars qui si plantent dans le mille d’un orage
à déliver l’espace où se hérissent le coeur des choses et la venue de l’homme

Rêve n’apaisons pas
parmi les clous de chevaux fous
um bruit de larmes qui tâtonne vers l’aile immense des paupières

MILIBARES DA TEMPESTADE

Não aplaquemos o dia e saiamos com as faces expostas
encarando os países desconhecidos que extraem das asas dos pássaros seus
assobios
a emboscada se abre ao longo do ruído dos confins dos planetas
sem prestar atenção à maleável tessitura das lagartas
mas somente aos milibares que plantam no olho de uma tempestade
a liberar o espaço onde se eriçam o coração das coisas e o advento do homem

Sonho não aplaca
entre os pregos de cavalos enlouquecidos
um som de lágrimas que tateia em busca da imensa asa das pálpebras



ODE A LA GUINÉE

Et par le soleil installant sous ma peau une usine de force et d’aigles
et par le vent sur ma force de dent de sel compliquant ses passes les mieux sues
et par le noir le long des mes muscles en douces insolences de sèves montant
et par la femme couchée comme un montagne descellée et sucée par les lianes
et par la femme au cadastre mal connu où le jour et la nuit jouent à la mourre des eaux de source et des maétaux rares
et par le feu de la femme où je cherche le chemin des fougéres et du Fouta-Djallon
et par la femme fermée sur la nostalgie s’ouvrant

JE TE SALUE

Guinée dont les pluies fracassent du haut grumeleux des volcans um sacrifice de vaches pour mille faims et soifs d’enfants dénaturés
Guinée de ton cri de ta main de ta patience
il  nous reste toujours des terres arbitraires
et quand tué vers Ophir ils m’auront jamais muet
de mes dents et de ma peau que l’on fasse
um fétiche féroce gardien du mauvais oeil
comme m’ebranle me frappe et de dévore ton solstice
em chaucun de tes pas Guinée
muette em moi-même d’une profondeur astrale de méduses

ODE À GUINÉ

E sob o sol instalando sob minha pele uma usina de força e de águias
e pelo vento sobre minha força de dente de sal elaborando seus passes melhor
sabidos
e pelo negro ao longo de meus músculos em doces insolências de seivas
saborosas
e pela mulher deitada como uma montanha desarreada e absorvida pelos cipós
e pela mulher com o cadastro mal conhecido onde dia e noite jogam a morra das águas das nascentes e dos metais preciosos
e pelo fogo da mulher onde eu procuro o caminho das samambaias e de Fouta-Djallon
e pela mulher fechada que pela nostalgia se abre

EU TE SAÚDO

Guiné cujas chuvas estraçalhadas do alto coagulado dos vulcões fazem um sacrifício de vacas para mil fomes e sedes de crianças desnaturadas
Guiné de teu berro de tua mão de tua paciência
ainda nos resta hoje terras arbitrárias
e quando morto em Ofir eles não me farão mudo jamais
de meus dentes e de minha pele deixe que façam
um fetiche feroz guardião contra o mau-olhado
como me chacoalha me bate me devora o teu solstício
em cada um de teus passos Guiné
emudecida em mim com uma profundeza astral de medusas



SOLEIL ET EAU

Mon eau n’écoute pas
mon eau chante comme um secret
Mon eau ne chante pas
mon eau exulte comme um secret
mon eau travaille
et à travers tout roseau exulte
jusqu’au lait du rire
Mon eau est un petit enfant
mon eau est un sourd
mon eau est un géant qui te tient sur la poitrine un lion
ô vin
vaste immense
par le basilic de ton regard complice et somptueux

SOL E ÁGUA

Minha água não ouve
minha água canta como um segredo
Minha água não canta
minha água exulta como um segredo
minha água trabalha
e através do junco exulta
até o leite do riso
Minha água é uma pequena criança
minha água é um surdo
minha água é um gigante que segura um leão sobre seu peito
ó vinho
vasto imenso
pelo basílico de seu olhar cúmplice e suntuoso



A HURLER

Salut oiseaux qui fendez et dispersez la cercle des hérons
et la génuflexion de leur tête de résignation
dans une gaine de mousse blanche

Salut oiseaux qui ouvrez à coups de bec le ventre vrai du marais et la poitrine de chef du couchant

Salut cri rauque
torche de résine
où se brouillent les pistes
des poux de pluie et les souris blanches

Fou à hurler je vous salue des mês hurlements plus blancs que la mort

Mon temps viendra que je salue
grand large
simple
où chaque mot chaque geste éclairera
sur ton visage de chève blonde
broutant dans la cuve affolante de ma main

Et là là
bonne sangsue
là origine des temps
là fin des temps

et la majesté droite de l’oeil originel

A UIVAR

Saudações aos pássaros que se fendem e dispersam o círculo das garças
e a genuflexão de suas cabeças de resignação
em uma cinta de espuma branca

Saudações aos pássaros que abrem a bicadas o verdadeiro ventre do brejo e o peito do chefe do pôr do sol.

Saudações grito rouco
tocha de resina
onde são encobertas as marcas
dos pingos de chuva e dos ratos brancos

Louco a uivar eu vos saúdo com meus uivos mais brancos do que a morte

Meu tempo virá e eu o saúdo
grande vasto
simples
onde cada palavra cada gesto esclarecerá
sobre tua face de cabra loira
pastoreando na cuba inquieta de minha mão

E então então
boa sanguessuga
então a origem dos tempos
então o fim dos tempos

e a majestade direita do olho original



BLUES DE LA PLUIE

Aguacero
beau musicien
au pied d’um arbre dévetu
parmi les harmonies perdues
près des nos mémoires défaites
parmi nos mains de défaite
et des peuples de force étrange
nous laissons pender nos yeaux
et natale
dénouant la longe d’une douleur
nous pleurions.

BLUES DA CHUVA

Aguacero
belo músico
aos pés de uma árvore desfolhada
em meio às harmonias perdidas
junto de nossas memórias derrotadas
em meio às nossas mãos  de derrota
e dos povos de estranha força
deixamos abaixar nossos olhos
e nascer
desatando as cordas de uma dor
nós choramos.


[1] Vento seco do Saara.
[2] Na mitologia Nórdica, espíritos que, imprevisíveis, ora fazem o bem, ora, o mal.