domingo, 18 de dezembro de 2022

TRÊS POEMAS DE DORI CARVALHO


Grito calado

 

nos braços da manhã

um corpo de mendigo

 

no berço da tarde

um grito calado

 

na boca da noite

um balaço no silêncio

 

no frio da madrugada

sou inocente metralhado

 

 

O cheiro do povo

 

o povo fede sim

para que os senhores

possam cheirar bem

 

o cheiro do povo

é o cheiro que vem dos senhores

de suas minas e fábricas

caminhões e máquinas

 

para que os senhores

possam cheirar bem

 

 

As tetas do povo

 

fiquem aí os senhores

mamando nas tetas

                                    do povo

enquanto o povo

mama nas tetas das pedras

 

cuidado muito cuidado senhores

qualquer dia

                    as pedras viram armas

qualquer dia

                    a fome vira raiva

qualquer dia

                    a casa cai

 

CARVALHO, Dori. Desencontro das águas. 2.ª ed. Manaus: Editora Valer, 2018. p. 51, 81 E 90

DORI CARVALHO é ator, diretor, professor de teatro, cronista e poeta. Natural de São Joaquim da Barra-SP, vive em Manaus desde 1978. É autor ainda de Meu ovo esquerdo (2012), Paixão & Fúria (2004) e Pequenas conquistas perdidas (Valer, 2021).

quinta-feira, 8 de dezembro de 2022

RECENSEAMENTO DO RIO MURU

Constantino Tastevin

“Ego sum pastor bonus, dizia Nosso Senhor Jesus Cristo, cognosco oves meas et cognoscunt me meae”.

 

“Eu sou o bom pastor e por isso conheço as minhas ovelhas e elas me conhecem”.

Dessas palavras depreende-se a necessidade para um vigário de conhecer os membros da sua freguesia, tarefa muito difícil e talvez impossível neste recanto da terra onde tudo é anormal.

Procuro pelo menos aproximar-me do ideal, embora de longe, recolhendo certos dados mais significativos sobre a população dos rios a quem levo o conforto de nossa religião.

Costumo sempre encontrar a máxima boa vontade da parte desta excelente população brasileira e é o que verifiquei mais uma vez durante a minha desobriga no rio Muru.

Vai aqui junto com os meus agradecimentos o resultado desse sucinto recenseamento:

Homens – 915, mulheres 345; menores de 16 anos – meninos 370, meninas 349; fazendo um total de 1979, com exceção do seringal “Victoria” e dos do rio Iboiaçú, mais ou menos 300 almas.

As famílias são: 295, das quais 134 pela igreja; 54 só civilmente; 37 amasiadas; 32 indígenas; 29 adúlteras; 5 adúlteras aos olhos da lei; 3 adúlteras e excomungadas; 1 bígamo e adúltero.

Os adúlteros excomungados são aqueles que sendo casados pela religião, atentam o casamento civil com outra pessoa.

Ficam 620 celibatários para 50 celibatárias, das quais algumas passaram de sessenta anos.

Daí resulta o desequilíbrio descomunal de mais de 12 celibatários para 1 mulher celibatária. Desequilíbrio numérico cuja repercussão se faz dolorosamente sentir na moralidade, como se vê no quadro das famílias, ao progresso, na higiene moral e física das nossas pobres ovelhas; e que vai tristemente repercutir, ainda sobre o futuro desta região.

É urgentíssimo que as pessoas de responsabilidade procurem fixar sobre as suas terras e multiplicar as famílias, único elemento estável e progressivo na sociedade.

Devem para isso oferecer-lhes algumas vantagens, facilitar-lhes o acesso à propriedade ou pelo menos seriamente garantir o resultado do seu trabalho agrícola, para que elas se afeiçoem a terra, e aí se desenvolvam.

Os sacrifícios aparentes do primeiro momento serão largamente recompensados quando crescer a nova geração mais numerosa, mais amante ao seu torrão natal, mais adaptada ao meio e, por isso, mais produtora de riquezas, e base de lucros maiores. Caveant consules: o perigo é grande. Basta notar que de 1920, para cá, em 3 anos, a população do Muru tem diminuído da metade.

Padre Constantino

 

Jornal A Reforma, Tarauacá-AC, 16 de março de 1924, Ano VII, n. 295, p. 2.

 

Nota I: O Pe. Constantino (Constant) Tastevin (1880-1962) esteve em Tarauacá, pela primeira vez, em fevereiro de 1923.

Nota II: “O padre Constant Tastevin, missionário da Prefeitura Apostólica de Tefé (AM) visitou Cruzeiro do Sul (AC) pela primeira vez em setembro de 1911, tendo retornados mais duas vezes, em 1913 e em 1914. No início de 1924, sobe o rio Muru e volta em fevereiro a Seabra (hoje Tarauacá); de 5 de abril até fins de maio, sobe parte do Tarauacá e Jordão. Em junho e julho, sobe o Tarauacá até suas cabeceiras. Visita pelo menos três aldeias kaxinawá que foram "amansadas" e fornecem serviços para os seringais. Até a década de 1980, o que se conhecia linguística, geográfica e etnograficamente do Juruá e do Jutaí reduzia-se essencialmente aos seus trabalhos.”

Nota III: A grafia foi atualizada conforme o acordo ortográfico vigente (2009).