Para atender a amigos, ex-alunos, hoje professores, estou
colocando no meu blog apenas a apresentação do meu último livro, que está sendo
publicado pela Edufba com o título abaixo, ao qual acrescentei as Matinais,
crônicas escritas pelo poeta em 1899, enquanto aguardava a publicação da sua
Epopéia Épica, a guerra de Canudos. O leitor também encontrará neste livro as
famosas Cartas do Amazonas, escritas em 1903, no exílio na Amazônia.
Consuelo
Novais Sampaio
- Eu não sou
doutor, eu sou poeta.
Irritado, à beira
da morte, foi assim que Francisco Mangabeira se definiu, corrigindo o amigo que
o chamara de doutor. Saíra do Acre cambaleante, febre alta, tomado pela
malária. Numa precária embarcação, desceu o caudaloso Amazonas, na esperança de
encontrar socorro em Manaus, para a terrível moléstia que o consumia, em plena
juventude. Na realidade, era doutor. Havia se diplomado em Medicina (18 dez.
1900) depois de estudar durante seis longos anos na velha Faculdade de Medicina
da Bahia, sem contar os quatro anos do “preparatório” no Instituto Oficial de
Ensino Secundário, precursor do Ginásio, depois Colégio da Bahia. Mas na
verdade, era poeta, de refinada estirpe. Ainda cursava o “preparatório” quando,
aos 14 anos, começou a escrever poemas líricos. Publicou-os em 1898, com o
título de Hostiário. Nesse mesmo ano
terminou de escrever o célebre poema Tragédia
Épica, a guerra de Canudos. Chegou ao público em 1900, dois anos antes de Os Sertões, de Euclides da Cunha. Os
seus versos, descrevendo a sangrenta guerra, causaram forte impacto na
conservadora sociedade local. A reação a seguir foi drástica: deportação.
Para
cumprir esta punição, não oficialmente declarada, Francisco Mangabeira deixou
Salvador, com destino a São Luiz do Maranhão. Na época, alegou-se que, já
diplomado, precisava trabalhar e, para isso teria sido contratado como médico
pela Companhia de Navegação Maranhense.
Essa foi a justificativa dada aos amigos que por ele perguntaram. Deste
modo, provia-se a sua saída da Bahia com uma aura de dignidade, do ponto de
vista da conservadora sociedade baiana.
Até
hoje, esta é a única versão que explica a inesperada e não desejada saída de
Francisco Mangabeira de Salvador. Contrariando-a, afirmo ser ela totalmente
inconsistente. É o que espero deixar claro no decorrer deste estudo. Defendo a
tese de que, com esse argumento, procurou-se acobertar o fato de que o poeta de
Canudos estava sendo deportado da Bahia, contra a sua vontade. Por dissimulada
coação, deixou a terra natal, com destino, não divulgado para a Amazônia.
Francisco
Mangabeira foi mais um proscrito, em decorrência da defesa que terminou por assumir
em relação ao massacre perpetrado contra os moradores de Canudos. Os outros
dois cronistas de Canudos, Euclides da Cunha, aclamado nacionalmente, e o
médico-jornalista baiano, Alvim Martins Horcades -- o primeiro a publicar em
livro as atrocidades cometidas contra o arraial sertanejo -- também foram
deportados, ou exilados, bem distante do poder constituído. O autor de Os Sertões foi enviado para a Amazônia,
então terra de ninguém, em fins de 1904. Com relação a Mangabeira,
justificou-se esse desterro, apelando-se para o seu espírito aventureiro e
patriótico. Martin Horcades, graças à influência do pai, refugiou-se em Minas
Gerais, cumprindo exílio não voluntário. Carlos Mangabeira que, junto ao irmão Francisco
prestou serviço médico, socorrendo doentes no Banco de Sangue de Canudos,
também foi desterrado. Depois de diplomado em Farmácia, passou a trabalhar na
modesta farmácia do pai, localizada no Largo do Teatro, atual Praça Castro
Alves. Mas logo foi convocado pelo Exército e, a seguir, transferido para a
cidade de Bagé, no Rio Grande do Sul. Aí se estabeleceu e constituiu família.
Tanto Carlos como Horcades, passado o fantasma da restauração monárquica,
enveredaram pela política como deputado federal. Esses três homens ilustres
foram citados apenas para configurar-se o fato de que Canudos, ainda que
destruída, era um fantasma que atemorizava aqueles que comandavam uma República
ainda mal resolvida. Todos três, como Mangabeira, foram exilados. Contudo,
deles tratarei em estudo posterior. Aqui desejo concentrar-me apenas no destino
do poeta Francisco Mangabeira, irmão do ex-governador da Bahia, Otavio
Mangabeira, e patrono da cadeira nº 40 da Academia de Letras da Bahia.
O
desterro sofrido por Francisco Mangabeira foi involuntário, isto é, ele foi
obrigado, coagido a partir para o exílio, a fim de não expor a si próprio e a
sua família a outras situações que se manifestavam mais constrangedoras e
deprimentes, como por exemplo, a prisão ou deportação anunciada. Já foi dito
que o desterro para regiões inóspitas e mesmo inabitáveis, como a Amazônia, o
estado de Mato Grosso e do Pará, assim como a ilha de Fernando Noronha,
tornou-se a modalidade de punição mais adotada pelas classes dirigentes, para o
que considerassem crime político, ou qualquer ação julgada nociva contra a
República. Nas palavras de Euclides da Cunha -- quando se referiu à
transferência do sogro major Frederico Sólon de Sampaio Ribeiro, republicano
convicto, para o Mato Grosso por ordem de Floriano Peixoto – “Partiu para um
exílio disfarçado e hipócrita”. Então, mal sabia que ele, como todos aqueles
que registrassem a carnificina de Canudos, perpetrada pelo Exército brasileiro,
seriam vitima de exílio disfarçado e hipócrita. Sólon Ribeiro, transferido para
a Bahia (dez. 1895) no governo Rodrigues Lima, já como general, para comandar o
3º Distrito Militar, em decorrência de atrito com o governador Luis Viana
(1896-1900), em torno da Guerra de Canudos, foi transferido (leia-se deportado)
para Belém, a capital do estado do Pará.
Para
que não restem dúvidas em relação à tese que defendo, é necessário
contextualizá-la, tendo-se em conta as circunstâncias políticas que envolveram
o Brasil, na transição da Monarquia para a República. Vale, portanto, um breve
esboço da grande instabilidade que envolveu o novo regime político, desde a sua
proclamação e, especialmente ao longo das duas primeiras décadas.
A
situação de instabilidade econômica, política e social, gerada pela crise de
longa duração, que atingiu o sistema capitalista, nas últimas décadas do século
XIX e primeiras do XX, varreu toda a Primeira República, especialmente o
período de transição da Monarquia para o novo sistema de organização política.
Dentre os muitos movimentos de contestação então surgidos e que resultaram em
exílios e manifestações severas contra os opositores, farei breve referência
apenas ao de Canudos, com o objetivo de contextualizar o exílio de Francisco
Mangabeira.
Antonio
Conselheiro foi um pacífico líder sertanejo, a perambular pelos sertões
nordestinos, deixando como marca nos lugares por onde passava uma igreja ou um
cemitério. Alimentava, com as suas prédicas seres sedentos de crença, com
precárias condições de vida. Uma simples manifestação contestatória da sua
parte, em torno de uma compra de madeiras, foi politicamente manipulada,
cresceu no boca-a-boca, e a imprensa divulgou como mais uma tentativa de
restauração monárquica. O combate ao povoado de Canudos, estabelecido às
margens do rio Vasa-Barris, foi cruento e prolongado. Devido à inesperada
resistência dos sertanejos, estendeu-se de 1893 a 1897.
No
Rio de Janeiro, terminada a guerra, o ataque contra a vida do presidente
Prudente de Morais, perpetrado
por um desconhecido, terminou por atingir o ministro da Guerra, Carlos Machado
Bittencourt, morto a punhaladas ao tentar defendê-lo. Este crime abalou toda a
sociedade e mudou a configuração político-social do Brasil.
Com o apoio do Congresso, o estado de sítio
foi decretado e se estendeu a todo o país, por tempo indefinido, permitindo que
o presidente iniciasse rapidamente uma cruenta reação conservadora. As
passeatas dos “jacobinos”, que antes enchiam as ruas da Capital Federal, foram
substituídas por largas manifestações lideradas pelos “reacionários”; os
jornais foram silenciados; alguns políticos da oposição, como o todo poderoso
senador Pinheiro Machado, foram presos a bordo de um navio de guerra, pelo que
se anulou a imunidade parlamentar. Políticos de destaque, como Barbosa Lima,
ex-governador de Pernambuco, e o jornalista Alcindo Guanabara foram deportados,
com outros presos, para a ilha de Fernando Noronha; o influente Francisco
Glicério fugiu para São Paulo, onde se escondeu; o vice-presidente Manuel
Vitorino Pereira, também foi denunciado à Justiça, ainda que tenha sido
impronunciado.
Vale
lembrar que, sucedendo a Prudente de Morais, o presidente Campos Sales (1898-1902)
-- quando governador do estado de São Paulo (1894-98) ao tempo em que se
desenrolava a guerra de Canudos -- aconselhou-o a proceder ao extermínio “sem
vestígios” do arraial sertanejo, para o que enviou-lhe tropas estaduais, a fim
de reforçar as federais, nos combates contra o arraial sertanejo. Ele, que fora
ministro da Justiça no governo provisório do Marechal Deodoro da Fonseca
(1889-1891), desenvolveu mecanismos para assegurar a supremacia da oligarquia
cafeeira, e fechou com mãos de ferro o ciclo de domínio absoluto do
Executivo. Descrito por seus biógrafos
como “frio e autoritário”, assegurou-se o domínio das diversas unidades da
Federação, através do controle do Legislativo, ao institucionalizar a “política
dos governadores”, que regeu o sistema político na Primeira Republica. Sua
diretriz prevaleceu além da Revolução de 1930, cujo principal objetivo era
dar-lhe fim.
Antes,
a Convenção do Partido Republicano Federal (PRF), que oficialmente apontara a
sua candidatura à presidência, havia decidido, seguindo a sua orientação, que a
palavra Federal seria retirada do nome do partido, no que deixava claro o
absoluto controle da Federação pelo Executivo. A vitória sobre Canudos havia
fortalecido o centralismo presidencial, levando o novo P.R. a declarar que
estava constituído pelo que (havia) de mais acentuadamente conservador na
opinião republicana do país e que o partido continuaria a representar os
princípios estáticos da sociedade brasileira (...) e a sustentar, com decisão,
os interesses primordiais da Ordem, para a segura garantia da Liberdade,
repelindo qualquer ideia de revisão constitucional. Passado algum tempo, tanto
a facção oficial, como a oposicionista, do P.R. foram dissolvidas.
Após
a reunião do PRF no Rio de Janeiro (10 out.1897) estabelecendo as novas
diretrizes ultraconservadoras do governo, o chefe do Partido Republicano
Federal na Bahia, futuro governador Severino Vieira, declarou que retiraria o
Federal do nome do partido e, com entusiasmo, deu o mais vivo apoio às
candidaturas Campos Sales e Rosa e Silva (vice-presidente), enfatizando as
mesmas aspirações de ordem e imobilismo social.
Foi
nesta conjuntura política, onde não havia possibilidade de livre manifestação,
que o poeta Francisco Mangabeira foi deportado para o Amazonas, conforme o meu
entendimento, ou saiu de Salvador para trabalhar como médico junto à Companhia
Maranhense de Navegação, como quer a versão até aqui vigente. Ele recebeu o
diploma de médico no dia 18 de dezembro de 1900, depois de já haver publicado Tragédia Épica (5 out.1900). Observe-se
que quinze dias após a reunião do novo partido criado por Severino Vieira, o
Partido Republicano da Bahia (PRB), em 1º de março de 1901, o recém-formado
doutor Mangabeira partiu de Salvador para o Amazonas (16 março, 1901), na
calada da noite, como o irmão Otavio registrou, 50 anos depois, na Academia de
Letras da Bahia.
Chegando
a São Luis, Francisco Mangabeira escreveu a parentes e amigos. Contrariando a
versão oficial, não foi trabalhar como médico em lugar algum. Em carta
registrou que após se instalar numa pousada frente à estátua do poeta Gonçalves
Dias, foi (supostamente) visitar os jornais locais, visando obter qualquer
trabalho com o qual pudesse sustentar-se. Também, suponho, poderia estar
aguardando o vapor que o levaria ao Amazonas, pois nada conseguiu, tendo
prosseguido viagem até Manaus, onde se estabeleceu. Ainda de São Luis dirigiu
carta ao poeta e amigo Jacinto Costa, um dos redatores da Revista Nova Cruzada,
na qual foi publicada. Nesta carta (7 abr. 1901), ele extravasa a sua
frustração e sofrimento por ter saído da Bahia.
Reproduzida
na íntegra em anexo, aqui citarei algumas frases que reforçam a tese que
defendo do exílio compulsório do poeta. Nesta carta ao amigo ele se reporta à
Bahia, onde deixei tudo quanto amei na vida: meus parentes e meus amigos (...).
Depois de dizer que vive um suplício escreve: Eu já não penso em minhas
aspirações. Só penso em minha terra (...) onde se aninharam todas as minhas
ilusões de sonhador e todas as minhas venturas, hoje mortas (...) Eu jamais me
acostumarei a viver longe da Bahia. A minha saudade é incurável.
Está
claro que esta carta não poderia ter sido escrita por alguém que houvesse
deixado a sua terra natal para trabalhar em outras plagas, a fim de prover o
seu sustento. Ela constitui forte argumento de sustentação da minha tese que
aponta para o seu exílio.
Não
se sabe com precisão quanto tempo Francisco Mangabeira teria passado em São
Luis do Maranhão. Sabe-se apenas que foi pouco tempo. Reafirmo que São Luis foi
uma simples escala para o seu destino final, Manaus, capital do Amazonas -- não
mencionado na fala oficial. Naquela época, era sabido ser um local de exílio.
Alguns anos antes, destacados homens públicos e luminares das letras haviam
sido exilados para o Amazonas, a mando do então presidente Floriano Peixoto,
entre eles, o futuro ministro e governador da Bahia J. J. Seabra, o jornalista
e escritor José do Patrocínio, o poeta Otavio Bilac dentre outros brasileiros.
Na presidência Artur Bernardes, o degredo para o Amazonas e o Pará foi comum,
dada à arbitrariedade e despotismo prevalecentes no seu governo. Ambos os
estados, cobertos por densa vegetação e precárias ligações com o resto do país,
eram ideais para receber os condenados políticos. Neles situados, estariam
muito longe do centro do poder, então no Rio de Janeiro
Com
referência a Francisco Mangabeira, divulgou-se, decorridos alguns meses, que o
poeta havia recebido “importante comissão” do governador do Amazonas para
percorrer grandes regiões da bacia amazônica, ainda mal identificadas, como as
do Juruá, do Javari, do Purus etc. Esta é uma segunda versão que acredito haver
sido elaborada por parentes e amigos em Salvador, para justificar a ida do
poeta para o que então era referido como “inferno verde”. Há indícios de que,
efetivamente, o poeta percorreu essas inóspitas regiões. Contudo, em carta
adiante transcrita (p. 29) dirigida ao irmão Otavio, lê-se que ele não recebeu
a esperada comissão do governo. No entanto, foi no estado do Amazonas, e
posteriormente no Acre, que Francisco Mangabeira fixaria residência. A selva
amazônica, praticamente inabitável, seria a sua prisão natural, aberta, mas ao
mesmo tempo, sobre ele se fechava, impedindo-lhe a saída. Esta só aconteceria,
de modo definitivo, com a sua morte.
Francisco
Mangabeira demorou-se na Amazônia cerca de um ano, sete meses e sete dias,
antes de retornar a Salvador, para passar o Natal de 1902 com a família. Chegou
à casa paterna exatamente no dia 24 de dezembro. Gozou do aconchego da família
durante dois meses e cinco dias. No dia 3 de março de 1903, pela segunda vez
deixou o porto de Salvador, de volta a Manaus, mas com o destino já traçado.
Deveria acompanhar as tropas nacionais na luta que se travava para a conquista
do território contestado do Acre. Observe-se que não mais se fala do suposto
emprego que teria obtido junto à Companhia de Navegação Maranhense. Voltaria
direto para a Amazônia. Da região soberbamente agressiva do Acre escreveria as
Cartas do Amazonas, adiante referidas e que este estudo tira do esquecimento,
ao republicá-las, em anexo.
Mangabeira
foi encontrado no Acre, por acaso, pelo doutor Montenegro, em situação de
grande penúria, macilento, no abandono, como resumiu o amigo. A luta pela
disputa do Acre já havia terminado com a vitória do Brasil. Sem forças para se
levantar, foi colocado numa precária embarcação, com destino a Manaus. O seu
estado de saúde se agravava em relação direta à sua ânsia de voltar para
Salvador. Seu corpo foi transportado para o primeiro paquete surgido no porto
de Manaus. Durante a viagem, o seu estado de saúde se deteriorou, vindo ele a
falecer no dia 27 de janeiro de 1904, em pleno mar, entre o estado do Pará e o
Maranhão.
Até
o último suspiro, Mangabeira reafirmou a sua condição de poeta, o que a elite
baiana, imobilizada pelo conservadorismo, se recusava a aceitar. Pronunciando,
num último estertor a frase que abre este estudo, Eu não sou doutor, eu sou poeta, ele dizia o que sentia, o que
verdadeiramente era. A despeito de suas breves incursões como médico, na guerra
de Canudos e na tomada do Acre, ele era muito mais poeta do que doutor. Um
homem feito de emoções contidas que, acumuladas, explodiam em versos líricos,
os primeiros publicados com o título de Hostiário;
depois em versos trágicos como os da Epopeia Sertaneja, além dos muitos que
escreveu na Amazônia, e que juntamos a este estudo com o título de Últimas
Poesias. Infelizmente a maioria dos poemas não publicados em livros foi
destruída ou se perdeu nas águas do grande rio. Sua prosa poética o leitor
encontrará nas Matinais, crônicas que registraram, em tom leve e irônico, os
males e a hipocrisia da sociedade baiana; e também nas Cartas do Amazonas, nas
quais deixou impressa a sua visão da imensa floresta brasileira, cuja luxúria
ante ele se descortinava à medida que subia o grande rio.
Feitas
estas considerações introdutórias, convido o leitor a examinar, nas páginas
seguintes, o pouco que nos restou da experiência de vida de um grande
brasileiro e da construção literária de um dos maiores poetas do Brasil que, no
entanto, permanece ignorado na sua grandeza.
Este texto foi
publicado originalmente no blog da autora: