FORMAS DE ABENÇOAR
Fique aqui mesmo, morra antes
de mim, mas não vá para o mundo.
Repito: não vá para o mundo,
que o mundo tem gente, meu filho.
Por mais calado que você
seja, será crucificado.
Por mais sozinho que você
Seja, será crucificado.
Há uma mentira por aí
chamada infância, você tem?
Mesmo sem a ter, vai pagar
essa viagem que não fez.
Grande, muito grande é a força
desta noite que vem de longe.
Somos treva, a vida é apenas
puro lampejo do carvão.
No início, todos o perdoam,
esperando que você cresça,
esperando que você cresça
para nunca mais perdoá-lo. p. 133
INFLUÊNCIA DAS VOZES
Nunca fiz um poema limpo
como o avental de minha mãe:
sempre os outros e o pó dos Outros
puseram em mim sua presença.
Como na infância, há sempre um vulto
emergido de algum silêncio.
Para ajudar-me a escrever,
Vem segurar na minha mão.
Mas rasgo tudo, rasgo o que amo
e vejo tudo realizado
nas outras mãos, enquanto fico
desconfiado de minha força.
Às vezes mostro a meus amigos
estas flores, peço-lhes água.
Eles sorriem, são meus amigos,
mas também estão no deserto.
Já não preciso ser autêntico:
sobre uma só realidade
eis-me na terra como os outros,
sou os outros, e morro só. p. 144
Plantamos para longe
o açúcar mais branco,
a banana mais cheia,
o mais puro café.
Aprendemos a plantar
cedo, para muito longe.
Os planos estão satisfeitos
mas os homens choram
em suas choupanas de verdade.
Fizemos justiça ao metal
Que mereceu um visto para longe;
à planta mais eugênica,
demos-lhe uma embalagem de luxo
e um passaporte para a França.
Só os homens ficaram
com os filhos enfermos
e a terra longa
e alheia
para, sem fuga e sem amor,
continuar. p. 154
PREVIDÊNCIA SOCIAL
(SEM COMENTÁRIOS)
Os humilhados têm nomes simples,
fáceis de decorar
e de esquecer.
Habitam o vestíbulo
de tudo.
Antes mesmo que os zeladores
Espanem as mesas,
limpem os cinzeiros
e abram as janelas,
eles já chegaram.
Antes mesmo que o sol
entre na sala principal
uma fila silenciosa
escurece o vestíbulo. p. 169
ALGUMA PRESSA NA CALÇADA
Às vezes, nos sentimos
acima desta agonia concreta
e cantamos poderosamente
sobre o majestoso granito.
Algo pode ser feito
desta massa comum
que tudo assimila e reduz
à sua própria matéria?
Alguma mulher infinita
(só duas ou três não são infinitas)
abrirá sobre os balcões
sua carne melodiosa
de tanto ser beijada?
As pessoas se descobrem
muito tarde:
só se veem
e se falam
(mesmo)
quando já passaram. p. 200
LIÇÕES DE FORÇA
Como não somos camponeses,
aos invés de lenha
trazemos, às costas,
um feixe
de horizontes queimados;
ao chegarmos sujos,
chutamos, no escuro,
carros e bonecos de plásticos:
o comandante ferido
chuta cadáveres no convés
e olha o céu,
pedindo o resto da tempestade
(a tempestade desse barco
é o seu próprio comandante). p. 239
INFORMAÇÕES PARA CADASTRO
De maior fracasso
meu fracasso me salva,
quando me enxota
para longe do palco
e da obrigação
de ser belo e limpo
feito faca lavada;
quando me deixa
apagado em meu canto,
apagado e vivo
feito uma mágoa perdoada. p. 241-242
O HOMEM QUE ASSOVIAVA BRAHMS
Aquele cara
assoviava todo dia,
às seis horas da manhã,
um trecho
de sinfonia de Brahms:
isso era coisa
realmente pedante,
se levarmos em conta
vizinhos cheios
de promissórias vencidas,
meninos gritando
nos ouvidos encerados
e outros honrosos
ferimentos da terra;
ele? Nem ligava,
e danava-se a assoviar
a velhíssima
sinfonia de Brahms. p. 253-254
PAISAGEM ESTRATIFICADA
O baralhar barulhento
da misturadora de concreto
é dura música
para os que comem
numa hora espremida
debaixo das traves,
enquanto no bar defronte
certos homens falam
de antigas trepadas
à beira-mar
e bebem com fastio
vários salários mínimos
sem notar. p. 272
CINCO DIAS DE UM ZUMBI
Atravessa a semana
feito um zumbi diurno
arrastando-se sem sangue
até o sábado salvador;
quando abre seu rum
e escreve umas cartas
sem, “prezado senhor”;
compra tomates
e livros novos
que o possam ajudar
na aparência erudita,
própria de um zumbi
de nível universitário
que, às vezes, até
em si mesmo acredita. p. 273
RESISTÊNCIAS
Teu corpo no banho:
tuas mãos passeando,
cheias de espumas
sobre a pele dourada;
teu corpo altivo
feito uma chuva
solene, a se distender,
tão lavado e vivo,
tão forte que retarda
seu próprio entardecer. p. 314
LEITURAS
Porque um
era a surpresa do outro,
todas as manhãs
amanhecíamos juntos
porque amanhecíamos
com outro;
livres líamos
todas as manhãs
o livro novo
que éramos
um para o outro;
porque amávamo-nos,
como desconhecidos,
amávamo-nos. p. 317
MELO, Alberto da Cunha. Poesia completa. Rio de Janeiro: Record, 2017.
Visite o site do poeta: http://www.albertocmelo.com.br