quarta-feira, 30 de abril de 2014

É PRECISO RESTRINGIR A EXPLORAÇÃO COMERCIAL DE ALGUMAS ESPÉCIES MADEIREIRAS NO ACRE

Evandro Ferreira


Em meados de 2008 o então deputado estadual Zé Carlos (PTN) apresentou um projeto na Assembleia Legislativa para proibir o corte em escala comercial de espécies madeireiras nativas conhecidas por produzirem frutos importantes e indispensáveis para a alimentação da fauna silvestre das florestas acreanas. O projeto foi proposto depois que o ex-parlamentar retornou de uma longa viagem que fez nos confins de alguns rios e outras áreas florestais remotas do interior do Estado e foi cobrado de forma reiterada pelos habitantes locais para tomar providências no sentido de barrar a exploração madeireira indiscriminada em curso nas áreas que visitou.

Embora legalizada e executada observando as regras previstas em ‘planos de manejo sustentável’, a exploração madeireira não poupava espécies como a caxinguba, cajuzinho, copaíba, andiroba e gameleira, todas sabiamente conhecidas pelos habitantes da zona rural como fonte de alimentação para a fauna e usadas por eles como árvores de ‘espera’ durante as caçadas de subsistência que esses habitantes tradicionalmente realizam para obter a proteína animal indispensável para a alimentação de suas famílias.

O desaparecimento dessas árvores nas regiões em que ainda existe muita abundância de animais silvestres – geralmente lugares remotos e de difícil acesso – faz com que estes animais passem a buscar alimentos em outras áreas, muitas delas próximas de núcleos urbanos, onde se tornam presas fáceis para pessoas que não necessitam praticar a caça de subsistência. Nessas condições, a caça se torna uma atividade de lazer, esporte e, algumas vezes, comercial.

A eliminação das árvores de ‘espera’ deixa como única opção de caça para os habitantes das regiões mais remotas do interior do Acre os ‘barreiros’, locais com solo úmido no interior da mata, com esparsa cobertura vegetal, e visitados por muitos animais que consomem o solo para suprir suas necessidades minerais. Infelizmente nem todos os animais silvestres precisam visitar barreiros e isso diminui a opção de caça para os habitantes da zona rural.

Na época, por sugestão de seringueiros e ribeirinhos, foram citadas dezoito espécies que estavam sendo retiradas e que deveriam ter a exploração barrada em razão da importância de seus frutos para a fauna silvestre e, indiretamente, para os habitantes locais: gameleira, andiroba, castanharana, mirindiba, piquí, manitê, copaíba, caxinguba, gamelinha, toarí, envira-cajú, guariúba, cajuzinho, tatajuba, murici e ingá-ferro. A versão do Projeto de Lei que tramitou e foi aprovado na Assembleia Legislativa foi além e incluiu 24 espécies.

Naquela época e nos dias de hoje, proibir a exploração dessas espécies tem importância fundamental para a preservação dos recursos naturais e do meio ambiente. Afinal, para ser realmente sustentável a exploração madeireira deve considerar, além da sustentabilidade da exploração do recurso alvo, as pessoas, os animais e outros elementos do meio onde é realizada. De outra forma, ao contribuir para ‘afugentar’ os animais responsáveis pela polinização das flores e a dispersão dos frutos de algumas das espécies madeireiras de maior valor, os madeireiros, além de contribuir para a extinção local dessas espécies, estarão agindo em clara oposição ao preceito básico do manejo moderno: a sustentabilidade.

Embora a intenção original do parlamentar fosse tão somente preservar as espécies usadas pela fauna local para, em suas palavras, ‘garantir que a caça não fugisse da mata e deixasse os seringueiros com fome’, na verdade o projeto teria um efeito bem mais amplo do que se imagina. Ele se constituiria na primeira ação concreta que combateria no Acre e na Amazônia brasileira o conhecido efeito ‘florestas vazias’ ou ‘florestas silenciosas’, que resulta da exploração seletiva em florestas tropicais. Nesta situação, a floresta, após a exploração comercial das principais espécies madeireiras, fica aparentemente intacta e vista de cima, tudo ainda permanece um ‘tapete verde’. Mas a realidade é que a maior parte dos animais e pássaros que se alimentava das espécies retiradas durante a exploração termina por migrar para outras regiões. Daí o termo ‘floresta vazia ou silenciosa’.

Restringir a exploração madeireira no Acre, mesmo a realizada com base em planos de manejo, é algo extremamente difícil tendo em vista os poderosos interesses econômicos envolvidos. Explico. A proibição da exploração de 24 espécies madeireiras no Acre tem o potencial de jogar o setor florestal do Estado em uma grave crise porque o número de espécies exploradas comercialmente na atualidade não deve chegar a 50. A proibição atingiria, portanto, quase 50% das espécies.

Mesmo assim a Assembleia Legislativa aprovou o projeto do ex-deputado Zé Carlos e, pasmem, na época não causou ‘comoção’ entre os envolvidos no setor florestal do Estado. A explicação para o desinteresse era e é relativamente simples. Até hoje o ‘grosso’ da exploração comercial madeireira no Acre está centrada em cerca de 20-20 espécies, com destaque para o cedro, cerejeira, samaúma, cumarú-ferro, cumarú-cetim, amarelão, alguns angelins, ipê, sucupira, mulateiro e o bálsamo. Como se vê, até hoje a maioria esmagadora das espécies de alto valor comercial exploradas no Estado não integra a lista daquelas de importância para a fauna e para os habitantes de regiões remotas que dependem da caça de subsistência.

Entretanto, quando o estoque dessas espécies comerciais se esgotar dentro de alguns anos, os madeireiros locais se voltarão para a exploração intensiva de outras espécies, e, com certeza, a copaíba, andiroba, jutaí, mirindiba, jatobá, manitê, toarí, castanharana, cajuzinho, guariúba e o pequí estarão incluídas entre as prioritárias. Isso acontece porque a exploração de madeira na Amazônia ocorre em etapas. Inicialmente se retiram apenas as espécies mais valiosas até que o estoque natural das mesmas diminui a ponto de tornar sua exploração antieconômica. No Acre estamos vivendo esta etapa. Na segunda etapa a exploração passa a focar na extração de espécies que foram deixadas de lado durante a primeira fase.

Em 2008 o governador Binho Marques (PT) vetou o projeto que protegia as espécies importantes para a sobrevivência da fauna silvestre acreana e, indiretamente, das populações tradicionais que vivem na floresta e dependem da caça de subsistência. É chegada a hora de fazer uma nova tentativa. Não podemos ser egoístas e ter a visão curta e o lucro imediato como norteadores de nossas atitudes. O futuro pertence aos nossos filhos e netos e, com certeza, queremos o melhor para eles.


*Evandro Ferreira é engenheiro agrônomo e pesquisador do Inpa e do Parque Zoobotânico da Ufac.
**Artigo publicado originalmente na coluna de Evandro Ferreira no Jornal A Gazeta do Acre.
***Acesse Ambiente Acreano, página do autor.

O BRASIL QUE DÁ CERTO


A PROPÓSITO:

Outro dia me perguntaram:
– Isaac, existe o demônio?
– É claro!, respondi.
E acrescentei:
– E, no Brasil, ele faz política.
E se chama bancada ruralista.

terça-feira, 29 de abril de 2014

SORTE

Paul Géraldy (1885-1983)


Podíamos jamais nos conhecer talvez!
Meu amor, imagine, pois,
tudo isso que a Sorte nos fez
para estarmos aqui, para sermos nós dois!

“Nós fomos feitos um para o outro” – diz você.
Mas pense no que foi preciso se interpor
de coincidências, para que
pudesse haver apenas isto: o nosso amor!

Que antes de unir nosso destino vagabundo,
vivemos longe um do outro, e sós, e separados,
e que é tão longo o tempo, e que é tão grande o mundo,
e a gente era capaz de não ter-se encontrado.

Você nunca pensou, meu romance bonito,
e que este amor correu de risco e indecisões
quando, ao encontro um do outro, em torno do infinito,
gravitavam à toa os nossos corações?

Você não sabe então que era incerta essa estrada
que conduziu nossos ideais,
e que um capricho, um quase nada
podia não nos ter juntado nunca mais?

Nunca lhe confessei esta coisa esquisita:
quando avistei você pela primeira vez,
a princípio nem vi que você era bonita...
Não reparei quase em você.

Sua amiga me atraiu bem mais, com seu sorriso.
Foi só muito depois que cruzamos o olhar...
Nós podíamos não ter lido nada disso:
Você, não compreender, e eu, nem sequer ousar.

Que seria de nós se, aquela noite, alguém
viesse buscar você antes? Ou
se, entre luzes, você não corasse também
quando eu quis ajudar a pôr o seu “manteau”?...

Pois foram essas razões, lembra-se ainda?...
Um atraso, um impedimento,
e nada existiria deste encantamento,
desta metamorfose linda!

Nunca aconteceria o amor que aconteceu.
Você não estaria agora em minha vida...

Meu coração, meu coração, minha querida!
Penso naquela doença ainda
de que você quase morreu...


CHANCE
Paul Géraldy

Et pourtant, nous pouvions ne jamais nous connaître !
Mon amour, imaginez-vous
tout ce que le Sort dû permettre
pour que l'on soit là, qu'on s'aime, et pour que ce soit nous ?
Tu dis : "Nous étions nés l'un pour l'autre." Mais pense
à ce qu'il a dû falloir de chances, de concours,
de causes, de coïncidences,
pour réaliser ça, simplement, notre amour !
Songe qu'avant d'unir nos têtes vagabondes,
nous avons vécu seuls, séparés, égarés,
et que c'est long, le temps, et que c'est grand, le monde,
et que nous aurions pu ne pas nous rencontrer.
As-tu jamais pensé, ma jolie aventure,
aux dangers que courut notre pauvre bonheur
quand l'un vers l'autre, au fond de l'infinie nature,
mystérieusement gravitaient nos deux coeurs ?
Sais-tu que cette course était bien incertaine
qui vers un soir nous conduisait,
et qu'un caprice, une migraine,
pouvaient nous écarter l'un de l'autre à jamais?
Je ne t'ai jamais dit cette chose inouïe :
lorsque je t'aperçus pour la première fois,
je ne vis pas d'abord que tu étais jolie.
Je pris à peine garde à toi.
Ton amie m'occupait bien plus, avec son rire.
C'est tard, très tard, que nos regards se sont croisés.
Songe, nous aurions pu ne pas savoir y lire,
et toi ne pas comprendre, et moi ne pas oser.
Où serions-nous ce soir si, ce soir-là, ta mère
t'avait reprise un peu plus tôt ?
Et si tu n'avais pas rougi, sous les lumières,
quand je voulus t'aider à mettre ton manteau ?
Car souviens-toi, ce furent là toutes les causes.
Un retard, un empêchement,
et rien n'aurait été du cher enivrement,
de l'exquise métamorphose !
Notre amour aurait pu ne jamais advenir !
Tu pourrais aujourd'hui n'être pas dans ma vie !...
Mon petit coeur, mon coeur, ma petite chérie,
je pense à cette maladie
dont vous avez failli mourir...

GÉRALDY, Paul. Eu e você. Tradução Guilherme de Almeida. São Paulo: Editora Nacional, 1983. (18.a edição) p.40-43
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Paul Géraldy, pseudônimo de Paul Lèfevre, parisiense nascido em 1885, apesar de ser muito conhecido como dramaturgo era também poeta. Seu trabalho mais conhecido é “Toi et Moi”, Eu e Você, publicado em 1912. No Brasil, a obra foi traduzida por Guilherme de Almeida (1890-1969), o príncipe dos poetas brasileiros, que sobre a obra ressaltou: “O ‘Toi et Moi’ (...) é, todo ele, um ‘tête-à-tête’, uma conversa íntima de namorados falada e escrita, em verso livre, na língua mais própria para a familiaridade amorosa: em francês.”

O PALHAÇO XIXILICA

Leila Jalul


Os preparativos para a liquidação da maior loja de materiais de construção e artigos de decoração duraram três dias e três noites. A avenida principal da pequena Mirandolina ficou interditada para que se armasse um portal que permitisse, além da visualização do semáforo, a passagem dos caminhões de lixo, dos cegonhas e dos transportadores de eucalipto e mármore. Nela seriam vendidos pisos de cerâmica a R$ 8,00 e de porcelanato a R$ 25,00. Janelas e portas de madeira deveriam variar entre R$ 70,00 e 90,00. Tudo pechincha de São João! Isso sem contar com a galinha morta dos vasos sanitários e das pias de última geração a R$ 180,00.

João Marcino e Heloneida estavam radiantes com a garantia do trabalho temporário por duas semanas. Ganharam a indumentária de palhaços e de caipiras do dono do estabelecimento. Roupas lindas, jamais usadas em seus shows pelas feiras livres e fazendolas dos arredores. Também os músicos da bandinha ganharam fantasias mais animadas que as cores do arco-íris gay. Na primeira semana seriam caipiras e, na segunda, palhaços. Selecionaram as marchinhas de circo e as populares dos santos de junho e ensaiaram a todo vapor. De 13 a 18 e de 20 a 25 de junho, teriam contrato assinado e pagamento pelos serviços prestados aos proprietários da loja Camelo & Rodrigues – Materiais de Construção e Decoração.

Partindo do princípio do “quem é coxo, parte cedo”, às seis da matina, perfilados frente ao prédio, estavam todos: músicos e caipiras, aguardando a abertura do comércio. Às oito, pinotando de um lado para o outro da avenida, ao som das músicas de fogueira, João Marcino e Heloneida se derretiam em abordagens aos passageiros de carros, ônibus e caminhões, quando da parada do sinal. Ela, grávida de uns seis meses, ia numa marcha mais lenta.

O sol esquentou na hora prevista para esquentar. Cuidadoso com a esposa grávida, João Marcino deixava-a descansar no canteiro central, debaixo de três arvorezinhas baixas e de copas frondosas. Logo foram advertidos pelo gerente da loja: o contrato previa o evento defronte ao prédio e não ao lado. Heloneida, forte que era, voltou ao quadrado demarcado, sem reclamar da vida. E repetiram as sessões de caipiras ao sol de segunda a sábado, das oito às doze e das quatorze às dezoito horas, distribuindo panfletos e atravessando a avenida, numa alternância de doer na alma de quem se dispusesse a medir o sacrifício.

No domingo descansaram. Na segunda voltaram com a corda toda. Tiraram a roupa de caipira e se montaram de circenses.  A palhaça grávida, o palhaço de cabelos brancos e presos num rabo de cavalo e a bandinha barulhenta e desafinada, desta vez tocando músicas de tablado. Preocupado com Heloneida, João Marcino resolveu poupá-la das travessias de avenida. Passaram a obedecer a proporção de uma para três, ainda que escondendo do gerente da loja. As vendas ultrapassavam  as expectativas. Quem iria se importar se não havia tempo sequer de fiscalizar o formigueiro que se espalhava na loja com avidez de lobos para o consumo dos pisos de cerâmica simples, dos porcelanatos e das louças sanitárias? O gerente era um só, pois, pois!

Demonstrando cansaço e ainda preocupado com Heloneida, João Marcino decidiu alternar suas travessias a cada três sinais fechados. O gerente não mais disponibilizava as garrafinhas de água mineral, ou de torneira que fosse, como nos primeiros dias. De língua seca, era impossível. Até a bandinha estava mais amolecida e desafinada, principalmente para os tocadores dos instrumentos de sopro.

Às quinze horas do dia 24 de junho, vésperas do final da loucura liquidativa, com a casa cheia, ninguém notou que João Marcino deitou um pouco no chão debaixo das arvorezinhas pequenas e de copas frondosas. Apenas Heloneida sabia que seu homem não deitava por acaso.

A ambulância do SAMU recolheu o corpo sem que o gerente se desse conta de que, a seu serviço, debaixo de um sol escaldante, morreu o mais famoso palhaço de Mirandolina. Xixilica era seu nome. E Heloneida era o de sua esposa.

Tudo ficou calmo, quase parando... Bem disse o homem de Itabira:

“Devagar... as janelas olham.
Eta vida besta, meu Deus.”


> LEILA JALUL é escritora acreana, atualmente radicada na Bahia. É autora de SUINDARA (2007), DAS COBRAS, MEU VENENO (2010), MINHAS VIDAS ALHEIAS 2011 e LUZINETE: UM ANGU DE CAROÇO? (2012).

segunda-feira, 28 de abril de 2014

PEQUENO HISTÓRICO DE JORDÃO

No dia 28 de abril de 1992, a então Vila Jordão, conforme a lei 1.034, era desmembrada de Tarauacá, para elevar-se à categoria de cidade, ato oficializado em 1o de janeiro de 1993.

A história da ocupação do Jordão remete-se à presença dos primeiros exploradores do látex. Mas já muito antes habitavam a região diversas tribos indígenas, entre elas, a dos povos Kaxinawás, um dos grupos mais representativos da região até hoje.

O município de Jordão, que já se chamou Foz do Jordão, assentava-se nas terras do seringal Duas Nações, comprado em 1890 por Luiz Francisco de Melo, e que, em 1912, com a morte de Luiz Francisco de Melo, depois de um sério litígio entre os herdeiros, passou para Barnabé Saavedra e sua mulher Gabina Sandoval Saavedra. Levy Cervantes Saavedra (1900-1977), filho do casal, e que integrou a primeira turma de formandos da Faculdade de Direito, o que é hoje a UFAC, com início em 1964 e término em 1969, nos anos de 1950, vendeu essas terras ao Governo do Estado do Acre.

Em 1956, Jordão elevou-se à categoria de Vila, sendo seu primeiro sub-prefeito Manoel Rodrigues de Farias, nomeado por Arnaldo Gomes de Farias, então prefeito municipal de Tarauacá.

Depois do plebiscito de abril de 1992, que obteve a maioria dos votos, Jordão passou a categoria de Município. No dia 03 de outubro de 1992, Hilário de Holanda Melo foi eleito o primeiro Prefeito por meio do voto popular.

O VALOR DA IRONIA

Inês Lacerda Araújo


Para o senso comum, ironizar equivale a caçoar, a gozar de algo ou de alguém, a conotação do termo é negativa.

Para a filosofia, a ironia tem outro alcance e outra conotação. Toda situação pode ser reelaborada pelo ângulo da ironia, de modo a assumir certa distância que um olhar perquiridor e atento, que permite a reflexão e o questionamento, abalam o que já sabia, o que se tinha como certo e seguro. O ironista pergunta, será assim mesmo? Você não conseguiria ver de um modo novo, diferente? Aquilo que você considera assentado, por acaso não poderia ser abalado, modificado, reinventado?

E a resposta do filósofo irônico será sempre SIM!

A ironia de Sócrates parte da introspecção, da descoberta de seu eu, atingir pelo olho interior o que há de divino dentro de si, a sua sabedoria. Aquele que crê saber, nada sabe, pois acha que já conhece tudo. Aquele que diz nada saber é realmente sábio, pois este não crê saber o que ainda ignora. Ou seja, não se trata de um jogo de palavras e sim de um ponto de partida: para chegar à sabedoria, é preciso reconhecer a ignorância, livrar o espírito dos erros e prosseguir no caminho da verdade. A ironia leva ao desmonte das ideias prontas, a ironia tira o chão dos que se creem superiores. Sócrates conduz a argumentação fazendo com que a pessoa se confronte consigo e com tudo o que considera como correto e verdadeiro sem exame prévio, a ponto de essa pessoa se irritar; o próximo efeito é a pessoa se libertar das opiniões e abrir-se para novos ensinamentos.

Como Sócrates tinha muitas dúvidas, ele instigava dúvidas nos outros, e, pelo diálogo ia modificando as noções antes aceitas; desse modo o próprio filósofo ia construindo o conhecimento, ele como que pavimentava o caminho para a vida reta e virtuosa, que é a finalidade da sabedoria.

Voltaire ironizou por meio do recurso ao absurdo, ao non sense e à contradição: dizer o contrário do que se quer comunicar, mesmo correndo o risco de não ser compreendido. Aliás, quem não compreende o significado de um dito irônico, falta-lhe informação, leitura, cultura. E talvez com pessoas muito ingênuas ou pouco informadas, o esforço de ironizar não compense.

E ironizar compensa? Não será uma ironia que a própria ironia desloque a si mesma?

O riso silencioso do filósofo, a que se referia Foucault, é irônico. Apontá-lo como estruturalista ou como filósofo da vanguarda, ou como um guru que tem resposta para todas as questões, a isso tudo a resposta vem num tom irônico. Se me consideram positivista, disse ele, sou um "positivista feliz".

Há todo um jogo de significações com ida e volta a contextos para que a ironia seja interpretada corretamente. Ironia: mas como assim, "corretamente"? E o que dizer, ironicamente, do que se considera como correto? A quem ou a que atribuir correção, sem tropeçar na ironia?

E a ironia das ironias? Viver para morrer...


INÊS LACERDA ARAÚJO - filósofa, escritora e professora aposentada da UFPR e PUCPR.

sábado, 26 de abril de 2014

CRONICAMENTE INVIÁVEL

“A realidade não interessa as pessoas. Não adianta mostrar nada de real para elas. Elas sempre vão encarar tudo como ficção. Para quê perder tempo interpretando a realidade para as pessoas entenderem? Só para fingir que eu entendo melhor? Melhor só registrar os fatos e deixar a interpretação para depois. Assim pelo menos posso fingir cada vez de uma forma. Cada vez arrumar a realidade de um jeito, de acordo com o poder do momento. Ou nunca interpretar, o que seria perfeito. Registrar os fatos, nada mais.”

CRONICAMENTE INVIÁVEL (1999), filme de Sérgio Bianchi.

“Como documentário é falso. Não há uma só cena que não tenha sido encenada. Dessa sucessão de cenas autônomas sai o mais lúcido e cruel retrato que o cinema brasileiro fez do País nos últimos anos. Bianchi investe contra a hipocrisia social e o mito de harmonia racial que somente serve para mascarar a tragédia brasileira. No tempo da ditadura dizia-se que este era um país que ia para a frente. Alimentam-se hoje outras fantasias aquilo que o diretor chama de clichês esquizofrênicos, otimistas e cínicos.” ZAZ Cinema

p.s. pessoal, é impossível sair indiferente desse filme, assim como de outros do Bianchi, é angustiante, impactante, provocante. É uma tapa na cara. E saímos nos perguntando quem é vilão e mocinho no Brasil, diante da corrupção e do jeitinho brasileiro. Mas se você prefere o Brasil oficial (cardosista, lulista, dilmista etc) em vez do Brasil real, então aproveite para ir ver o Faustão.

sexta-feira, 25 de abril de 2014

BRASÍLIA: EXPOSIÇÃO FOTOGRÁFICA


Tancredo Maia Filho

Série FOTO-POEMA



O QUE PASSOU PASSOU?

Paulo Leminski (1944-1989)


Antigamente, se morria.
1907, digamos, aquilo sim
é que era morrer.
Morria gente todo dia,
e morria com muito prazer,
já que todo mundo sabia
que o Juízo, afinal, viria,
e todo mundo ia renascer.
Morria-se praticamente de tudo.
De doença, de parto, de tosse.
E ainda se morria de amor,
como se amar morte fosse.
Pra morrer, bastava um susto,
um lenço no vento, um suspiro e pronto,
lá se ia nosso defunto
para a terra dos pés juntos.
Dia de anos, casamento, batizado,
morrer era um tipo de festa,
uma das coisas da vida,
como ser ou não ser convidado.
O escândalo era de praxe.
Mas os danos eram pequenos.
Descansou. Partiu. Deus o tenha.
Sempre alguém tinha uma frase
que deixava aquilo mais ou menos.
Tinha coisas que matavam na certa.
Pepino com leite, vento encanado,
praga de velha e amor mal curado.
Tinha coisas que tem que morrer,
tinha coisas que tem que matar.
A honra, a terra e o sangue
mandou muita gente praquele lugar.
Que mais podia um velho fazer,
nos idos de 1916,
a não ser pegar pneumonia,
deixar tudo para os filhos
e virar fotografia?
Ninguém vivia pra sempre.
Afinal, a vida é um upa.
Não deu pra ir mais além.
Mas ninguém tem culpa.
Quem mandou não ser devoto
de Santo Inácio de Acapulco,
Menino Jesus de Praga?
O diabo anda solto.
Aqui se faz, aqui se paga.
Almoçou e fez a barba,
tomou banho e foi no vento.
Não tem o que reclamar.
Agora, vamos ao testamento.
Hoje, a morte está difícil.
Tem recursos, tem asilos, tem remédios.
Agora, a morte tem limites.
E, em caso de necessidade,
a ciência da eternidade
inventou a criônica.
Hoje, sim, pessoal, a vida é crônica.


LEMINSKI, Paulo. Toda Poesia. São Paulo: Companhia das Letras, 2013. p.287-288

quinta-feira, 24 de abril de 2014

DIA DE FESTA

Jacques Prévert (1900-1977)


Onde vai você meu menino com essas flores
Debaixo dessa chuva

Está chovendo está molhando
Hoje é o aniversário da rã
E a rã
É minha amiga

Ora menino
Bicho não faz aniversário
Ainda mais um batráquio
Decididamente se não o colocarmos nos eixos
Esse menino ainda vira um bom malandro
Por causa dele ainda vamos comer
O pão que o diabo amassou
Vive tendo essas ideias
E ninguém ralha com ele
Esse menino só faz o que lhe dá na telha
E nós queremos que faça o que dá na nossa

Oh meu pai!
Oh minha mãe!
Oh meu tio-avô Sebastião!

Não é com minha cabeça
Que eu ouço o coração bater
Hoje é sim o aniversário
Por que não podem entender?
Oh! não me puxem pelo ombro
Não me peguem pelo braço
Quantas vezes a rã me fez rir
E toda a noite ela canta para mim
Mas aí eles fecham a porta
Vêm falar-me suavemente
Eu grito que é dia de festa
Mas ninguém ali me entende.


JOUR DE FÊTE
Jacques Prévert

Où vas-tu mon enfant avec ces fleurs
Sous la pluie

Il pleut il mouille
Aujourd'hui c'est la fête à la grenouille
Et la grenouille
C'est mon amie

Voyons
On ne souhaite pas la fête à une bête
Surtout à un batracien
Décidément si nous n'y mettons bon ordre
Cet enfant deviendra un vaurien
Et il nous fera voir
De toutes les couleurs
L'arc-en-ciel le fait bien
Et personne ne lui dit rien
Cet enfant n'en fait qu'à sa tête
Nous voulons qu'il en fasse à la nôtre

Oh ! mon père !
Oh ! ma mère !
Oh ! grand oncle Sébastien !

Ce n'est pas avec ma tête
Que j'entends mon coeur qui bat
Aujourd' hui c'est jour de fête
Pourquoi ne comprenez-vous pas
Oh ! ne me touchez pas l'épaule
Ne m'attrapez pas par le bras
Souvent la grenouille m'a fait rire
Et chaque soir elle chante pour moi
Mais voilà qu'ils ferment la porte
Et s'approchent doucement de moi
Je leur crie que c'est jour de fête
Mais leur tête me désigne du doigt.


PRÉVERT, Jacques. Dia de folga. Sã Paulo: Cosac Naify, 2004. p.14-15

101 ANOS, PARABÉNS TARAUACÁ

POEMAS ILUSTRADOS


terça-feira, 22 de abril de 2014

TARAUACÁ 101 ANOS: OS SEUS POETAS

Há muitas maneiras de se medir a excelência de um povo, a poesia é uma delas, quiçá, a mais autêntica, porque diz dos anseios e sentimentos mais profundos que habita o íntimo de cada ser. O povo se faz ver em seus poetas. O poeta faz ver o seu povo. De modo que uma sociedade sem poetas, é uma sociedade sem profetas, uma sociedade que agoniza e fenece em suas próprias misérias sem a capacidade de transcendê-las ou transformá-las. Se cada um soubesse, como fez saber Guimarães Rosa em seu discurso de posse na ABL, que a poesia é remédio contra a sufocação. Se a poesia fere, ela também traz em si o bálsamo que cura. A poesia, a mais íntima, serve a liberdade humana, empresta ao homem as asas necessárias para a mais instigante viagem, a que é feita para os recônditos de si mesmo.

Lembro que, certa feita, encontrava-me fuçando um sebo em Curitiba, e me deparei com um livro intitulado AMO, cujo autor era J.G. de Araújo Jorge. Fiquei sobressaltado quando li que o poeta havia nascido na Vila de Tarauacá. Até então nunca havia lido ou ouvido falar de Araújo Jorge nos dezenove anos que havia morado no Acre. Desde então Araújo Jorge me acompanha. Aos poucos estou reunindo sua obra, cujo propósito é reuni-la completa. Outro poeta que sempre ouvia falar era o prof. Freitas, mas só mais tarde me deparei com a sua obra. E assim, pouco a pouco, fui me aproximando da poesia produzida por Tarauacaenses, como a do Raimundo Rodrigues e a da prof.a Núbia Wanderley, além da Luísa Lessa, e do José Marques Lopes, que integra a nova geração de poetas da terra do abacaxi.

Reuni, então, esta uma pequena antologia poética dos principais nomes da poesia produzida por tarauacaenses. Inclui o grande Leandro Tocantins, que sendo Belenense, nunca se desligou afetivamente da região acreana, em especial, Tarauacá, que dedicou inúmeros poemas. Espero que a nova safra de poetas tarauacaenses esteja pronta, pois onde não há poesia, cresce o deserto da desesperança.

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JOSÉ GUILHERME DE ARAÚJO JORGE (Tarauacá, 20 de maio de 1914 – Rio de Janeiro, 27 de Janeiro 1987) – o maior poeta nascido nessa terra. Ganhou projeção nacional, e se tornou um dos poetas mais lidos do Brasil à sua época. Foi candidato a vereador e a deputado estadual e federal no antigo Distrito Federal (posteriormente estado da Guanabara), hoje Rio de Janeiro. Sendo eleito deputado federal em 1970, pela Guanabara, reelegendo-se para o terceiro mandato, em 1978. Recebeu o título de Poeta do Povo e da Mocidade. Publicou ao todo 36 livros, traduzido em diversos países, com milhões de exemplares vendidos.

OS VERSOS QUE TE DOU
J.G. de Araújo Jorge

Ouve estes versos que te dou, eu
os fiz hoje que sinto o coração contente
enquanto teu amor for meu somente,
eu farei versos... e serei feliz...

E hei de fazê-los pela vida afora,
versos de sonho e de amor, e hei  depois
relembrar o passado de nós dois...
esse passado que começa agora...

Estes versos repletos de ternura são
versos meus, mas que são teus, também...
Sozinha, hás de escutá-los sem ninguém que
possa perturbar vossa ventura...

Quando o tempo branquear os teus cabelos
hás de um dia mais tarde, revivê-los nas
lembranças que a vida não desfez...

E ao lê-los... com saudade em tua dor...
hás de rever, chorando, o nosso amor,
hás de lembrar, também, de quem os fez...

Se nesse tempo eu já tiver partido e
outros versos quiseres, teu pedido deixa
ao lado da cruz para onde eu vou...

Quando lá novamente, então tu fores,
pode colher do chão todas as flores, pois
são os versos de amor que ainda te dou.


CANTO DO POETA MENOR
J.G. de Araújo Jorge

Sou o poeta menor, o trovador humilde,
que nasceu nesse Brasil grande, numa vila sem nome,
em meio às árvores, aos pássaros, aos rios e jacarés
porque o resto não há.

Não me recebem. Estão sempre em reunião importante.

Estou na rua, com o povo, que “a praça é do povo
como o céu é do condor”,
já cantou o grande Poeta.

Não trago quatrocentos anos na sacola,
não sou de ferro, não sou de bronze,
não desci orgulhoso da alta montanha
falando como Zaratustra,
– sou um poeta, de barro,
como qualquer homem...

Não cheguei de Ita, com alma palaciana,
disposto a conquistar a grande capital,
não invadi os jornais e suplementos
construindo “igrejinhas” sem fieis.

Sou o poeta menor, o poeta humilde, sem história,
que nasceu nesse Brasil grande, numa vila sem nome,
pra lá, muito pra lá...
– a vila de Tarauacá.

Poeta sem brasão, sem orgulhos, sem rodinhas,
apátrida entre irmãos,
poeta nu e sozinho, com sua poesia,
pelos quatro cantos de sua terra
misturado com o povo.

Sou o poeta antigabinete ministerial
sem rondós e sem falsas luxúrias,
não sou amigo dos reis,
sou simplesmente o poeta da rua,
como um violeiro e sua viola,
como um cego e seu realejo...

Quando toca a minha poesia
a criançada vem correndo para ouvir,
os trabalhadores param o serviço
e comentam,
as empregadas e os transeuntes fazem roda.
as moças se debruçam nas janelas
e ficam cantarolando.

Sou o poeta menor. Não me recebem.
Estão sempre em reunião importante.

Não faz mal. De mãos dadas com o povo,
como em noite de lua
faço ciranda na rua.


POEMA ACRE-DOCE
J.G. de Araújo Jorge

Onde estás rio Acre?

Por que rio Acre
se suas águas são doces como “alfinim”
no mapa de minha infância?

Onde estás Rio Branco, mal crescida
de vermelhos barracos
que a distância azulou?

Sinfonia da infância:
rumor de chuva no telhado de zinco,
tão bom para dormir!
– rumor de chuva na floresta, besourada distante,
rumor das águas escachoando nas ruas,
caindo das calhas nas barricas cheias,
(que banho gostoso!)
– sinfonia da infância!

Música da banda passando na rua: do grande trombone
rebrilhante, caramujo de cobre
gorda espiral soprando rolos de “dobrados”
que eu ouvia embevecido e curioso, trepado no gradil
do coreto da praça.

Sinfonia da infância:
– o apito das “chatas” na curva da cadeia, rompendo a madorra
dos dias parados, iguais;
o tchá-tchá dos remos das catraias
chapinhando na água do rio, ritmados dentro da noite,
indo e vindo, Penápolis-Empresa, – Empresa, do outro lado
as luzes tremendo em fieiras nas águas do rio, –

(ó meus barcos de sonho, em rios de sombra
que ainda hoje correm sem margens, no tempo).

Onde estás
rio Acre, de Rio Branco,
rio vermelho que o tempo azulou,
que corres para a distância
e que foges de mim?

Rio Acre da minha infância
que sempre vais
de onde vim...

Onde estás Rio Branco, dos bois rodando nos varais
das moendas do engenho, gementes,
(Meu Deus! a tristeza castrada do olhar dos bois!)
dos bois arrastando madeiras pra serraria,
dos cajueiros carregados
das mangueiras noivando
dos cacaureiros da floresta,
e daquele alto cajazeiro que pintava o chão das madrugadas
com salpicos de ouro
depois do vento da noite.

Onde estás Rio Branco
da baladeira na cintura pra caçar sanhaçu,
dos banhos de igarapé
das caminhadas no mato colhendo melão S. João Caetano
as pernas sarapintadas de mucuim
dos ovos de tartarugas desenterrados nas praias
na curva do rio?

Rio Branco
dos santinhos passados na aula,
das representações de fim de ano no Grupo Escolar,
das pulseirinhas de chifre – Feito cobras de olhinhos de pedras falsas –
que Eudóxia ganhava de presente.

Onde estás Rio Branco, de peito nu,
de pés no chão,
da molecada remexendo os sacos de açúcar rindo à toa
com as bocas escancaradas no Mercado,
pulando sobre os montes de serragem na Serraria;
das subidas nas altas mangueiras, mirantes
de inesquecíveis paisagens.

Onde estás Rio Branco
da igrejinha branca à beira do barranco
com a corda de seu sino no ar – balanço tantas vezes
de minhas travessuras, – transformadas
em surpreendentes badaladas.

Rio Branco
do “velho” na sala, jogando gamão com o juiz,
do ordenança Manuel, sempre sentado, no alpendre,
do “pega pinto”, refresco nos dias de calor,
Rio Branco das primeiras peladas
nos terrenos da igreja;
das primeiras lições de história natural que os bichos ensinavam
nos quintais, nos currais, nas ruas, nos terrenos baldios
na cara de toda gente.

Rio Branco
que para mim ficou, principalmente
neste meu ar de aventura
neste jeito de insubmissão
neste espírito de rebeldia,
nesse amor pela terra, pelas coisas simples, pelos seres humildes,
nesse ácido gosto de liberdade que põe água na boca
como cajá-mirim,
e é impulso, alegria, ânsia incontida e festa.

Neste gosto de liberdade
que até hoje me acompanha,
como se ainda fosse o garoto de peito nu e pés no chão
que fugia de casa manhã cedo e se perdia em travessuras
no engenho, na floresta, nos igarapés
sem medo da surra que o esperava.

Rio Branco
meu princípio
sem fim,
que não sei onde estás, mas sei que estás
de onde vim.
_______________________________________________________________________ 

RAIMUNDO ACREANO RODRIGUES DE ALBUQUERQUE, o Raimundo Rodrigues (Tarauacá, 26 de outubro de 1919 – São Paulo, 03 de outubro de 2010) – poeta, escritor, professor e jornalista. Pertenceu a várias academias de letras, entre elas, maçônicas. Viveu desde 1965 em São Paulo, onde faleceu. Escreveu inúmeras obras didáticas, maçônicas, e literárias, entre as quais: Riachão (1957); Trovas do Ontem e do Hoje (s/d); Sonetos e outras poesias (2009).

GOTÍCULAS DE AMOR
Raimundo Rodrigues

A poesia desabotoa de mim
como o perfume desabrocha da rosa...

No jardim das musas de minha alma,
o roseiral da poesia se cobre de rosas
brancas, vermelhas e rosas cor-de-rosa.

Há flores e perfumes
e há espinhos também
no jardim da minha poesia.

O sereno da noite estrelada da minha vida
deixa gotículas de amor
nas pétalas olorosas
das rosas
da minha poesia.

TORRÃO NATAL
Raimundo Rodrigues
(Para Tarauacá, a terra onde nasci)

Tudo passa na vida, tudo vai,
as nuvens do céu, as águas do rio,
o dia que nasce, o raio que cai,
a chama da vela, o calor e o frio.

O vento que avança rápido ou lento,
as ondas do mar que morrem na areia,
o amor, a alegria, a dor, o lamento,
o inserto que cai, da aranha na teia.

O urro da fera, a ave que voa,
o pó que o vento levanta no espaço,
o troar do trovão que longe ecoa,
a nostalgia, a tristeza, o cansaço.

A chuva, o sereno, a intempérie, a neve,
o outono, o inverno, a primavera, o estio,
o vagalume que voa tão leve,
o canto, a palavra, o grito, o assovio.

Tudo passa na vida, é tudo um instante,
só não passa a saudade, esta não corre,
de quem longe está da pátria distante,
oh! esta saudade, eu juro, não morre!


PARAÚNA
Raimundo Rodrigues

Nos contrafortes de uma linda serra,
Por onde a brisa, sussurrante, passa,
Ergue-se, majestosa, a minha terra,
Tão cheia de belezas e de graça.

Se pelo azul do céu, a lua erra,
E a sua luz a minha terra abraça,
Um panorama divinal encerra,
Dignificando um povo e uma raça.

Esta cidade que em meu peito mora,
De lindas moças, de crianças lindas,
É grande, hoje, como foi outrora...

Pois o seu povo sabe, com ternura,
Que sua honra e sua glória infindas
Escudam-se no amor pela cultura.
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LEANDRO TOCANTINS (Belém, 08 de maio de 1919 – Rio de Janeiro, 01 de julho de 2004) – escritor, sociólogo, poeta, ensaísta. Chegou a Tarauacá com menos de um ano de idade. Era filho de Van Dyck Amanajás Tocantins e Iraídes Góes, que se estabeleceram no seringal Foz do Muru, de onde administravam os demais seringais. O escritor sempre fez questão de recordar a influência que exerceu sobre sua vida e escritos a sua vivência em Tarauacá. Tornou-se um dos autores, à sua época, mais respeitados em relação ao estudo amazônico. Escreveu obras que se tornaram clássicas como O Rio Comanda a Vida (1952) e Formação Histórica do Acre (1961), agraciado com o Prêmio Joaquim Nabuco de História Social da Academia Brasileira de Letras. Sobre Tarauacá escreveu um livro de memórias chamado Os Olhos Inocentes (1984), que recebeu o Prêmio Osvaldo Orico da Academia Brasileira de Letras, e diversas poesias.

O SERINGAL GUARDA SAUDADES E SONHOS
Leandro Tocantins

O lar inunda o barracão na beira do rio Muru
em auroras de alegria.
Mas a sintaxe das tristezas
adormecida na família pelas saudades de Belém
caminha faminta e viva
girando na roldana das distâncias.
O menino apenas estreia nos sentimentos do mundo
Quer agora escutar rente ao rio
os sons do motor e o secreto nascimento
de viagens naqueles funis de águas encantadas.
O batelão, pássaro livre, desliza na torrente
que flutua nas margens adormecidas.
O menino não sente saudades de Belém
(a estrela de seu natal ainda distante para ele)
segue apenas a mutação colorida dos sonhos
no mural trançado de folhagens
onde estão esculpidos astros e conchas
nos vales, vales que se desgarram
das dobras de florestas imemoriais, mais florestas
mais rios
Rio.

Rio de janeiro,1994


ONDE OS RIOS SE ENCONTRAM
Leandro Tocantins

Pode-se ouvir o tempo reler a paisagem
mesmo na nostalgia tendida para a infância
fugaz como todas as infâncias.
O ato de ver divide-se em dois rios
sossegados em sua alma subterrânea.
O rio Muru de águas esverdeadas e lentas, no verão
(Na sua foz a minha morada no barracão)
flui para o mais inquieto e turvo Tarauacá.
Minha lembrança pastoreia vertigens de imagens
A cidadezinha ronda as beiras do Tarauacá,
A catraia vai e vem, leva o menino, traz o menino
Nas penumbras do silêncio do rio que mede o tempo,
As matas fazem vibrações de verde,
O céu lugar-comum de azul.
Discursam os ventos em rastros irremissíveis
O infante exalando miragens de vida
E todas as vozes impressas na solidão.

Rio de Janeiro, 1994


ROTEIRO INFANTE
Leandro Tocantins

A José Néri da Rocha, que foi, como eu,
menino de Tarauacá

Eis o rumo principal, Avenida Juvêncio de Menezes.
O calçadão entornando-se no meio da rua
(não havia automóveis)
articula os passos do menino.
Aqui é o fórum adiante o mercado,
A maçonaria, a prefeitura, o telégrafo
(Ah! Sua torre, alta e esguia, a torre do telégrafo
como um fio descido do céu, aproxima-se das nuvens
para transmitir segredos ao pé do ouvido).
A avenida vem ao encontro da Praça do Coreto
Onde deslizam os sonhos, de onde vêm? Para onde vão?
E o cinema no puro instante da imagem muda e iluminada
Liberta fantasias na extensão de mundos inalcançáveis.
Ali o menino vai receber
Aulas de piano na bonita casa da professora.
O médico, o delegado de polícia, a parteira, o padre
Abrem as janelas e portas com vocação
De receber e armar gestos amigos.
A Avenida Juvêncio de Menezes
leva as almas no instante do amor e do socorro
na Igreja de São José que oferece
a face, o perfil, a fonte da Santa Paz do Senhor.
Nem o tempo íngreme imobiliza em meus ouvidos
Os sons da banda como borboletas encantadas
No coreto que se desprende do roteiro da
Avenida Juvêncio de Menezes.

Rio de Janeiro, 1994
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MARIA SILENE DE FARIAS – nasceu em 14 de novembro de 1951, filha de Maria Deusa de Farias Franca, ilustre poeta e atriz acreana, e José Farias Franca. Teatróloga e ativista cultural. Esteve sempre muito envolvida com o movimento Cultural no Acre a partir dos anos 80. Em 2002 organizou e publicou Bairro Quinze e Cidade Nova, por meio da Prefeitura Municipal de Rio Branco e Fundação Cultural Garibaldi Brasil, da qual ocupou cargo de Presidente. Participou, entre outras, da Antologia dos Poetas Acreanos 1986 e Coletâneas de Poesia Acreanas, da Cia Teatro 4o Fuso (1981). Em 2005, junto com os seus irmãos Cícero e César, idealizou o grupo folclórico Jabuti-Bumbá.

CADÊ A MACAXEIRA?
Silene Farias

É pouca a farinha no prato
E muita água na macaxeira.
É da gripe crônica
À falta de lambedor.
É um filho no peito,
Outro no bucho,
Outros quatro lambendo o dedo.
A rapadura foi pouca!
É a tristeza do companheiro,
A goteira que aumenta
E molha um outro filho
Que arde em febre...
É a peste!
É o andar curvado,
Do peso secular da carga.
É o brilho dos olhos desfeito
Pela fumaça do látex.
A memória é forte!


O BAHIA TÁ ENCANTADO
(Soldado da Borracha, que conheci no Quinari)
Silene Farias

Vige Maria!
É o Bahia que vem lá
Fazendo assombração
Na madrugada
Cantando sua canção
Sem ser importunado.
Canta Bahia! Canta
Feito lobo alucinado
Pra essa lua cheia
E tão iluminada.
Canta tuas heresias
Tuas desventuras
No seringal
Que já não deu.


SEM PECADO
Silene Farias

Quando todas as igrejas
Arderem em brasas,
Sobre suas cinzas
Surgirá a verdade.

Quando todas as igrejas
arderem,
O sufoco secular dos fieis
terá seu fim.

Quando todas as igrejas
arderem,
Envolto em verdade pura,
surgirá clareando o dia.

Quando todas as igrejas
arderem,
Ninguém mais governará
Ou pecará a humanidade.

Glória ao homem nas alturas
E paz na terra!
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NÚBIA WANDERLEY – nasceu em 21 de agosto de 1951, filha de Benício Otto da Silva, grande agitador da cultura popular, e Walzira Wanderley da Silva. A poetisa foi por muitos anos professora em Tarauacá, onde reside. Publicou os seguintes livros de poesia: Miscelânea (1984); Miscelânea vol.2 (1986); Miscelânea vol.3 (1988); a publicar, Miscelânea vol. 4.

A POESIA
Núbia Wanderley

Existe a poesia
Nos olhos de uma criança
Feliz ou sofrida,
Preta ou branca
Existe a poesia
Nas lágrimas doídas
De alguém dilacerando
O coração sofrido
Existe poesia
No céu azul, no mar
Nos campos verdejantes
Nas asas ágeis das aves
Do canto madrugador
Do galo no poleiro
No marulhar das ondas,
No tic-tac do relógio
Nas noites de luar,
Nos corações apaixonados
Nos corações arrependidos.
Existe poesia
No adulto, no velhinho
No bebê choraminguento
Nas flores do caminho
Existe poesia
No céu enfarruscado
Nas ondas do mar encarpelado.
A poesia existe
Onde quer que ela esteja
A poesia viaja
Na mente, na mão
De quem se sente extasiado
Nas coisas da natureza.


QUEM TE VIU, QUEM TE VÊ!...
Núbia Wanderley

Três personagens importantes
Certo dia se encontraram
Entreolharam-se
Sem uma palavra dizer
O primeiro, bem velhinho já,
Chamava-se Foz do Muru;
O segundo era mais moço
E chamava-se Vila Seabra.
E o terceiro como se vê, Tarauacá.
Foz do Muru, bem curvadinho perguntou:
– Quem é você?
Ao que ela retrucou:
– Sou a importante Seabra,
Mulher fina e orgulhosa...
E nem a deixou terminar:
– Baixe esse orgulho, senhora.
Também já tive honras e glórias
Hoje sou lembrada apenas
Como um fato da História.
Nisso, passa assobiando
Um rapaz fino e esbelto
Fino no corpo... e o resto
Já nem preciso contar
Disse-lhe a sorrir:
– Vim substituí-la!
Esse negócio de vila
Já não pode ficar assim
Chamo-me Tarauacá
Sou decidido no que digo
E o que serei vou mostrar.
Despediram-se... ela sumiu.
Ele permaneceu e tanto lutou
Que seu nome perdurou até hoje
E, com muita glória,
Seu nome ficou na História
E se eleva cada vez mais,
Que te viu Foz do Muru,
Seabra ou Vila Seabra,
Vendo hoje Tarauacá,
Fica parado sem saber
Como pôde acontecer
Tamanho desabrochar.


CALA-TE, CORAÇÃO
Núbia Wanderley

Cala-te, coração
Deixa de ser malcriado.
Se sofres, a culpa é tua
Por isso fica calado.
Tu és escravo do amor,
Por Cupido governado.
Mas, bate, continua a bater.
Enquanto bates tranquilo
Há muito ainda pra ver.
A vida não é tão mesquinha
Nós é que assim a fazemos
Não olhes o que já sofremos.
Quem sabe a felicidade existe
Não seja mera fantasia
E um dia, tu a encontrarás
E deixarás essa agonia.
Bate forte e compassado.
Nós dois sempre lado a lado,
Buscando o que não encontramos
De repente, plaf!
Encontramos a felicidade
E aí não se conta idade
Quando se tem amor.
_______________________________________________________________________ 

JOSÉ CARLOS DA ROCHA – (Tarauacá, 07 de maio de 1929 – Brasília, 09 de maio de 2010). Estudou em Manaus e em Fortaleza, onde se formou em Direito (1954). Participou de vários movimentos estudantis: foi diretor da Tribuna Acadêmica da Faculdade de Direito do Ceará, diretor da União Nacional dos Estudantes (1953-1954), representou o Brasil no Congresso Internacional de Estudantes, em Istambul. Ocupou vários cargos públicos, tendo aposentado-se como Procurador da república na década de 1990. Aos 19 anos, reuniu os seus poemas no livro “Ela e outras poesias”, que, todavia, não publicou. José Carlos era irmão do ex-senador e ex-governador do Acre Nabor Júnior.

MARILENA
José Carlos da Rocha

Não preciso compor-te, no momento,
Desta tarde estival que me rodeia:
Mesmo me sendo amorfo o pensamento,
Não te sinto distante, nem alheia.

Não preciso compor-te: estás presente
Em todo espaço e tempo e, mais que assim,
É a certeza de ter-te, permanente,
Inserida na tarde, junto a mim!...

Sinto-te o olhar, em torno, prolongado,
Tão pleno de ternura e de carinho,
Nos meus olhos, agora, fixado.

E, assim, tens sido, sempre, em meu caminho:
Nunca a certeza de não ter-te ao lado,
Sempre a certeza de não ‘star sozinho!


 O TEU OLHAR
José Carlos da Rocha

Se existe, neste mundo, outra donzela
Que lhe compare em graça e formosura
E não tem, certamente, esta ternura
Que o seu olhar sublime nos revela.

Pois que tanto divina quão singela,
Esta princesa imensamente pura
Guarda no meigo olhar tanta doçura
Que ganho em me calar a descrevê-la.

E este olhar divinal que já não cabe
Nada mais revelar do que lhe assiste,
Só eu sei quanto o quero, só Deus sabe.

Mas, alcançá-lo, para mim,  consiste
Em desejar que o próprio céu se acabe
E tudo seja meu – que nele existe!...


SONETO FINAL (Pela Paz)
José Carlos da Rocha

Inúteis, fatalmente, os calendários!
Aos séculos somente Deus resiste!
O céu desceu ao mar. É noite ou dia?
Pouco importa, a pergunta não existe.

Vãs as noites de insônia fatigante
E os versos surdamente murmurados.
Nem mesmo um pensamento se elabora
Nas vilas e nos campos desolados!

Deserta a lua triste e enegrecida,
Vagando um céu sem cor, sem movimento,
É o símbolo fatal da própria Vida.

Mas, em meio a paisagem tão sombria,
Resta, ainda, um suave monumento
A uma pomba franzina, muito esguia!...               
_______________________________________________________________________ 

FRANCISCO ALVES FREITAS – nasceu em 01 de junho de 1953. Foi professor durante mais de 30 anos. É Licenciado em Letras Vernáculo pela Universidade Federal do Acre. Seu primeiro poema foi escrito aos dezessete anos. É autor das seguintes obras poéticas: O Homem, a natureza e o povo; e Brados de vida.

SONETO ÀS MINHAS MEMÓRIAS
Prof. Freitas

Velha seringueira, onde descansei
Nos dias quentes, comendo meu pão,
Sentado ao teu tronco, lá eu estudei,
Fazendo exercícios; revendo a lição.

Fiz as refeições, sob a tua sombra,
Sobre folhas secas, pensava na vida,
Às vezes alegre, às vezes tristonho,
Com a alma festiva, às vezes abatida.

Velha seringueira, árvore centenária,
Foste derrubada, não tens esperança!
Hoje quando passo, me restam as lágrimas

A recordação, dos tempos de criança...
Mas vem-me à memória: tudo se acaba!
Das coisas da vida, ficam só lembranças.


QUERER
Prof. Freitas

Quisera eu, conquistar um amor
Que não duvidasse do meu coração
Que não me fizesse desgosto nem dor
Que me abraçasse com grande emoção.

Quisera eu, um anjo me amasse
Com tal ternura e felicidade
Sem magoar-me, nem tristeza causasse
Sem separação, pra me trazer saudade.

Quisera eu, esquecer os caminhos
Quando andei certo, ou se andei errante
Não sei se colhi flores ou espinhos

Só sei que devo prosseguir avante
Se acompanhado, ou mesmo sozinho
Se eu fique aqui, ou vou pra bem distante.


ESTE DIA
Prof. Freitas

Hoje acordei com saudade
Da brisa, da lua cheia
Do céu, das noites de estrelas
Das beija-flores de asas ligeiras
Das flores das cerejeiras.

Lembrei daquela noite fria
Da montanha, do vento gelado
Lembrei da música, da poesia
Das pedras cinzas, do céu recortado
Da tua presença que dava alegria.

Hoje olho o céu infinito
Nesta manhã quando o sol está branco
Que não tem luz nem tem calor
E meu coração exprime seu grito
Sentindo-se vazio sem o teu amor.
_______________________________________________________________________ 

LUÍSA GALVÃO LESSA – professora, pesquisadora e escritora. É pós-doutora em Lexicologia e Lexicografia pela Université de Montreal, Canadá; doutora em Língua Portuguesa pela Universidade Federal do Rio de Janeiro; mestra em Letras pela Universidade Federal Fluminense; membro da Academia Brasileira de Filologia e da Academia Acreana de Letras. Pioneira na Iniciação Científica na Universidade Federal do Acre, com quotas, via balcão, pelo CNPq (1989); autora do Centro de Estudos Dialectológicos do Acre; autora do Atlas Etnolinguístico do Acre; autora do Dicionário Termos e Expressões Populares do Acre (1985); autora do Glossário do Vale do Acre: látex e agricultura de subsistência (1996); e autora do Dicionário do Acre (2003).

QUANDO UM AMOR VAI EMBORA
Luísa Lessa

Quando o amor decide partir
Geralmente ele não consegue fingir
Ele segue sem olhar para o lado
Não deixa nenhum recado
E sai pelo mundo angustiado.
Quando ele descobre que chegou o momento
Não se apega a nenhum lamento
Esquece as memórias e histórias.
Não há nada que consiga prendê-lo
Nenhuma lembrança é capaz de detê-lo
Nada que o faça resistir e ficar.
Quando acontece de o amor acabar
Ele não avisa se um dia vai voltar
Tão pouco confidencia se vai renascer
Quando ele termina faz a gente sofrer.
Quando o amor escorrega por entre os dedos
Como mistério e com muitos medos
Ele não escuta os soluços, os apelos
Isso é sinal que ele se atropelou
Se rompeu, se partiu, se quebrou.
Então, quando o amor vai embora
Deixa uma ferida sangrando no peito
E uma esperança de ser um dia refeito.
Mas quando o amor foge para lugares distantes
Ele se perde em momentos intrigantes
Entre palavras e frases decepcionantes
Dando sinal que ele ficou fraco
Frágil, rasgado em farrapo.
Amor verdadeiro possui qualidade
Equilíbrio e quantidade
Tem muita sinceridade
É passivo nos estragos, mas com consertos
Pode esmorecer, mas sabe sobreviver.
Quando o amor vai embora
Ele parte com o peso dos ombros
É capaz de mover e remover os escombros
Sabe que chegou sua hora.
Quando o amor vai embora
Alguma cicatriz ele deixou
Algum arrependimento ficou
Sinal de tormenta restou
Assim como a dor
E soluços de lamento.
Mas aí vem o tempo
Grande amigo e companheiro
E faz parecer que nada foi verdadeiro
Cada segundo, cada hora e dia
O tempo segue e passa
Cada ano que se vai
Carrega consigo as lembranças
Leva na mala a tristeza, a desconfiança
Faz nascer nova esperança
Quando tropeça em outro amor
Esquece que viveu intensa dor.
Quando um amor vai embora
Significa que chegou a hora
De esquecer e apagar o passado
Olhar para o lado da vida que vai recomeçar
E um novo amor encontrar.


CAMINHANTE DA VIDA
Luísa Lessa

Caminhei pelo mundo,
Andei, naveguei, mergulhei,
Mais tarde aqui despertei
Não sei, não lembro aonde cheguei…
Só sei que caminhei à procura
De alguém, um lugar seguro,
Um coração valente, maduro…
Perambulei pelas incertezas da vida,
Vivi um dia a cada instante,
Um instante a cada dia...
No viver do passado que sorria,
Muitas noites perdi,
Em meio aos amores sofri,
Por paixões, encantos e ternuras…
Vi o rosto amado pelas ruas
Que ainda não esqueci...
Por muitos lugares naveguei,
Vivi outras paixões e pereci…
Mas nada adiantou
Deleitar em outros braços
As noites foram pueris,
Sonhei por onde passei...
Em lugar algum te achei,
Sempre tudo foi comum
Os dias quietos, sombrios,
As noites desertas, frias,
Não te encontrei em lugar algum...
Vou dormir sem a poesia dos cantos,
Encantos viris,
Sonhar no porvir,
Dias de outono que hão de vir,
O tempo que vivo sem ti...


A DESPEDIDA
Luísa Lessa

O amor quando chega acredita em eternidade,
Mas um dia se despede, vai por outra estrada
Não olha para trás, nem se despede
Leva no coração a mocidade
Parte, não fica, nada o impede.

O outro coração padece, mesmo em preces,
É o adeus...
Que deixa o peito angustiante,
No peito a dor dilacerante
O grito dos ais, dos lamentos agonizantes,
Dos instantes lacerantes.

De toda forma o Amor parte,
A despedida maltrata,fere, rasga o coração
A alma se rompe numa fração,
Corrompe-se, dilacera-se numa fração
É lâmina , navalha que sangra a afeição.
A alma sofre, chora, padece,
O coração se entristece,
Numa saudade que enternece,
Mas nada consola e o amor vai embora
O ser que fica compadece.

A despedida é triste,
É lástima, lágrima, drama
Pranto, sofreguidão,
É o adeus...
O desenlace de sentimentos,
A despedida de momentos,
De um tempo que não volta atrás
E um amor que não se esquece jamais.

O adeus é o desenlace
De sentimentos,
De presenças, lembranças, momentos.
O adeus é distância que se apresenta,
É a partida desesperada,
É o esquecimento...
Ou a lembrança do enlace
Que se foi em disparada.

A despedida,
Por mais lânguida, por mais que se evite,
É sempre triste.
São seres que se separam,
Que se partem,
Um amor que diz adeus,
São corações que pulsam, não param,
São vivências que se dissipam,
São vidas que se separam.

A despedida
É a tão evitada renúncia,
A tudo o que se pensava ter,
A tudo que se pensava viver,
Uma palavra balbuciada... ADEUS.
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JOSÉ LOPES MARQUES, natural de Tarauacá, é formado em Teologia pelo Seminário Batista do Cariri, em Filosofia pela Universidade Federal do Pará (UFPA), especialista em Ensino de Filosofia (UFC) e mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Ceará. Além disso, é professor de Filosofia da rede pública do Estado do Ceará e da Faculdade Batista do Cariri. É autor de Diário de Sonhos do Doutor Satírico (All Print, 2013).

O MONÓLOGO DO ZIGOTO
José Lopes Marques

É o Beta evidência do meu ser,
Neste mundo estou e dele ausente,
E o líquido amniótico envolvente,
Minha metamorfose a tecer

O meu grito ainda é tão silente,
Mas sou eloquente em meu dizer,
Tenho o véu placentário a me envolver
E nutrindo meu ser constantemente.

Sou a parte que ao todo contraria,
Meu crepúsculo vital e inquieto,
Tem na plena potência o seu guia.

Desconheço o nome predileto,
Mas sou batizado a cada dia
Por ovo-zigoto, embrião, feto.


SIMÃO CIRENEU
José Lopes Marques

Homem algum sua cruz quis carregar,
Por isso, forçaram um cireneu,
Onde estavam os dois de Zebedeu,
Para a dor de seu mestre aliviar?

Filipe, André e Bartolomeu
Fugiram espantados do lugar,
Simão, resoluto em seu negar,
E o Messias sozinho padeceu.

Vencido pela dor o Nazareno,
Já quase perdendo a sobriedade,
Precisa de auxílio do terreno.

Mas todos em sua crueldade,
Não fazem um gesto tão pequeno
Ao que levou a cruz da humanidade.


A INFINITA SOLIDÃO DA HORA NONA
José Lopes Marques

Três horas de densa escuridão,
E o Filho, no Gólgota, em agonia,
Desejou de seu Pai a companhia,
Consumido de extrema solidão.

Recusou fel e vinagre ao fim do dia,
Não bebeu esse anestésico vão,
Já que era a dor da separação,
Que à sua alma inquieta consumia.

Só, o Filho contempla a eternidade,
Vê distante seu único Semelhante
E, sozinho, carrega a iniquidade.

Vendo o seu desamparo lancinante,
Grita a dor que sua alma inteira invade,
Dor infinda sentida em um instante.