segunda-feira, 10 de maio de 2010

CAPIONGO: ROMANCE DA AMAZÔNIA ACREANA

Isaac Melo


O romancista não é um historiador nem profeta, assevera Milan Kundera, ele é um explorador da existência. É assim que se apresenta José Inácio Filho, um explarador da existência do homem seringueiro em seu Capiongo. Publicado em 1968, no Rio de Janeiro, Capiongo – Romance da Amazônia Acreana é o único romance de José Inácio Filho. Integra a lista dos poucos romances editados fora do estado, num momento de escassas publicações romanescas na literatura acreana.

Na ordem cronológica das obras do autor, Capiongo é seu segundo livro. A estreia foi com Fatos, Cultos e Lendas do Acre, que veio a termo em 1964, composto por 27 narrativas, que vão desde a descrição de algumas lendas regionais a relatos de alguns animais e aves que povoam o imaginário popular pelo seu caráter supersticioso. Termos e Tradições Populares do Acre, de 1969, uma espécie de dicionário que congrega palavras e expressões típicas do Acre, encerrou a trilogia de livros com temáticas acreanas do autor.

José Inácio Filho reside atualmente no Ceará, onde é membro da Associação Cearense de Escritores. Lançou em Junho de 2009, no Centro Dragão do Mar de Arte e Cultura de Fortaleza, o livro de poesia "Canta Musa meus Versus e Rimas", obra que se abre num universo mágico de muitos personagens lendários e de diversas culturas, como Iracema, Uirapuru e o Boto Encantado, etc. Além desses livros, José Inácio escreveu: O bb e eu (RJ, 1975) e Vocabulário de termos populares do Ceará (CE, 2001).

O enredo de Capiongo se desenrola assim: Timbaúba, ou seu Timba como é chamado, é um experiente seringueiro respeitado por todos, muito estimado pelas crianças e que, apesar da idade, ainda desperta a admiração das mulheres. É casado com dona Guarabira, que morre de parto ao conceber seu único filho, Capiongo, cujo nome empresta a esse livro.

Sozinho o velho Timba se casa novamente, agora com dona Bebé das Brecas, esta desde a morte de Guarabira passou a morar com ele, e tomou para si os cuidados para com Capiongo, a quem estima e zela como filho. Capiongo, o filho tristonho das selvas, é como que uma repetição do pai num mundo sem grandes perspectivas e fadado a uma existência afogado na selva. Um dia Capiongo recebe a notícia da morte de seus pais afogados no rio. Agora é o seu drama a desenrolar-se. Tem a vida e os ensinamentos do velho Timba para garantir-lhe a sobrevivência na selva selvaggia.

Capiongo é um romance com características bem diferentes daqueles que comumente tenho me deparado. A maior parte dos diálogos é, paradoxalmente, intimista, isto é, de si para si. E porque não dizer uma obra filosófica, já que discorre a maior parte, não conceitualmente, sobre o sentido da existência humana, onde a luta física travada pelas personagens contra o próprio corpo pode ser entendido como a luta da vida frente às constantes situações de morte. Há certa dose de melancolia na narrativa, mas tão somente devido à melancolia da selva, fruto da monotonia de paisagens, sons e cores.

Há, no romance, um linguajar bem característico do acreano interiorano, com palavras como: mucumbu (anca, traseiro); tibungadas (pular n’água); casco (pequena embarcação feita do tronco de árvores); cangapé (estrepolia, pular); caicos (peixe pequeno); espinhel (instrumento utilizado para pesca atado de vários anzóis); coivara (galhos que não foram de todo queimados em um roçado). E expressões como “espinho que pinica de pequeno já trás a ponta”. São essas peculiaridades que faz com que Capiongo, embora razoavelmente pequeno, mereça figurar entre as obras de relevância literária para nossa história.

É mais uma obra que enriquece nossas letras, de um devotado acreano de Brasiléia, gerado desse chão, dessas águas e dessas matas e que encontrou na própria vida o enredo para muitos das alegrias e dramas de seus personagens. Com seu pequeno romance José Inácio Filho nos colocou frente a frente com um dos maiores e mais intrigantes dramas do ser humano, a morte. Todavia, só está passível de morte aquele a quem foi dado a vida. Esta, longa ou breve, útil ou medíocre, uma vez realidade, não há como negar ou anular seu existir. Escreveu a sua linha no compêndio inacabável do universo.

quarta-feira, 5 de maio de 2010

O CONCEITO ATUAL DE FILOSOFIA

Profª. Inês Lacerda Araújo**


Desde os primeiros filósofos até o século 19, portanto, até o início da modernidade, a filosofia tinha uma missão de ordenar e de fundamentar todos os conhecimentos. Aristóteles a considerava como a “rainha das ciências”. Para Descartes a metafísica era a raiz do saber. Para Kant a razão era suprema. Desse modo a filosofia poderia ser a base para ciência, a moral, o direito.

Atualmente, a maioria dos filósofos considera que ela colabora com todos os saberes. Não há mais uma concepção dogmática e impositiva: se os conceitos nascem de uma cultura e de uma história, a tarefa filosófica é a de pensar a diversidade das culturas em colaboração com a arte, a moral, o direito, as ciências.

Nossa época, a época da modernidade possui estruturas de racionalidade próprias, como a informação e a ciência; possui uma ética descentrada (não mais ditada pelas religiões), pluralismo de credos e ideias, um saber científico renovável, autonomia na arte e no direito.

A filosofia pode e deve fazer a mediação entre esses saberes, ensejar o diálogo entre eles sem pretender totalizá-los em uma única grande teoria que pudesse explicar o real de modo certo e indubitável.

Essa nova perspectiva leva a filosofia a fazer uma leitura de nossa época e propor caminhos alternativos para que se possa pensar com autonomia, liberdade, ampliando e renovando as experiências com o mundo. É um importante instrumento para pensar nossos problemas e dificuldades. Quando se questiona como e por que tal ou tal saber foi produzido, tal ou tal conceito é usado, o pensamento como que se ilumina, surgem novas ideias, mais criativas.

Ainda assim, há culturas e sociedades até hoje fechadas, impermeáveis, sectárias. Pense no Irã, no fundamentalismo islâmico, ou nos ditadores de alguns países africanos e de alguns vizinhos nossos, risíveis e farsescos, nem por isso menos perigosos.

Enfim, a filosofia pode mudar o modo de ser e de pensar de uma pessoa, e, às vezes, de toda uma cultura.

"Eu discordo de que haja um conceito ideal de exatidão dado a priori, como tal. Em épocas diferentes nós temos diferentes ideais de exatidão; e nenhum deles é supremo". (Wittgenstein)

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**INÊS LACERDA ARAÚJO, filósofa, autora e organizadora, entre outros, de Temas de Epistemologia (Editora Champagnat - PUCPR, 2006)

segunda-feira, 3 de maio de 2010

MENINO DE SERINGAL

Meu pai, Zé Lima, foi seringueiro nas cabeceiras do rio Tarauacá, num seringal chamado Boca de Pedra, quando Melo, nosso primo, era o seringalista. Nunca estive naquelas paragens, mas ouvia, saudoso, meus pais a ela se referirem. Tempos difíceis. Minha mãe nasceu por aqueles lados. Lá nasceram também meus primeiros irmãos. E lá moravam os pais de minha mãe: Hibernon Alves de Melo, grande conhecedor da medicina natural, e Maria Engracia de Melo.

Já eu nasci no seringal Sumaré, quando era seringalista o sr. Luis Madeiro, meu avô (de criação). Meus pais compraram um pedaço de suas terras, à margem esquerda de quem sobe o rio, e foi aí que passei toda a infância e parte da adolescência. Esse seringal distava quase três dias de viagem da cidade de Tarauacá.

Ali, pela primeira vez, sentei num banco de escola. A professora chamava-se Célia Moura, filha do saudoso Chico Crente, que era nosso vizinho. Mas, digamos que eu era um aluno não muito afeito aos estudos. Gostava mesmo era de ir tirar goiabas, comer cereja, me fartar de cajarana. A casa do seu Chico era cercada por fruteiras, um paraíso para a criançada. Um paraíso que a gente suava para chegar, já que era em cima de uma enorme terra. Lá de cima via-se o marulhar das águas do rio das tronqueiras a denunciar quem nele vinha na volta de cima ou na de baixo.

Menino de seringal é menino besta. Eu era besta de feliz. Aquelas confusões no caminho da escola de volta p’ra casa. Inda bem que eu tinha um irmão maior. Naquele tempo ter uma borracha de apagar colorida era um luxo, p’ra mim, o que me fez recusar, certa vez, uma ‘borracha’ feita de um pedaço de sandália havaianas. Não, eu queria aquela de duas cores, e inteira. E ficou só no desejo. É, talvez, como castigo me vestiram em outra ocasião, no caipira, de saci, me pintando todinho com cinza de toco chamuscado de roçado.

Ainda no seringal eu não sabia ler, mas gostava de acompanhar o meu irmão mais velho, quando mexendo em seus livros, lia alguma coisa p’ra nós. Ele era o mais estudado da família. Com ele havia um livro com a pintura O Grito do Ipiranga (1888) de Pedro Américo. Eu tinha pavor daquela imagem, representava para mim a guerra, o mundo desconhecido e mal que havia para além da tranquilidade da floresta, então, meu único mundo, seguro e bom. Sei lá como fiz essa alegoria.
O Grito do Ipiranga (1888) de Pedro Américo

As circunstâncias me levaram para a cidade, juntamente com alguns de meus irmãos. Lá reiniciei meus estudos na Rousara Mourão da Rocha, e aprendi a ler e nunca mais parei. Essas reminiscências servem para dizer da minha paixão pelos livros e, de modo especial, pela literaura de cepa acreana.

Gibran, notável poeta sírio-libanês, já dizia que razão e paixão são os lemes e as velas de nossa alma navegante. Não somos só razão. Somos também seres de múltiplas paixões. Já li centenas de livros e parece que foi um apenas. Primeiramente, as fascinantes histórias dos livros didáticos, os gibis (claro emprestados e velhos), a Bíblia a quem devorei de cabo a rabo algumas vezes ainda na adolescência. Depois, com o suceder dos anos e da escola, literatura em geral, sobretudo poesia.

Foi José Potyguara, com seu Terra Caída, quem me implantou o gérmem inicial da magia pelas letras acreanas. Isso com a inestimável contribuição das obras de Leandro Tocantins, alcançando seu ápice com José Higino de Souza Filho em A Luta Contra os Astros. Desde então, tornei-me uma alma acreana a espalhar esse gérmem a quantos for possível. E considero-me, em meu neologismo, um acreanófilo, isto é, alguém que estuda sua terra, sua cultura, sua gente, não por querer satisfazer necessidades acadêmicas ou intelectuais, mas por amor.
Há alguns anos venho remexendo sebos e realizando pesquisas na internet em busca das obras acreanas “perdidas”. E, assim, tenho montado uma pequena biblioteca de títulos acreanos e temas amazônicos que se assemelham, hoje já com modestos 91 livros, dentro os quais a maior parte rara e de primeira edição. Nessa miscelânea, para se ter uma ideia, há a obra completa de José Potyguara, as edições fac-similadas de Álbum do Rio Acre (1906-1907), Autonomia Acreana (1913), A Primeira Insurreição Acreana (1904).

As primeiras edições de A Represa (1942) de Océlio de Medeiros, A Epopéia Acreana (1939) de Freitas Nobre, Certos Caminhos do Mundo: romance do Acre (1936) de Abguar Bastos, Folk-lore Acreano (1938) de Francisco Peres de Lima, Ressuscitados: romance do Purus (1938) de Raimundo Morais, Capiongo: romance da Amazônia Acreana (1968) de José Inácio Filho, Letras da Amazônia (1938) de Djalma Batista, O Estado Independe do Acre e José Plácido de Castro (1930) de Genesco de Castro, Os Assassinos do Cel. Plácido de Castro (1916) de Orlando Correia Lopes. Além de obras como a 2a. edição de Inferno Verde (1916) de Alberto Rangel, Histórias Silvestres do tempo em que Animais e Vegetais Falavam na Amazônia (1939) de Raimundo Morais, O Memorial em Prol dos Acreanos (1906) de Gumersindo Bessa, etc. Grande parte já resenhada e disponibilizada neste blog.

O meu sonho é também o de meus pais. Estes nunca aprenderam a ler, mas fizeram de tudo para que seus filhos não repetissem suas sinas. E, dessa forma, sigo em meu desvario de menino besta de seringal, às vezes, acompanhado, mas ainda a fazer a maior parte do caminhar como viandante solitário, cumprindo minha missão, no breve peregrinar por esse mundo, de viver para fé e com os livros...

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Foto: Angela Peres/Secom