Leila Jalul
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Foto: Vássia Silveira |
Se Neruda viveu, também eu confesso que vivi.
Talvez não com a mesma qualidade, mas vivi. Revendo a trajetória, não hei de
afirmar, em hipótese alguma, ter andado em linha reta e numa superfície plana.
E os buracos, como negá-los se fundos eram?
Andei muito nestas seis décadas. A vida
correu e as transformações foram galopantes e sentidas. Considero-me um ente
que viveu momentos semelhantes aos homens das cavernas que acompanharam a
passagem das pedras lascadas para as polidas. E não só isso. Passei pelo Henê
Maru até chegar ao encantamento da chapinha e da escova definitiva, sem
esquecer a escova de chocolate branco. Andei pelo arcadismo até chegar ao
concretismo impiedoso. Valsei valsas tristes até assistir a cachorrada do funk
das cachorras. E me pergunto: quanto tempo passou do rádio amador, do velho PX,
até à internet? Quem quiser que me leve a sério, o certo é que fui do mimeógrafo
alcoolizado ao estêncil eletrônico em muito pouco tempo, até que me fosse
instalada uma impressora que faz dez cópias por segundo.
Na música soube apreciar muita gente boa.
Pixinguinha, Cartola, Clementina de Jesus, Noel e tantos outros pouco
lembrados. Falar das belezas diferentes das composições de Ataulfo Alves e de
meu Cazuza não é problema. Coisas boas são perenes e não deveriam ser medidas
com simploriedade. Cazuza não elimina Ataulfo, porquanto ambos são poetas de
enormes qualidades. O que me mata é o que morre na memória da ingratidão. O que
me desgasta é ver a morte repetida do que deveria estar vivo e pulsante. Viva
Ataulfo! Viva Cazuza! Viva Cruz e Souza! Viva Saramago! Viva Patativa do
Assaré!
Perambulando e preambulando, gastando letras
e sofismando, quero mesmo é falar de Rossycléia, filha de Rossyni e de Cléia Maria.
Preciso comparar mais o ontem e o hoje até chegar ao fato bem passado ou al dente, ainda que seja com esta minha
forma embolada de escrever. Vamos lá!
Todos sabemos que virgindade é coisa de
antanhos e de pouca aplicação prática na atualidade. Parodiando alguém, o beijo
na boca é coisa do passado. A moda agora é namorar pelado. Nos idos e na
peregrinação pelo tempo, também participei, pasmem, dos concursos de beleza.
Através das qualidades de ser senhorinha da sociedade, fui, por umas poucas
vezes, indicada a analisar os dotes das belezas do certame do Miss Acre e, como
dizem presentemente, atuar como gerente operacional deste processo de
empoderamento. Um dos principais e eliminatórios requisitos para a conquista do
ambicionado título era a virgindade, além da graça e beleza, claro!
Num ano qualquer, décimo sexto ou sétimo de
minha andança, estava eu, pela gerência, analisando os interiores e exteriores
de Rossycléia e de mais outras seis pretendentes ao título do “Misacre”.
Imaginem num consultório médico sete meninas à espera de serem vistas de baixo
para cima pela ginecologista até receberem a constatação de que ali, na entradinha
das salas de festas, havia uma pequena capinha de pele que desanuviava qualquer
dúvida sobre o sim ou não. Loucura! Loucura! Frisson, frisson! Momentos tensos.
Uma delas, tadinha, a primeira, não recordo se representante da terra do
Abacaxi Gigante ou se a da Terra dos Náuas, tinha uma ziquizira na região
alfandegária. Nada levava a crer ou a constatar que tivesse andado bolinando
com alguma coisa reimosa e infectante.
Quem conhece a capa da graviola vai saber,
com certeza, ao que me refiro agora. Quem não conhece a graviola, basta
lembrar-se da “táuba de tiro ao ál-varo”, entendem? Umas pipoquinhas com relevos,
declives e granulados, compreendem? Ó, Jesus!
A doutora nem ligou para isso. A pelezinha
fundamental estava lá, intacta e reluzente. Feito o relatório, inconclusivo,
por sinal, passou para o Carlão, public
relation do certame. E não é que a suspeita dos estafilococos vazou?
Caraio! Caraio! Caraio! Relações públicas ou língua de trapo? A segunda, a
senhorinha Rossycléia, entrou triunfante. Ciente e consciente que nunca havia
pecado con-tra a castidade, deitou na caminha, elevou as perninhas e, entre
gritinhos, sai aprovada no todo e nas partes. Tudo em ordem no reino da
Dinamarca. E assim com as demais. Exceto a ressalva à das bolhinhas, todas
tinham lacre e certificado de garantia.
Na parte da tarde, no salão da Verinha, fechado
e exclusivizado para as finalizações das maquiagens e cabelos, só fofocas e mais
fofocas. Miss Capital, a favorita, cochichava com a Miss Sena Madureira, a
terra dos Mandins. O que seria?
Quem não quiser esquecer o passado, que
relembre agora. Os penteados de antigamente eram coques recheados de tudo o que
fosse possível para aumen-tar o volume dos cabelos e camuflar a altura das baixinhas.
Testas lisas até a metade da cabeça e, na parte posterior, enormes cachos tipo
os das cabeleiras dos juízes da câmara dos lords.
Lembraram? Hoje os cabelos são longos, lisos, fartos, pranchados. Umas modas
vão e voltam. Outras desaparecem de vez. Graças aos céus!
Rossycléia era, se não me falha a memória, a
de mais baixa estatura. Não foram poupados alguns roletes de Bombril até que
atingisse os 1,65 cm desejáveis. Atenta e vigilante aos truques e ao
comportamento das meninas, não pude deixar de ouvir um comentário da dona do
salão sobre uma falha nas madeixas da moça. Um círculo sem cabelos e com um pruridozinho
leve. A micose era conhecida por “tinha”. Não sei o nome certo dado nos
compêndios médicos. No vulgar a gente também conhecia por “pelada”. Na hora de
rechear a região da “pelada” houve uma preocupação. Ora, se aquilo purgava,
como lascar Bombril, enrolar os cachos e sapecar laquê de goma arábica? No vale
tudo pela beleza a obra foi executada. Rossycléia cresceu bastante. E
desfilaria garbosa, graciosa e peituda. Faria o pivô direitinho. Pareceria
gente!
Chega a hora do concurso. No estádio José de
Melo, camarins, luzes, passarela, palco com instalação para a apresentação do
conjunto Os Bárbaros, comissão julgadora presente e tudo o mais necessário para
a noite inolvidable. Circo montado.
Microfonias à parte, uma grande festa. Das Dores, num longuete preto e
reluzente, cantava El Reloj, La Barca
e outras emocionantes páginas do cancioneiro latino americano. O conjunto era bom
demais da conta. Muita boleragem e baladas intercaladas com o repertório dos
Beatles. Hey Jude... Tinha até pout-pourri de canções italianas. Cada
candidata tinha sua música preferida para o desfile. Tanto quanto o livro de
cabeceira das beldades era O Pequeno
Príncipe, a música preferida era Aquarela
do Brasil.
No final dos remelexos, da exibição dos
trajes típicos, de gala e de maiôs Catalina, o veredicto: Miss Capital em primeiro
lugar, Miss Terra do Abacaxi Gigante em segundo e Miss da Terra dos Náuas em
terceiro. Para Rossycléia, o muito justo, merecido e gracioso prêmio de
consolação de Miss Simpatia. E foi aí que começou a fuzarca. Rossycléia perdeu
toda a simpatia que estampava. Aos berros, dizia que houve marmelada. Que
merecia o segundo lugar, haja vista que uma das ganhadoras estava apinhada de
doença da vida. Um absurdo, vociferava. Foi difícil conter os gritos da filha
de Rossyni, mas, com tirocínio e bom senso de gerente da comissão organizadora,
não poderia deixar que o certame fosse manchado com um escândalo. Contive o
arranca-rabo. Numa linguagem mais contemporânea, abafei o caso.
Pajeei Rossycléia, cerquei-a de carinhos e
compreensão. Acabei com a rebelião. Mandei que fossem retocados cabelos e
maquiagens para as fotos oficiais. Misses, prefeitos e primeiras-damas deveriam
sorrir desbragadamente para o fotógrafo Cornélio. Tudo deveria parecer, tanto
quanto possível, flagrantes de felicidade da vida irreal. As fotos, após a
revelação, eram enquadradas em pequenos slides,
colocadas em monóculos (os maiores disseminadores de conjuntivite que conheci),
separados por município e embiricicados num barbante. Os prefeitos mais ricos
mandavam fazer álbuns, hoje apelidados de books.
Era a forma de todos os munícipes saberem, em P&B e em colorido embaciado,
como estavam suas representantes no grande dia. Uma trabalheira suada!
Não perdi Rossycléia de vista. Após a sessão
de fotos parecia sentir uma grande dor na c’roa. Cheguei perto para saber. Era
o Bombril que a incomodava, coisa que tratei logo de resolver, providenciando o
desmanche dos cachos para a retirada do enchimento. O que vi não vou saber
descrever com a mesma dor. A “tinha” ou “pelada” estava em carne viva. As mechas
e fiapos do polidor de panelas grudaram no couro como se dele fizessem parte.
Naquele momento a perda do título deixou de ser o problema maior. A dor era
lancinante. A lesão exigia urgentes cuidados. Hora de acionar a médica do
concurso, a mesma do atestado de virgindade. O que deveria ser uma grande noite
terminou com a aplicação de muita água oxigenada volume 10 no cocuruto de
Rossycléia, até que fosse retirado o último fiozinho de aço do Bombril. Pensem
naquela água efervescente roendo os miolos da coitada... Quase chorei.
Não vejo e pouco ou nada sei sobre concursos
de misses do agora. Não têm mais tanto glamour
e nem atraem a opinião pública nacional como nos tempos da Martha Rocha.
Acredito, no entanto, que a vaidade, os interesses políticos e os fuxicos de bastidores
permanecem como dantes. Sem Bombril, naturalmente!
É, sei que Neruda não se meteu nessas canoas
furadas. Mesmo assim, confesso que vivi.
JALUL, Leila. Das cobras, meu veneno. Edição
independente, 2010. p.20-26