PORONGO
Paulo Bentes (1908-1979)
O Porongo ficou dependurado no moirão
do meio do terreiro.
Choveu muito à noite.
Eu ouvia o barulhinho da chuva
acariciando o telhado da casa
e
achando bonita a cantiga da água caindo,
parecia ver,
lá fora,
no campo,
as árvores esparsas se lavando
e o capinzinho alegre e novo
tomando banho...
Corriam
as horas....
A
chuva continuava caindo...
Da minha rede eu julgava
que a chuva
que o céu chorava
no lenço escuro da noite
havia de entrar pela terra,
secando,
nada restando mais
pela manhã...
dia.
Despertei.
Olhei
tudo ao redor da fazenda:
Vi
o campo verde
todo
molhado
e
no terreiro lavado
o
porongo cheio... cheio...
cheio de pingos de chuva
que são entornados agora... p.11-12
CANARANA DA BEIRA DO RIO
Paulo Bentes (1908-1979)
Canarana bonita
que na beira do rio
cantas
no teu chiado alegre
quando passa o vento...
És a alegria
das jaçanãs ligeiras
que procuram
à sombra amena
das tuas moitas
um abrigo feliz
aos seus amores...
Tu és tão boa
canarana bonita...
Vives fazendo o bem
e os barrancos te querem
como quê...
Mas um dia vem o rio
brutal
numa carreira louca
procurando o mar...
e sem ver o que faz
vai arrastando tudo...
indiferente e forte
passa
quebrando
e levando consigo
o barranco partido...
O rio leva tudo.
O rio come tudo.
Nunca está satisfeito...
E assim
canarana
a cidade tão verde
que tu fazes
bonita
na beira do rio,
lá se vai
na corrente...
Lá se vai... na corrente... p.27-29
A LANCHA CAURÉ
Paulo Bentes (1908-1979)
Tam-Tam
Tam-Tam...
Tam-Tam
Tam-Tam...
Café com pão
Bolacha não...
É esta a cantiga
da lancha “Cauré”.
Fungando
roncando
riscando
a corrente,
a lancha possante
fumando o charuto
da sua chaminé,
lá vai arrastando
sem pressa nenhuma,
reboques em linha
que vão arranhando
de leve,
de leve
o dorso do rio...
Chiiiii...
Começam cantando
os louros bigodes
das águas brilhantes
no escudo das proas
das rasas canoas...
As máquinas vibram
pingando suor
e dando mais força,
lá vai a cantiga:
Tam-Tam
Tam-Tam...
Tam-Tam
Tam-Tam...
Café com pão
bolacha não...
Café com pão
bolacha não...
A cadência
é certa.
É o batuque
das máquinas
pretas como carvão...
E assim
anda
anda...
De repente
gritos da popa:
Para!
Paara!..
P-a-a-a-ra, diabo!..
Olha a canoa!...
Logo em cima do rebojo!
Tlim...
Tliiim...
Param as máquinas.
“O que foi?”
“O que não foi?”
Quebrou o cabo!
A caboclada
das canoas que ficaram
sozinhas
no meio do rio
rema.
Anda com isso
diabo!
Rema!
Diabo de gente mole!
Amarra, amarra logo!
Aparece sempre um cabo mais forte
e
lá se vai novamente
a lancha da linha
puxando as fieiras
compridas
de reboques,
cheios de leiteiros
e roceiros...
Tlim...
Tliiim...
Tliiim...
E começa de novo
a cantiga tão certa
de batuque...
Tam-Tam
Tam-Tam...
Tam-Tam
Tam-Tam...
Café com pão
bolacha não...
Café com pão
bolacha não...
Chiiii...
Cantam
os bigodes
dourados
das águas...39-43
MURURÉ
Paulo Bentes (1908-1979)
Ó mururé bonito
que passas
deslizando
na corrente veloz
dessas águas barrentas
que retalham
a terra verde
onde nasci...
Porque
confias tanto assim
nos caprichos
dessa estrada larga
que corre,
te arrastando
a um destino
que não conheces?
És tu,
“nimphea alba”,
como certas criaturas
que passam pela vida
sem lutar...
Que indolentes
se entregam
a um destino qualquer...
Que confiam demais...
E assim vão descendo...
Vão descendo
o rio grande
da Vida,
passando ligeiro
como a galera
aprisionada,
que perdeu
a bandeirinha
verde
da esperança...
e que passa,
como tu
mururé
que és bem um símbolo,
ostentando
no tope
a flor
aberta ao vento...
Flâmulas lilás
da Resignação... p.47-49
CASA DE FARINHA
Paulo Bentes (1908-1979)
Na casa de farinha
que o velho meu avô mandou fazer,
toda coberta de palha,
embarreada
e agora esburacada,
velhinha,
a roda grande gira,
gira,
manhosamente.
Caboclo forte
espadaúdo
automaticamente
mecanicamente
a faz girar...
Na casa de farinha
a roda grande
que faz o fubá,
rodando
rodando
manhosamente,
parece tanto com a nossa vida...
parece tanto com a minha vida...
Caboclo forte
espadaúdo,
neste caso é o Destino
que não se cansa
de rodar...
Que não se lembra
de parar...
E a roda segue
girando sempre
girando sempre
monotonamente...
manhosamente...
monotonamente...
manhosamente...
....................................................
Eu olho atento
a roda grande
que gira
gira
manhosamente
e fico achando
tão parecida
tão parecida
com a nossa vida...
Com a minha vida... p.61-63
RIO CHEIO
Paulo Bentes (1908-1979)
Rio cheio.
Tudo coberto dágua.
Os campos
que eram verdes,
tão verdes,
estão escondidos
debaixo
do lençol ondulante,
cor de barro.
O gado que vivia solto
pelos campos largos,
claros,
inundados de sol,
está trepado
nas “marombas” altas.
Magro.
Zangado.
Comendo ração pequenina.
Os moradores da zona alagada
ficam presos na barraca.
Ficam presos
ilhados
tudo é água
ao redor.
A barraca
na enchente,
é “maromba”
de gente...
Quanta vez até isso
o guloso do rio
vai levando também...
Rio guloso
faminto
come tudo o que pode:
Come barraca,
lambe a roça
já crescidinha,
devora os campos,
engole barranco...
e vai embora...
Depreda
e vai passando.
Fugindo
pra longe...
Deixando atrás
tudo vazio...
Vazio... p.87-89
AMANHECER
Paulo Bentes (1908-1979)
Cinco da manhã.
O galo canta
no meio
do terreiro...
As ovelhas mansinhas
fazem coro
no curral distante.
Lá fora
escuro ainda...
Noite que se vai embora
de mansinho,
se arrastando,
mostrando uma vontade
louca
de ficar...
Mas a vez é do sol
que vem chegando,
medroso
ainda,
espiando por cima
das árvores imóveis,
clareando,
mostrando devagarinho
o dia
que quer entrar...
O capim
todo branco
molhado do orvalho
que a noite chorou.
O rio
grande
se espreguiça...
O urucuzeiro carregado
salpica
um pingo de sangue
na parede verdíssima
da mata.
A fazendo Alegria
abre os olhos
ao dia.
É hora:
levanta-se o pessoal.
Prepara-se o café,
o beijú
o mingau.
No terreiro
as cunhãs:
Tuc-Tuc-Tuc...
batendo no fundo das cuias...
As galinhas avançam:
é o milho.
Os caboclos saindo
em busca dos roçados,
levam longos terçados
e cambitos nas mãos...
Os porquinhos gordinhos
grunhindo
correm
irrequietos,
e no alto das bananeiras
os papagaios
discursam.
Os moleques em bando
correndo
gritando
vão pra beira do rio
carregando porongos...
Tudo agora é atividade.
Ruído.
Tudo trabalha
e faz o seu pedaço
de barulho...
É quando o sol
perde o medo
e levanta-se
espancando
as últimas neblinas.
Fica tudo dourando...
Cheio de luz... p.117-120
AMAZÔNIA
Paulo Bentes (1908-1979)
No isolamento dos grandes desertos,
no meio das águas
e das florestas,
o neto dos índios
está fazendo
um Mundo... p.123
BENTES, Paulo. Porongo. Rio de Janeiro:
Irmãos Pongetti Editores, 1940.
PAULO de Meneses BENTES
nasceu em Manaus-AM no dia 19 de agosto de 1908, filho de Antônio da Gama Bentes
e de Ester de Meneses Bentes. Advogado, engenheiro agrônomo, e deputado federal
pelo Pará e pelo Amazonas, Paulo Bentes foi ainda jornalista, escritor e poeta.
Foi membro fundador da Academia Acreana de Letras e da Academia Carioca de
Letras e pertenceu à Associação das Academias de Letras do Brasil e à Sociedade
de Homens de Letras do Brasil. Foi diretor da Superintendência de Valorização
Econômica da Amazônia (SPVEA), da Colônia Agrícola Nacional do Pará, da
Fundação Zoobotânica de Brasília e da Colônia Agrícola de Jaguaquara, na Bahia.
Foi também procurador da Justiça Eleitoral no Acre e fundador da Legião
Amazônica, entidade destinada à defesa dos recursos naturais da região. Faleceu
no Rio de Janeiro em 5 (ou 6) de dezembro de 1979. Era casado com Carmem
Dolores de Sisnando Bentes, com quem teve seis filhos. Além de lançar as
revistas Academia de Letras do Acre e
A Selva, publicou várias obras sobre
a Amazônia, entre as quais O outro Brasil,
Tavares Bastos e a Amazônia, Parongo e A hiléia.