Magma é a única obra de poesia de Guimarães
Rosa (1908-1967), com a qual ganhou o prêmio da Academia Brasileira de Letras
do ano de 1936. Mas o livro só veio a público 61 anos depois, em 1997, lançado
pela Editora Nova Fronteira.
A IARA
Bem baixo das colinas de ondas verdes,
onde o o sol se refrata em agulhas frias,
descem todas as sereias dos
mares e dos rios,
irreais e lentas, como
espectros de vidro,
para os palácios de
madrépora de Anfitrite,
em vale côncavo,
transparente e verde,
num recanto abissal, como
uma taça cheia,
entre bosques e sargaços,
espumosos,
e rígidos jardins
geométricos de coral...
Por entre os delfins,
sentinelas de Possêidon,
afundam, suspensas, soltas,
como grandes algas,
carregando os jovens
afogados:
Ondinas das praias,
flexosas,
Nixes da água furtacor do
Elba,
Havefrus do Sund e Russalkas
do Don...
Loreley traz no esmalte doce
dos olhos
duas gotas do Reno...
E Danaides laboriosas se
desviam dos cardumes
de Nereidas,
que imergem, ondulando as
caudas palhetadas
dos seus vestidos justos de lamé...
Mas a Iara não veio!...
Mas a Iara não vem!...
Porque Iara tem sangue,
porque a Iara tem carne,
sangue de mulher moça da
terra vermelha,
carne de peixe da água gorda
do rio...
Iara de olhos verdes de
muiraquitã,
cintura pra cima de cunhantã
cintura pra baixo de
tucunaré...
que veio, dormindo, Purus
abaixo,
filha do filho do rei dos
peixes
com uma índia branca Cachinauá...
Lá bem pra trás da boca
aberta do rio,
onde solta seus diabos
o bicho feroz da pororoca,
ela ficou, cheia de medo,
brasiliana, tapuia, morena,
Tão orgulhosa,
que não quer ser desprezada
pelas outras...
E a Iara é preguiçosa,
tão preguiçosa,
que não canta mais as trovas
lentas
em nheengatu :
– “Iquê, ianê retama icu,
Paraná inhana tumassaua
quitó...”
Nem mais se esforça em
seduzir
o canoeiro mura ou o
seringueiro,
meio vestida com a gaze das
águas ,
na renda trançada dos
igarapés...
E eu tenho de chorar:
– “Enfeitiça-me, ó Iara,
que eu vim aqui pra me
deixar vencer...”
Mas custa-me encontrá-la,
e só à noite sem bordas
dessas terras grandes,
quando a lua e as ninféias
desabrocham soltas,
posso beijá-la,
nua,
dormida,
esguia,
bronzeada,
oleosa,
na concha carmesim de uma
vitória-régia,
tomando o banho longo
de perfume e luar... p.16-19
SONO DAS ÁGUAS
Há uma hora certa,
no meio da noite, uma hora morta,
em que a água dorme. Todas as águas dormem:
no rio, na lagoa,
no açude, no brejão, nos olhos d'água,
nos grotões fundos.
E quem ficar acordado,
na barranca, a noite inteira,
há de ouvir a cachoeira
parar a queda e o choro,
que a água foi dormir...
Águas claras, águas barrentas, sonolentas,
todas vão cochilar.
Dormem gotas, caudais, seivas das plantas,
fios brancos, torrentes.
O orvalho sonha
nas placas das folhagens.
E adormece
até a água fervida,
nos copos de cabeceira dos
agonizantes...
Mas nem todas dormem, nessa hora
de torpor líquido e inocente.
Muitos hão de estar vigiando,
e chorando, a noite toda,
porque a água dos olhos
nunca tem sono... p.66-67
REPORTAGEM
O trem estacou, na manhã
fria,
num lugar deserto, sem casa
de estação:
a parada do Leprosário...
Um homem saltou, sem
despedidas,
deixou o baú à beira da
linha,
e foi andando. Ninguém lhe
acenou...
Todos os passageiros olharam
ao redor,
com medo de que o homem que
saltara
tivesse viajado ao lado
deles...
Gravado no dorso do bauzinho
humilde,
não havia nome ou etiqueta
de hotel:
só uma estampa de Nossa
Senhora do Perpétuo Socorro...
O trem se pôs logo em marcha
apressada,
e no apito rouco da
locomotiva
gritava o impudor de uma
nota de alívio...
Eu quis chamar o homem, para
lhe dar um sorriso,
mas ele ia já longe, sem se
voltar nunca,
como quem não tem frente,
como quem só tem costas... p.68-69
AUSÊNCIA
Na almofada branca,
as sandálias sonham
com a seda dos teus pés...
Partiste...
Mas a alegria ainda ficou no quarto,
talvez no ninho morno, calcado por teu corpo
no leito desfeito...
Entardece...
Esfuziante e verde,
um beija-flor entrou pela janela.
(Pensei que a tua boca ainda estivesse
aqui...)
Do frasco aberto,
vestidas de vespas,
voam violetas...
E na almofada de seda,
beijo as sandálias brancas,
vazias dos teus pés. p.90
Claridade quente da
manhã vaidosa.
O sol deve ter posto
lente nova,
e areou todas as
manchas,
para esperdiçar luz.
Dez esquadrilhas de
periquitos verdes
receberam ordem de
partida,
deixando para as araras
cor de fogo,
o pequizeiro morto.
E a árvore, esgalhada e
seca, se faz verde,
vermelha e castanha,
entre os mochoqueiros,
braúnas, jatobás e
imbaúbas do morro,
na paisagem que um
pintor daltônico
pincelou no dorso de um
camaleão.
E o lombo da serra é tão
bonito e claro,
que até uma coruja,
tonta e míope na luz,
com grandes óculos
redondos,
fica trepada no cupim, o
dia inteiro,
imóvel e encolhida,
admirando as cores,
fatigada, talvez, de
tanta erudição… p.141