O
poder da fé é algo de que não se deve duvidar. Quando Jesus se referiu à fé que
transporta montanha, deixou bem claro que nossa mente está muito aquém de sua
magnitude, e que quase não é exercitada. Vivemos aqui na Terra sob o poder de
regras e leis que a Ciência vai aos poucos descobrindo. A cada passo que ela
avança, a cada nova descoberta, avança também nossa estupefação, e sempre nos
fazemos mais conscientes de que somos criaturas pequeninas, frágeis, estúpidas,
ignorantes e metidas a conhecedoras do que não conhecemos. Diante desta
maravilhosa amplidão, em que estamos inseridos, e que é toda preenchida por uma
magia indescritível, ignoramos de onde viemos e não sabemos por que estamos
aqui. Também nos é vedado saber qual será nosso próximo destino, depois do que
chamamos de morte. Em suma, somos um bando de bestas em busca da verdade. E
como não a alcançamos, cada uma das bestas inventa a sua versão e se compraz em
se iludir. O Homem de Nazaré evidenciou nossa tamanha ignorância e pediu que
buscássemos a verdade pois só ela nos libertará. Enquanto isso não acontecer,
estaremos rastejantes, buscando forjar verdades particulares. E assim vivemos
sob a batuta do que não é verdadeiro.
Dei
um toque simples, nas linhas acima, em um assunto muitíssimo sério, para
exordiar um “causo” verídico, que agora vou relembrar, e no qual fica
evidenciado o poder da fé.
Barbosinha,
companheiro de carraspanas e presepadas, em Campina Grande, convidou-me para
passar um fim de semana numa fazenda perto do município de Ingá de Bacamarte.
Lá moravam parentes de sua namorada, a Cidinha, naquela época estudante do
curso de Ciências Econômicas, e com quem se casou algum tempo depois.
Enchemos
o tanque do velho fusquinha azul e partimos para mais uma aventura etílica. Uma
hora de viagem até Ingá e outra hora até a fazenda. Após o ritual de
apresentações aos familiares, fomos agasalhar nossas mochilas num dos quartos
do velho casarão, para depois nos dirigirmos a um banho de cacimba, na
companhia de alguns primos da Cidinha.
Mais
tarde, sentamo-nos ao redor da mesa do alpendre - éramos mais ou menos umas
trinta pessoas - para saborear tira-gostos de todo tipo, com acompanhamento de
algumas doses de cachaça. Foi quando um garoto trouxe um recado, avisando que o
sanfoneiro não poderia vir para a noitada, por conta de uma dor de dente dos
diabos. O forrozeiro estava com a cara redonda de tão inchada e o pobre
coitado, lá em sua casa, gemia feito um doido e nem sequer conseguia falar.
Dessa forma, também o forró da noite do sábado estaria comprometido. Todos se
entreolharam decepcionados e externando alguma lamentação.
Naquele
momento, lá me vem o Barbosinha com mais uma de suas maquinações.
-
Onde é que mora esse sanfoneiro? Amanhã vai ter forró, sim! – sentenciou,
pedindo que alguém o acompanhasse até o fusquinha.
-
Que é que tu vais fazer, Barbosa? – indagou Cidinha sem entender nada.
-
Ora, meu amor, vou rezar nele uma reza forte que meu avô me ensinou, e amanhã
ele estará aqui para comandar nosso forró – respondeu, já entrando no carro, fazendo-se
acompanhar por um familiar da namorada.
Eu
e a Cidinha olhamos um para o outro, mas nem eu nem ela entendemos nada.
Intrigado, pensei comigo: “
-
Esse fio duma égua já vai aprontar mais uma.
Esperamos
ansiosos por seu retorno. Não demorou muito. Foi chegando e desabafando em voz
alta:
-
Fiz minha parte. Agora depende do santo e da fé dele – falou com força,
engolindo uma dose reforçada de pinga.
Todos
se entreolharam, sem comentários, como se preferissem aguardar o outro dia.
Evitei
externar minhas reais impressões, mas logo depois me aproximei dele e falei
baixinho:
-
Homem, deixa de ser sem-vergonha, cara! Você tá doido, é? Amanhã vai passar um
vexame.
-
Eu? Se der errado vou botar a culpa nele mesmo - respondeu-me com
tranquilidade.
No
outro dia, o forró foi um dos mais animados já acontecidos ali. O sanfoneiro
estava sem dor de dente, sem inchaço na cara, e animou o rala-bucho até o sol
raiar.
A
partir de então, Barbosinha ficou com a fama de grande rezador. Sempre que
aparecia por aquelas bandas, era procurado para rezar até contra dor de corno.
Com o acontecido, eu mesmo fiquei com minhas dúvidas se não seriam reais os
poderes do Barbosinha. Passei, então, a chamá-lo de “curandeiro”.
Certo
dia, lá em Campina Grande, exigi a verdade:
-
Barbosinha, você é meu amigo e vai me contar agora qual foi a sacanagem que
você aprontou com aquela reza no sanfoneiro.
Ele,
então, com a cara mais lambida do mundo, se abriu:
-
Anchieta, não é pra falar a verdade pra Cidinha, pois ela pensa que sou mesmo o
maior rezador do mundo. Até me pede para benzê-la também – disse com uma
estridente gargalhada, fazendo uma pausa para tomar mais uma lapada.
Em
seguida concluiu:
-
Meu amigo, foi meu avô, que era bem mais sacana do que eu, quem me repassou a
oração. Naquela noite, repeti umas vinte vezes, com o galho do pinhão roxo na
bochecha do sanfoneiro. Escute aí como é poderosa:
É
corno quem acredita
Nesta
minha reza à toa...
Ô
dente filho da puta,
Na
boca dessa pessoa,
-
Se quiser passar, que passe!
-
Se quiser doer que doa!