“Mário de Oliveira (?-1977) é, cronologicamente, par droit de
naissance, o primeiro poeta e, por igual, o primeiro bacharel em Direito do
então Território, hoje Estado do Acre. Nascido em Rio Branco, no antigo
seringal “Empresa”, fez os estudo primários e secundários em Manaus, onde não
só conviveu com futuros expoentes das letras amazônicas, como Álvaro Maia,
Cosme Ferreira, Carlos Mesquita, Vicente Bonfim e Edgar Lobão, mas também
ensaiou os primeiros passos no beletrismo planiciário, assinando crônicas e
poesias nas revistas estudantis “Aura” e “Lúmen Amazonense”, que fizeram época.
Transferindo-se
para Fortaleza, torna-se, em 1914, bacharel em Ciências e Letras e, em 1918,
com distinção, em Direito. Na capital cearense, o pendor literário do jovem
acreano acentua-se e é chamado a integrar o grupo acadêmico “Tertúlia Clóvis
Beviláqua”, que editava a revista “Tertúlia”, da qual se faz redator-secretário
e ativo colaborador, como cronista e poeta.
Sua poética, como
não podia deixar de ser, sofre influência da época, quando, no plano nacional,
pontificavam Olavo Bilac, Guimarães Passos, Vicente de Carvalho e tantos outros
mestres do Parnaso brasileiro. Embora chegue a adotar formas menos rígidas,
posteriormente, como a polimetria e o verso branco, a verdade é que nunca
abandonou a linguagem, a medida e o ritmo clássicos tradicionais, perdendo a
moderna poesia brasileira, destarte, quem poderia ter sido um de seus elementos
em prol.
De retorno à terra
natal, aí passa grande parte da vida, no exercício de atividade polimorfa, no
magistério, na imprensa, na tribuna, já membro fundador da Academia Acreana de
Letras, já do Instituto Histórico e Geográfico do Acre. Quando dali se retira,
por imposição do cargo que ocupa no Ministério Público da União, vai fixar
residência no Rio de Janeiro e, após a mudança da capital, em Brasília, cidade
ainda hoje se encontra, no gozo da tranquila e merecida aposentadoria dos que
cumpriram o dever.” Romeu Jobim, prefácio, dezembro de 1970.
SAUDADES
“Ora
(direis), ouvir estrelas...”
Bilac
Longe de mim –
suplico – os olhos ponhas
No constelado manto
das estrelas,
E busques, dentre
as muitas, uma delas,
Que te fale de mim,
se acaso sonhas...
Certo que ouvi-las,
tão somente pelas
Cintilações de luz,
flébeis, tristonhas,
É só das almas que,
entre si inconhas,
Sabem senti-las,
muito mais que vê-las...
Pois bem, atenta!
Quando a noite, em meio,
Na azúlea concha
for declinando,
– Tu hás de ouvir, a
palpitar-te o seio,
Que uma fala de
mim, de como, e quando,
Eu, a fitá-la, de
saudades cheio,
Versos de amor, a
ti, vou recitando... p.36
SAUDADE
Em certa noite
enluarada,
Da “via láctea” na
estrada,
Que eu fitava, em
nostalgia,
Meus tristes olhos magoados
Viram, então,
deslumbrados,
O que, estranho,
sucedia:
No azul do céu, as
estrelas,
A fim de eu bem
entendê-las,
Foram-se, aos
poucos, juntando,
Formando a palavra
triste,
Que em todo peito
coexiste,
E mais em quem vive
amando...
E em sete letras,
apenas,
Lembrando, porém,
de penas
Um mundo, que nos
invade,
– Eu li a triste
palavra,
Que, dentro em mim,
mora e lavra:
– Eu li, bem claro:
– “Saudade”... p.81
REVIVESCÊNCIA
Quanto tempo
estivemos separados,
Vivendo a solidão
de almas viúvas!
Ó triste coração,
quase estiolados,
Quais pobres flores
a que faltam chuvas...
Tal, porém,
acontece à “sempre-viva”,
Que um pouco de
umidade reverdece
Nossa paixão, em
ânsias redivivas,
Por nos revermos,
mais se exalta e aquece.
Que indizível
cadeia de contrastes
É a vida dos que se
amam e se querem!
Queixas, mágoas,
pesares e desastres,
– Tudo é esquecido
com se, apenas, verem...
As desventuras,
que, silentes, moram
Na alma de dois
amantes sofredores,
Transformam-se em
sorriso, e ao lábio afloram,
Como no campo
desabrocham flores...
Ver-te de novo...
Ter-te perto, enfim...
Prender, nas
minhas, tuas mãos queridas...
Sentir teu corpo
aconchegado a mim...
– Quanta recordação
de horas vividas!
E os nossos lábios
se buscando, ardentes...
E o langor dos teus
olhos de veludo...
E as carícias das
nossas mãos frementes...
E o meu silêncio te
dizendo tudo!...
Horas de redenção,
horas benditas!
Horas de enlevo, e
êxtase, e ventura!
Horas plenas de
graças infinitas!
Horas cheias de
sonho e de ternura!
Horas, que valem
pelas dores todas,
Que hemos sofrido,
quase sem ter fim!
Horas em que
sagramos nossas bodas:
– Eu, todo em ti, e
toda tu, em mim... p.82-83
MEMENTO
Homem, vaidoso
Irmão! – vamos ao Cemitério.
Dos Mortos este é o
Dia... Anda, pois; vem comigo.
Vamos, juntos,
sentir, bem de perto, o castigo
Que da Vida é a
Morte, em seu atro mistério...
Na silente mansão,
em cada rosto amigo,
Sentiremos da Dor o
intangível império,
A enlutar corações,
e, qual rubro cautério,
Queimando, dentro
d’alma, a cada um consigo...
E veremos também
que humanos preconceitos
Tombam, frágeis,
por terra, em face da verdade:
– Que todos somos
pó, e às mesmas leis sujeitos!
A vestal e a
rameira, o pária e a potestade,
A jazerem, por fim,
nos derradeiros leitos,
Têm, tornados em
lama, a perfeita igualdade... p.97
A FLOR DA VIDA
Flor em botão, –
semelha a infância descuidadosa,
A
sorrir para a vida,
Como se a vida
sempre um mar fosse de rosa...
Flor aberta, a
seguir, – é a idade apetecida,
Esparzindo
perfume,
E que a ronda de
amor dos colibris convida...
Flor secando, a
morrer, de mágoas se presume
Desfolha-se a corola,
As pétalas caindo,
em silente queixume...
Pois botão, depois
flor, que, em breve, se estiola,
Pendendo,
emurchecida,
– Eis a imagem
real, que aos olhos desenrola
A
nossa própria vida... p.107
POEIRA DA ESTRADA
Como é grata a
partida pela estrada
Da vida, manhã
clara, sol nascente!
Em cada curva, em
cada canto, em cada
Moita, um pássaro
canta à alma da gente...
Do meio dia ao sol,
a caminhada
Já de um quase cansaço
se ressente.
E em nossa fronte,
em bagas perlejada,
Mede-se o esforço,
cada vez crescente...
Descamba o sol. No
topo da colina,
Olhando da subida
os duros flancos,
A fronte se nos
curva e ao chão se inclina.
E da escalada de
urzes e barrancos,
A cabeça nos touca
a poeira fina:
– O pó de prata dos
cabelos brancos... p.109
POEMA DO ANO NOVO
O homem será sempre
a mesma eterna criança,
A iludir-se de
sonho e a viver de esperança!
Em cada ciclo
anual, quanta desilusão
Lhe vem pungir a
vida e o próprio coração!
Nem se lembra,
talvez, que muito do que anseia
É, dos tempos de
crianças, um castelo de areia...
Nem se lembra, por
certo, à hora de sonhar,
Que o sonho da
ilusão é amargo, ao despertar!...
Continua sonhando,
a querer iludir-se,
Esquecido que a
vida é feiticeira Circe,
A transformar em
mal todo bem que logremos,
Em fel a converter
algum mel que libemos...
Assim, quando a
ventura à porta, de mansinho,
Nos bate, qual
temendo acordar mau vizinho,
Não tarda que a
desdita, a, de longe, espreitar,
Nos venha, só de
má, o bem arrebatar...
Se a alegria nos
chega, em visita, bondosa,
A tristeza se
apressa a surgir, invejosa...
Se o riso nos
aflora à pétala dos lábios,
Pronto as lágrimas
vêm, com amargos ressábios...
Se a paz espiritual
faz morada em nossa alma,
É preciso lutar,
para ter essa palma!
Se a bondade reside
em nosso coração,
Fazendo-nos querer
a outrem como irmão,
A perversa maldade
a descrer do altruísmo,
Julga impuro esse
afeto e ri-se com cinismo...
Se o prazer nos
ilude, em momentos felizes,
Entrelaçadas nele a
dor tem as raízes...
E é sempre assim.
Por mais que busquemos ventura,
Tudo quanto é
pungente a ela se mistura.
No entanto, o
sonhador continua sonhando,
Perdendo a ilusão,
outra ilusão buscando;
Buscando a borboleta
estranha da esperança,
Que alimenta de
sonho a mesma eterna criança...
E atrás da
borboleta ilusória e erradia,
Da túnica da vida
ele a trama desfia...
ANO NOVO, que vens,
qual borboleta iriada,
Novos sonhos
trazendo em cada dia, em cada
Instante, – sê, por
Deus! o eterno semeador:
– Multiplica
ilusões ao pobre sonhador!... p.113-114
SUPLÍCIO
Num mundo vegetal,
também, dramas se passam,
Pungentes,
silenciosos,
Como tantos,
cruciantes, dolorosos,
Que ora esmagam
nossa alma,
Ora a rechaçam,
Sem que, exteriormente,
A máscara da face,
sempre calma,
Transpire a mágoa
ingente,
Que lhe dói,
A angústia
inenarrável, que a corrói...
Assim, a “OEIRANA”
– “SALIX
HUMBOLDTIANA”
Acorrentada ao seu
destino amargo,
De eterna
prisioneira
Da gleba ribeirinha
em que nasceu,
E medrou, e
cresceu,
– Tântalo vegetal
Padece a mágoa
Torturante,
assassina, indizível, letal,
Que se prolonga uma
estação inteira:
– De ver passar, ao
pé de si, tanta água,
Que o rio vai
levando,
Vai levando,
Enquanto, em gesto
largo,
De súplica e
humildade,
Como esmoler, que
implora a caridade,
– Ela estende
convulsa, os hirtos braços,
No anelo de quem
quer fecundante abraços,
À liquida corrente,
Que passa
indiferente,
Deixando-a a
padecer a agonia inumana...
– Pobre e mísera
“OEIRANA”! p.116
VELEIRO BRANCO
Veleiro branco,
veleiro branco.
Que, ao longe,
passas, riscando o mar,
Tuas velas pandas
ao vento franco
Parecem asas a
voejar.
Parecem asas
cortando o azul,
Enquanto o azúleo
mar vais cortando,
Veleiro branco, que
o rumo sul
Sereno e calmo vais
demandando.
Tuas velas brancas,
pandas ao vento,
Parecem asas
cortando os céus;
Parecem aves no
firmamento;
Parecem lenços
dizendo “adeus”.
Parecem braços, que
se distendem,
Num gesto largo,
num aceno nudo
De mãos trementes,
que se desprendem,
Frias, silentes,
dizendo tudo...
Parecem lenços que,
ao longe, acenam
Um “adeus” dorido,
de despedida...
Parecem sombras de
almas, que penam
O “adeus” eterno,
por toda a vida... p.130
POEMA DA SAUDADE
INFINITA
Ah! Como eu
gostaria de rever
A bem querida terra
dos meus sonhos,
Os meus pagos
risonhos,
A maloca nativa,
A querência da
infância,
Perdida na
distância,
– Mais do tempo
impiedoso, e não no espaço,
Já que vai longe a
minha meninice...
Vestindo
o escafandro da saudade,
A
memória mergulha no passado,
E
eu revejo – olhos d’alma enamorada –
O
modesto lugar em que nasci:
À beira rio, de
águas turvas e barrentas,
– O “seringal”, de
vida remansosa,
Todo poesia e
encanto, aos meus olhos tranquilos...
Embora
infrene a luta dos maiores.
Contra
o meio telúrico, bravio,
Da
selva hostil;
E
esta a obstar, em vão, a incontida avançada
Em
busca dos recônditos tesouros
Da
“hévea” nativa,
–
Em derredor de mim,
Alma
povoada de candura,
Tudo
sorria o riso da inocência...
Tudo
cantava um canto de ternura...
Pelos campos
olentes,
De moitas
florescentes,
– O pipilo, o
gorjeio, canto de mil aves,
Em plena liberdade,
Entoando ao Criador
Suas canções de
amor...
À
margem da corrente fluviar,
De
águas cantantes, quérulas, viageiras,
–
As “oeiranas” debruçadas a mirar-se
No
espelho da linfa transeunte,
Quais
ondinas vaidosas e brejeiras...
A assistir-lhes ao
banho,
– As vigilantes
“canaranas” ribeirinhas
Leques abertos,
farfalhando ao vento...
Nos
“repiquetes”, de águas novas, turbulentas,
“Balseiros”
deslizando ao léu, sem rumo...
Ao primeiro sinal
do escassear da linfa,
– A esponjosa flor
da espumarada,
A dançar, “de
bubuia”, à correnteza...
Como
tudo era lindo, aos meus olhos infantes,
Tranquilo
o coração, só inocência n’alma!
A
vida era um sorriso, e o carinho materno
A
transfundir bondade em meu ser ainda insonte...
Agora,
Repassando do tempo
a dura caminhada,
(Quantos sonhos
desfeitos!
Quantas sofridas
mágoas!)
– Eu bem quisera
ver-me, como outrora,
A banhar-me
naquelas doces águas
Do meu rio da
infância,
Com o coração
sorrindo para o mundo,
Na ingênua mansidão
daquela idade,
Como se só amor ele
tivesse a dar-me,
Ao invés da
tristeza, em que me inundo... p.148-150
OLIVEIRA, Mário de. Jardim Fechado. Rio Branco: Departamento de Imprensa
Oficial, 1971.