sábado, 25 de fevereiro de 2023

GENTE DOS SERINGAIS

Álvaro Maia (1893-1969) 

Nas pequenas cidades do interior amazonense, como em seringais e povoados, homens admiráveis, pela audácia e pela coragem, revigoram-se das canseiras do dia, com os ouvidos atentos às vozes e aos cantos que as ondas filtram das distâncias. Transporto-me para os seus lares, com o mesmo perene desvairamento pela região singular, que plasmou a nossa vida para a reação e o labor.

As lamparinas errantes nos barracões enormes, em aparições de fogos fátuos, acendem esperanças, ou lembram flamas de triunfo às águas, que se enrolam em procissões barulhentas.

Escrevo no interior, vendo e sentindo a influência genésica da natureza. E somos, na verdade, fragmentos dispersivos dessa natureza, impregnados por suas ansiedades e suas forças construtoras.

*   *   *

Uma vez, ao visitar o Nilo, Ludwig, deslumbrado ante as represas de Assuán, viu, no destino dum homem, a imagem e o destino de um rio. Mais: viu “num curso dágua o destino dum homem”.

Ao calor dessa linda evocação, qual o nosso destino, qual o desdobramento da nossa existência, milhares de compatrícios do Madeira, civilizados ou ameríndios, que habitais os barrancos, as terras-firmes, as ilhas, as serras, na parte exclusivamente brasileira?

É, por certo, o destino das lutas generosas, das vitórias prelibadas em renúncias, as derrotas sofridas sem tibieza, nessa escalada tenaz pelo desbravamento do sul-amazônico, desde o século XVII, quando as incursões se realizaram ao impulso dos remos, através dos estirões infindáveis, unidos pelas curvas sucessivas e desenhados pelos blocos de terra-caída.

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Rio-enigma, de serenidade aparente e correntezas bravias, traz, na revulsão dos banzeiros, as ambições de três pátrias adolescentes, a música de dois idiomas novilatinos e dos sonoros dialetos primitivos.

Espalha os manadeiro pela Bolívia inteira, mas um braço poderoso, o Beni, caindo próximo ao Peru e às nascentes do Amazonas, aperta os contrafortes andinos, sente-lhes os ventos frios “nos nevados de Chacaltáya”; o outro, o Guaporé, infletindo por Mato Grosso, mistura-se às águas do Prata, por intermédio do Paraguai, nos igapós oceânicos das invernadas.

Singular fraternização!

Bebemos, em suas correntezas vertiginosas, as inspirações das duas maiores maravilhas do continente sul-americano – os Andes e o rio da Prata.

Mais tarde, após a decantação em mais de 400 quilômetros, arregimentando as águas de tantas origens, continua, no solo pátrio, a obra formidável de aproximação fraternal: fala ao Purus pelo Abunã, ao Tapajós pelo Canumã e, no delta, estende as comunicações desde o Purus até o paraná do Ramos.

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Rio-esfinge, Rio Sagrado, Ganges da Amazônia!

Escutou, na infância luminosa, os hinos dos Incas, nos embates pela Glória do seu Império, nos clamores pela agonia de sua raça: e ainda, nos barrancos dos Marmelos e do Maici, os restos das tribos litorâneas, varridas pelas massas conquistadoras.

As velhas tribos não desapareceram totalmente: de vez em quando, uma flechada certeira avisa aos invasores civilizados, esquecidos dos limites legais, que elas não estão dormindo. As lendas revivem e cada índio esconde um porantim dentro do coração.

A civilização, em rios novos, inicia-se, quase sempre, pela foz. O Madeira, pelos afluentes do Beni, banha La-Paz, joia boliviana, e inverteu o postulado sócio-geográfico. Civiliza também pela nascente.

Tenho mistério dos imprevistos: há enseadas longas em surdina, onde as águas remansam em calma surpreendente, e desvãos encachoeirados, em que se percebe o barulho para além de doze quilômetros...

Suas águas, odiando a monotonia, são amarelas no inverno, azul-turquesa no verão, verde-esmeraldina no Candeias, escuras no Machado, onde Raimundo Monteiro divisou cordas de harpas nos galhos balouçantes dos araçás.

Rio generoso, em cujas águas se dissolvem, como ofertas a outras gentes, o barro das margens alagadas, casar árvores de longas distância e até os ossos dos desbravadores, perdidos nas sepulturas lavadas pelas enchentes...

*   *   *

São iguais a esse rio e seringueiros pacientes, corações amigos que se abraçam no verão e quando as chuvas fogem, para que as praias, como placentas dardejantes, posso aviventar os primeiros milagres da agricultura, às fecundações do sol esbraseado.

Seu homem reflete o ambiente, não podemos fugir à tenacidade do rio indefinível, cujos nascedouros brotam de escarpas de montanhas, acariciadas pelos furacões do Pacífico, e de igapós imensos, ajoelhados às vertentes que se debruçam para o Atlântico.

Poucos adivinham o heroísmo incessante: sob a selva infinita, incendiada pelas copas de pau-d’arco, operários-escafandros, vencendo e imortalizando os trópicos... Batelões nas corredeiras, pulando, como animais fantásticos da pré-história; canoas esguias, que apunhalam os lagos em repouso... Árvores derribadas, tempestades vencidas, cheia-grande que se foi e voltará.

*   *   *

Humaitá plantou-se na parte média do rio-enigma, exatamente no ponto em que os campos-gerais se engolfam na floresta para morrer às margens altas, pontilhadas de árvores gigantescas.

A torre fina e branca, ressurgindo de um fundo de palmeiras, aguarda, no bucolismo do interior, as novas gerações que hão de prosseguir os mesmos ritos de resistência e trabalho.

Exalte-se, acima de tudo, o seringueiro brônzeo, gênio das águas barrentas, provindo da fusão de ameríndios e nordestinos, em sua faina permanente, grudado às canoas nas manhãs nevoentas, investindo pelas selvas em madrugadas claras ou chuvosas, na eternidade da construção e da intrepidez.

Bem nos conhecemos, porque somos iguais, porque bebemos na infância, ardendo em interrogações, as águas que trazem o cristal das montanhas e o barro das planícies encharcadas.

Somos um só, nesta hora de recordação, – homem que labuta quase só, homem que ofereceu ao solo a hóstia do seu próprio corpo, terra-maternal, que acolheu as sementes para o esplendor da germinação, terra-irmã, que, divinizada pelo sacrifício, deu ao espírito, nas horas de maior abandono, o milagre da esperança, do sonho e da crença.

 

MAIA, Álvaro. Gente dos seringais. 2ª ed. Brasília: Senado Federal, 1987. p. 16-19

quinta-feira, 16 de fevereiro de 2023

COMPANHIA REGIONAL DO TARAUACÁ E EUGENIO AUGUSTO TERRAL, SEU 1º COMANDANTE

As fotografias, abaixo, fazem parte do álbum-dossiê apresentado, em 1917, pelo capitão do Exército Eugenio Augusto Terral, comandante da Companhia Regional do Tarauacá, ao Ministro da Justiça Carlos Maximiliano. Eugenio Terral chegou a Tarauacá no dia 11 de junho de 1916, para fundar a Companhia Regional do Tarauacá, à época, composta por 1 capitão, 1 alferes, 2 sargentos e 60 praças, conforme registrou o jornal Município (18/6/1916). 

Devido discordâncias com o prefeito José Thomaz da Cunha Vasconcelos, no caso Amin Kontar, Terral entregou o cargo no início de 1918. Em 1920, foi nomeado novamente comandante da Companhia, permanecendo no cargo até início de 1921. Ele era filho de um francês de nome Erasmo Jacques Augusto Terral, que havia se estabelecido no estado do Paraná.

Nas imagens, vê-se roçados, pois Terral fez seus soldados também dedicarem-se à agricultura, para a produção de alimentos para usufruto da própria Companhia.

As fotografias foram retiradas do Sistema de Informações do Arquivo Nacional (https://sian.an.gov.br/).



























terça-feira, 14 de fevereiro de 2023

DJALMA LIMONGI BATISTA (1947-2023)

Manaus, anos 50


Lembro quando, em 1959, E Deus Criou a Mulher (Et Dieu Créa la Femme, 56, de Roger Vadim) estreou em Manaus. Eu tinha doze anos. Não se falava de outra coisa na cidade. Um amigo do meu pai havia visto o filme no Rio de Janeiro e sua esposa retornara horrorizada: Ela fica nua sem pudor! É nojenta! – este foi bem o termo que usava para se referir à Brigitte Bardot. Eu e meus irmãos velhos, Gualter e Gilma, loucos para ver aquele “escândalo”, pedimos auxílio ao nosso mon ocle tio Cazuza. Prontamente chegamos ao Cine Polytheama, respeitosamente acompanhados, inclusive, pela nossa tia Nícea. O porteiro do cinema logo reconheceu a gente, frequentadores assíduos, e avisou: “Esses meninos não podem entrar, eles não cumprem a censura”. “Como não? Eles têm quinze anos!”, respondeu meu tio, achando que a idade mínima era de quatorze. Mas o filme é proibido para menores de dezoito anos!, rebateu o porteiro. Meu tio, sempre cúmplice, não titubeou: “Então eles têm dezenove!”. E vimos o filme.

...E Deus criou o cinema!

Mais do que ilustrar a minha paixão desde criança pelo cinema, esta anedota explica muito da família que me criou e da Manaus em que cresci. A cidade ignorava a censura federal e os oito cinemas locais, quatro de cada cadeia, permaneciam sempre de portas abertas para todos – uma das vantagens de se morar numa cidadezinha de 150 mil habitantes, cercada pela selva amazônica por todos os lados, sob um sol e calor infernais.

O “ciclo da borracha” já havia se extinguido, deixando como herança os casarões portugueses. Manaus era quase uma aldeia, estagnada no tempo e isolada no espaço – sem estradas que não fossem os grandes rios, sem luz elétrica nas casas, sem televisão. Apenas os aviões, que pousavam lá duas ou três vezes por semana, traziam sinais do mundo exterior, como os enormes rolos de filmes que estreavam todo dia. A literatura era, para nós, a chave do mundo. Mas o cinema era as portas do século XX.

O primeiro filme que vi, me contam, foi Aviso aos Navegantes (Brasil, 1950, de Watson Macedo). Diziam que eu chorava muito. Mas o primeiro do qual tenho memória, talvez por ser colorido, talvez por ser desenho animado, foi Bambi, de Disney. De qualquer maneira, sempre tive o hábito de ir ao cinema desde muito cedo. Minha avó materna – Filomena Demasi Limongi – pertencente a uma das quatro famílias italianas que migraram da Basilicata, na Itália, para Manaus – sempre nos levava às matinês. Com ela, mesmo sem saber, assisti a todo o neorrealismo italiano. Ela adorava. Meu pai, Djalma da Cunha Batista, um médico muito popular e querido na cidade, verdadeiro visionário, um ecologista antes mesmo de se inventar o termo, também amava o cinema. Muitas vezes contratava um projecionista para passar filmes lá em casa mesmo, com lotação esgotada de primos, amigos, vizinhos.

Seus oito filhos herdaram essa paixão, mas nenhum tanto quanto eu e Gualter. Ele era o mais velho dos homens, batizado como meu avô. Sou o segundo e recebi o mesmo nome do meu pai (até hoje tenho amigos que visitam Manaus e acham que a principal avenida da cidade é uma homenagem a mim!). Quase viro “Júnior”, mas fui salvo a tempo por meu rigoroso e temido avô Gualter, que impôs que eu fosse registrado com o Limongi de minha mãe, Gilda Limongi Batista. Depois vieram José Roberto e Cláudio. Entre as meninas, Gilma, Marilena, Edith e Francisca. Todos – como bons nortistas – com seus respectivos apelidos, muitos apelidos pelos quais nos tratávamos no cotidiano. O meu sempre foi Nani. Não preciso dizer que morava numa casa, no mínimo, animadíssima.

Foi o cinema que uniu Gualter e eu, mais que os outros irmãos. Íamos praticamente todo dia ao cinema, às vezes matando aula de datilografia para pegarmos duas ou três sessões seguidas. Quanto bem crianças, eram as empregadas domésticas que nos levavam para assistir aos musicais da Atlântida, que nós adorávamos. Para horror do meu pai, que não admitia que os atores falassem português errado ou, pior ainda, que Oscarito e Grande Otelo aparecessem vestidos de mulher.

Devorávamos todo estilo e gênero de filme, e logo a família começou a perceber que havia ali dois irrecuperáveis monstrinhos cinematográficos... Acordávamos a casa toda, em plena sesta (naquela época, havia sesta obrigatória no norte), discutindo quem sabia mais sobre filmes, diretores, atores – com nossos caderninhos de perguntas e respostas e nossos recortes das revistas Cinelândia e Cinemascope (guardo alguns encadernados até hoje). Até a vovó Filomena, que alimentara aquele nosso hábito desde cedo, uma vez me viu encenar uma morte super dramática em uma brincadeira de “mocinho e bandido” e vaticinou: “Excesso de cinema!”.

Gualter e eu éramos muito parecidos. Gildowisky (gozação carinhosa a nossa mãe, como se ela comandasse a família como uma inabalável camarada russa) nos vestia igual e todo mundo perguntava se éramos gêmeos. Só depois, na adolescência, meu irmão ficou pequeno e eu espichei como varapau para meus 1,90 m de altura. Fui amorenando e ele continuou branquinho, lindo, bem italianinho. Mas, no cinema, logo tivemos gostos diferentes. Ele era fã nº 1 de Jeanne Moreau; eu gostava mesmo era da Marilyn Monroe aí. Eu me concentrava nas tramas; ele sempre foi muito visual, viajava nas cores e nos detalhes do cenário, na fotografia.

Em pleno filme, muitas vezes até se esquecia da história, cutucava minhas irmãs e perguntava: “O que está acontecendo?”. Elas caíam na gargalhada.

E assim ele cresceu para se tornar um grande artista plástico e o diretor de fotografia de nossos filmes. Foi meu maior parceiro e amigo, toda a vida. E a nossa cumplicidade surgiu aí: adorando os “filmes de suspense”, comédias e musicais de Hollywood; Cleópatra e todos os “péplons” (fitas de halterofilistas/gladiadores) da Cinecittà (deste só eu gostava!) e descobrindo a Nouvelle Vague com Quem Matou Leda? (À Double Tour, 59, de Claude Chabrol); vendo Antonioni, Fellini, Visconti; acompanhando a formação do cinema brasileiro pela Vera Cruz de O Cangaceiro (Brasil, 53, de Lima Barreto), até surgir A Grande Feira (Brasil, 61, de Roberto Pires) do ciclo baiano, depois o Cinema Novo... Eu só nunca tive saco para filme de bangue-bangue.

 

DJALMA LIMONGI BATISTA in NADALE, Marcel. Djalma Limongi Batista: livre pensador/por Marcel Nadale. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2005. p. 11-17

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DJALMA LIMONGI BATISTA nasceu em Manaus-AM, em 9 de outubro de 1947, e faleceu, nesta terça-feira, 14 de fevereiro de 2023, em São Paulo. Filho de Djalma da Cunha Batista e Gilda Limongi Batista. Consagrado diretor de cinema, iniciou sua carreira em 1968, com o curta-metragem “Um Clássico, Dois em Casa, Nenhum Jogo Fora”. Em seguida vieram os também curtas “Retorna, Vencedor” (1968), “O Mito da Competição do Sul” (1969), “Hang-five” (1969), “Puxando Massa” (1972), “Porta do Céu” (1973) e “Rasga Coração – O Teatro Brasileiro de Anchieta ao Oficina” (1973), até estrear o seu primeiro longa-metragem, “Asa Branca, um Sonho Brasileiro” (1981), premiado como Melhor Direção nos Festivais de Brasília, Gramado, no Prêmio Air France de Cinema e como Melhor Filme no Prêmio Air France de Cinema e no Festival des Trois Continents, além dos prêmios para as atuações de Walmor Chagas e Edson Celulari. A seguir, dirigiu no cinema “Brasa Adormecida” (1986), “Bocage, o Triunfo do Amor” (1998) e “Autovideografia” (2003), além de “Um homem indignado” (2005), no teatro, estrelado por Walmor Chagas. Publicou, em 2008, pela imprensa Oficial do Estado de São Paulo, o livro “Walmor Chagas: ensaio aberto para Um Homem Indignado”.

terça-feira, 7 de fevereiro de 2023

SOBRE PARA “AQUÉM OU PARA ALÉM DE NÓS”

Isaac Melo

 

Richard Rorty, filósofo estadunidense, com a sua proposta de uma filosofia da cultura, entendia que o filósofo deveria estar disposto a dialogar com as várias áreas das ciências humanas, principalmente com a literatura e a história. Sobretudo a partir da pós-modernidade, a filosofia desceu do pedestal, onde, por longos séculos, reinou inconteste, como a mãe de todas as ciências. Para Rorty, é preciso chegar à filosofia por outros caminhos que não o habitual, como a literatura, o cinema, a arte, etc. 

É neste sentido que penso o livro de Neiza Teixeira: “Para aquém ou para além de nós: uma contribuição do pensamento “primitivo” ou “bárbaro” para o pensar do futuro” (Valer, 2022, 3ª ed.). A riqueza da diversidade das narrativas míticas indígenas brasileiras, sobremaneira as amazônicas, apesar de relativamente conhecidas, são, todavia, parcamente estudadas, ainda mais, sob a ótica filosófica.

Neiza mergulha a fundo nessas fontes primitivas do pensamento mítico indígena, sobretudo a partir do recorte dessana, mais especificamente, aquelas oriundas da obra “Antes o mundo não existia”, de Umúsin Panlõn Kumu e Tolamãn Kenhíri, publicada pela primeira vez em 1980, considerado o primeiro livro brasileiro escrito e ilustrado por um indígena. A autora, com muita competência, manuseia os conceitos fundamentais da filosofia, para extrair deles, os elementos essenciais com que vai tecer a analítica de seu trabalho.

Nesse sentido, é que a filósofa discute o conceito de mito, recorrendo e discutindo alguns dos principais nomes da tradição filosófica acerca do tema, até a culminância do conceito de “mito vivo” ou dos povos que vivem o “mito vivo”. Por isso, ela afirma: “O espaço amazônico, como outros espaços do interior do Brasil devem ser olhados com respeito e com cuidado, pois nesses lugares a Memória, essa que nos interessa, ainda reside, onde, por fortuna do destino, ainda existem povos que vivem o “mito vivo” (p. 117). Não, diria, talvez, por “fortuna do destino”, mas pela secular luta e resistência desses povos.

Os mitos são essenciais para a memória ancestral dos povos, e, de certa forma, gerador de identidade. Em cada um de nós habita uma memória ancestral. De modo que, o extermínio dos povos indígenas é o extermínio da memória do mundo: “o que vivenciamos hoje é mais aterrador do que o vivido pelos povos anteriores ao pensamento racional, uma vez que, se não permitirmos a sobrevivência dos “nossos primitivos”, estaremos eliminando, para sempre, a Memória do nosso mundo. Pensar essa possibilidade é monstruoso. É desolador.” (p. 122)

Se a ciência ocidental, ou pelo menos um certo modelo de ciência, foi responsável, pela dessacralização da natureza, o mito restabelece essa sacralização necessária. Entre outros, Neiza exemplifica a partir da deusa Dessana Yebá Buró, a mãe da humanidade, quando afirma que “o indígena Dessana é um ser cultural por excelência e de que a criação do seu mundo, um trabalho completamente efetivado pelos deuses ou pelos heróis civilizadores, inviabiliza que ele possa desenvolver, ao contrário de nós, a liberdade de criar e transformar o mundo, engendrando, assim, uma maneira de ser e de estar que resulta na construção de um mundo dessacralizado. O mundo de uma sociedade “tradicional”, estruturada no “pensamento bárbaro”, funda-se na sua criação, portanto, tornando-se ontológico e, ao mesmo tempo, sagrado” (p. 213)

A ciência não prescinde do mito, assim como o mito não é impedimento para a ciência. Neste sentido, para a autora, “estudar o mito como objeto próprio e relacioná-lo com outras culturas é uma maneira de encontrarmos uma via segura e um ponto fixo entre eles, desfazendo os preconceitos e o etnocentrismo, que vêm, ao longo dos tempos, embaçando a nossa visão, quando o tema é re-conhecer os povos que foram ou são diferentes de nós ou que fazem um percurso que não é o nosso” (p. 250).

Ao analisar a compatibilidade entre os mitos gregos, dessana e genésico, Neiza nos afirma que “é necessário que a cultura ocidental, firmada sobre a crença na Ciência, procure outras formas de pensamento, diferentes das suas e que não nos cheguem como conhecimentos exóticos, mas como saberes que podem trazer algo verdadeiramente importante para a nossa vida prática.” (p. 255)

Nesse tempo, que continua de violência extremada contra os povos indígenas, como o genocídio que o Brasil e o mundo testemunham contra os Yanomami, que vivem o mito vivo, “Para aquém ou para além de nós” é uma leitura que se faz necessária. É um livro de alteridade. De pertença e de reconhecimento do outro. Uma obra que afirma que é possível e “sustentável uma forma mito-poética de ver o mundo”.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

POEMAS DE ANTONIO TAVERNARD

PANTEÍSMO

 

O poente é um mirífico Calvário

onde as nuvens vão crucificar

um louco sonhador, visionário

que pelos céus, andou a predicar

o evangelho singular

da paz, da luz, do brilho, do calor...

 

As Horas – Fariseus o condenaram

no Sinédrio da Tarde, e o açoitaram

com o azourrague do Vento,

sob o horror

de um bando de andorinhas assustadas...

 

Eis o cortejo das descabeladas

Nuvens escuras, feias, arrastando

o Mártir ensanguentado,

semi-nú, coroado

de cirrus, na Via Sacra da Amplidão!...

atrás da turba má, covarde

– piedosa, soluçando, mas serena –

segue a Maria Madalena

da Estrela da Tarde...

 

Há, no infinito, ecos de maldição!...

Está de pé a Cruz,

e, nela o Sol – que louco padecente! –

pregado foi com os cravos de luz

das primeiras estrelas... de repente,

a multidão de Nuvens; aterrada,

recuou, ouvindo a trovoada

surda, e vendo se rasgar

o Santo Véu do Templo da Neblina,

escondeu-se por trás de uma colina...

 

De vagar,

o José de Arimatéia do Luar

despregou o corpo esmaecido

do Profeta da paz e do calor

e o foi levando, com fervor,

pálido, compungido,

até deitá-lo no Sepulcro Imenso

do Oceano, amortalhado em fúnebre silêncio...

 

E o céu, depois, aurilavrou-se

de mil constelações,

como se o estelário apenas fosse

um epitáfio de cintilações... p. 62-63

 

LIAMBA

 

Ópio verdoengo

que Jurupari semeou na Amazônia

para acabar com os ex-homens...

Anódino a princípio, narcóticos depois, entorpecente...

Sucuri de fumaça a se enrolar na gente...

 

O filho enfermo, a mulher desnuda, caindo a barraca,

o paneiro de mandioca vazio, a roça sem maniva,

o próprio desespero concentrado,

tudo se esbate, tudo se esfuma, tudo se esvai

nas pardas espirais do veneno adorado...

E o caboco fuma... E o caboco sonha...

 

Sonha que é feliz... E sorri... um sorriso

de pupilas estagnadas como lagos podres

de boca murcha como flor de lama...

um sorriso de múmia julgando viver...

 

Liamba,

demônio bom, anjo cruel,

Erva que a besta evita e que o homem procura...

Liamba,

plantio do esquecimento,

alfobre da loucura...

 

E o caboco fuma... E o caboco sonha...

(A mata ficou mais verde, mais brilhante,

uma esmeralda só...

 

E o céu, baixinho, é o manto da Nossa Senhora

de Soure, que cresceu, que cresceu

e ficou mais azul...

A vida é um domingo de Espírito Santo...

O filho sarou, a mulher sorri...

Choveu marreca, farinha, açaí...)

 

Liamba, liamba,

por que, dando o sonho,

não matas também?

 

O caboco desperta.

A floresta, com a noite, empreteceu,

o céu está longe,

a mulher fugiu, o filho morreu...

 

Não sente o caboco...

Tem o cérebro oco

e a perna tão bamba!...

tropeça,

se estende no chão...

 

Liamba,

depressa!...

Vai dar-lhe a mentira

da consolação! p. 69-71

 

 

ENTRE O ÉTER E O LODO

 

Estrelas só, o céu; sapos só, o brejal...

Nunca se viu assim astros tão baixos,

nem nunca se escutou tantos coaxos

na noite tropical...

As trevas são de luto aliviado,

de olhos de cego que começa a ver...

Passa um vento fraquíssimo, gelado,

sopro de alguém que está para morrer...

 

As noites da Amazônia são profundas,

mais noturnas que as outras! Nelas há

sensações abismais, madres fecundas

de emoções de terror. Quem nelas vá

procurar a suave poesia

de lagos láteos e de rouxinóis

apenas ouvirá essa protofonia

– ronquidos de corós,

risadas de urutaus –

que vem de quando efervesciam sóis,

que é eco do caos!...

 

Um mundo em vibrião aqui lateja

como feto num ventre colossal,

e uma seara de titãs broteja...

Germinal!...

De horrores e belezas...

de todas as misérias e grandezas...

Germinal!...

 

A Amazônia,

proteiforme, medonha,

é um estúdio de assombros singular!

Nela, sente-se, à noite, DEUS a trabalhar.

 

E, entre o charco e o céu, há um drama que não finda.

Um sapo acorda e acha uma estrelinha linda,

e quer ser luz ou ser, ao menos, asa

para voar, subir, roçar aquela brasa

de alabastro, num beijo de noivado,

e salta, e cai na lama, a coaxar... Coitado!...

 

Simbolismo

de ilógica atração

que exerce a imensidão

sobre o abismo!

 

Imensidão, o amor... Abismo, os corações...

E o poeta, sentindo a angústia e a dor dos pegos

sonhando com amplidões,

pede à Razão de Tudo – pra contê-las –

que todos os batráquios fiquem cegos,

ou que se apaguem todas as estrelas!... p. 76-77

 

 

OS TRÊS MAS DE UM DRAMA TAPUIO

 

Tinha um filho, perdeu.... Foi à mata e o plantou

bem debaixo de um pé feliz de sumaúma,

que estava todo flor, que estava todo pluma...

Depois, no tijupar nunca mais se cantou.

 

Mas como, quase sempre, uma dor não consuma

a desgraça de alguém, sua Teresa pecou,

numa tarde partiu, se perdeu, não voltou...

Numa tarde sem sol, numa tarde de bruma...

 

Ficou só... Só com DEUS...  Mas a saudade veio

lembrar como era morno e moreno esse seio

que outra boca levou, que seu beijo perdeu...

 

E seu peito estalou, como estala, potente,

o cerne do pau-ferro a tombar, de repente,

ferido pelo céu... Não vergou, mas morreu... p. 81

 

 

SIMILITUDES

 

Nasci em frente ao mar.

Meu primeiro vagido

misturou-se ao fragor do seu bramido.

 

Tenho a vida do mar!

Tenho a alma do mar!

 

A mesma inquietude indefinível,

que nele é onda, e é em mim anseio,

faz-nos tremer, faz-nos fremir, faz-nos vibrar.

Às vezes, creio

que da minha loucura do impossível

sofre também o mar.

Tenho a sua amplidão iluminada

– o meu amor; e seu velário de brumas

– minha mágoa.

 

Ruge a tormenta... e o que ele faz com a frágoa:

embates colossais,

faço com a minha fé petrificada...

té que tudo se extingue em turbilhões de espumas

e de lágrimas... Destinos abismais!...

 

Guarda em si tempestades que estraçoam,

cóleras formidáveis em mim guardo...

sobre o meu pensamento, ideias voam,

voam alciões sobre o seu dorso pardo...

 

Meu gigantesco irmão,

senhor do cataclismo,

se tens, por coração, um negro abismo,

eu tenho, por abismo, um coração.

Dentro de ti, quantos naufrágios, quantos,

de naves rotas pelos vendavais?!...

E, dentro em mim, sob aguaçais de prantos,

quantos naufrágios, quantos, quantos,

de sonhos, de ilusões e de ideais?!

 

Faço trovas a alguém que não posso beijar

tal como tu, na angústia de querê-las

sem as poder tocar,

fazes, nas noites brancas de luar,

serenatas inúteis às estrelas...

 

Sou bem fraco, porém, e tu és forte...

Nada te vencerá, há de vencer-me a morte...

Embora!... Mar morto, água dormida

que por mais nada nem de leve ondeia,

hei de deixar meus versos pela vida,

como tu deixas âmbar pela areia!... p. 83-84

 

 

ECOS SELVAGENS

 

Batuque mazombo,

paródia de bombo,

enquanto a pretada,

luzindo suada,

prepara a macumba.

 

– “Minha santa donzela”...

(Pum-pum! Pum-pum-pum!)

...”di roupa amarela...”

(Pum-pum! Pum-pum-pum!)

“qui bela tu é!...

Ti apressa, ti achega,

tem pena da nêga,

qui tanto ti qué!...

 

E estruge o batuque

à força de muque

batido a vigor...

E a roda se torce,

Contorce, retorce

jiboia de horror...

 

“Façai cum qui ele...”

(Pum-pum! Pum-pum-pum!)

...si cóce, se pele...

(Pum-pum! Pum-pum-pum!)

“somente por eu!”...

E tudo qui tenha

di mim só qui venha,

qui sêgi só meu!...”

 

E ao vento de açoite

repassam morcegos

que vão e que vêm,

tal como se a noite

mais negra que os negros,

sambasse também. p. 101-102

 

 

A VOZ DA AMAZÔNIA

 

Música lá de cima, do Norte abandonado

como alguém que ficou sem seu amor...

Música que tem langores de pecado,

e a angústia, a tortura, a agonia da dor.

 

Quaios de rios roçando por barrancos,

tais beijos de amante lascivo cingindo

o corpo da amada na curva das ancas...

Frufrulho de palmas festivas aflando...

Suspiro de virgem morena dormindo...

Cicio de pajé, puçangueiro rezando...

Soluço de “Terra-caída” caindo...

Suor de taperís perdidos na floresta,

paraíso infernal, onde o céu é uma festa,

onde a morte é um bem porque a vida é um mal...

Ressoo de gumes ferindo os arbustos,

de nostalgias lembrando os adustos

rincões nordestinos da gleba natal...

Trocano longínquo do último índio,

sem caça, sem roça, sem puba, sem taba,

carpindo a desgraça de ser ameríndio,

escravo vencido do novo ameraba...

Violões, violões, violões, violões,

ninhos de boêmios corações

que flamam,

que chamam,

que gemem,

que tremem,

que oram,

que choram,

que falam,

que correm,

que param,

que morrem

de amor, com amor, ao amor, por amor...

E sinos plangendo em ocasos da cor

de violetas, de equimoses, de olheiras

– sinos de ermida

perdida,

esquecida,

a cuja voz, porém, como se fossem freiras,

árvores em redor, cruzando galhos,

começam a murmurar, entre farfalhos,

o Ângelus das tardes brasileiras...

Gritos roufenhos de centauros broncos,

na cola do Touro, largados ao ar...

uivos e guinchos e silvos e roncos

de toda uma fauna noivando ao luar...

Resmungos de velhas, goirando nos ninhos...

Responsos soturnos de cem ladainhas...

 

Risadas sarcastas de mil acauãs...

Batuques de pés pilando mandingas,

enquanto, na água, por entre as aningas,

os botos solertes espiam as cunhãs...

– esses e muitos mais sons bárbaros, selvagens

formam a voz natural da Amazônia ignota,

vindo em elos de ecos, margem a margem,

de rechã em rechã, grota por grota,

transfundida em harmonia proteiforme,

ecoar no peito do Brasil enorme.

 

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Música lá de cima, do Norte abandonado

como alguém que ficou sem seu amor...

ouvi: vai cantar para vós o seu pecado!

Ouvi: vai chorar para vós a sua dor! p. 114-116

 

TAVERNARD, Antonio. Obras reunidas de Antonio Tavernard (Volume I - Poesia). Belém: Conselho Estadual de Cultura, 1986.

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ANTONIO TAVERNARD nasceu no dia 10 de outubro de 1908, na antiga vila de de S. João do Pinheiro, hoje Icoaraci, a 18 km de Belém-PA; e faleceu em 02 de maio de 1936, aos 28 anos. Em vida publicou apenas um livro, "Fêmea" (1930, contos). No entanto, teve uma vida literária intensa em jornais e revistas. Também escreveu peças de teatro. Deixou inéditos um volume de contos - Almas Tropicais e um romance - Os Sacrificados. Em 1953, foi publicado uma seleta de suas poesias com título "Místicos e Bárbaros". Um livro, simplesmente, fascinante. Em 1986, o Conselho Estadual de Cultura do Pará, reuniu a obra de Tavernard, por ocasião "do Cinquentenário de morte do saudoso escritor conterrâneo", em dois volumes, intitulados "Obras Reunidas de Antonio Tavernard" (Volume I Poesia e Volume II Prosa).