Álvaro Maia (1893-1969)
Nas pequenas cidades do interior amazonense,
como em seringais e povoados, homens admiráveis, pela audácia e pela coragem, revigoram-se
das canseiras do dia, com os ouvidos atentos às vozes e aos cantos que as ondas
filtram das distâncias. Transporto-me para os seus lares, com o mesmo perene
desvairamento pela região singular, que plasmou a nossa vida para a reação e o
labor.
As lamparinas errantes nos barracões enormes,
em aparições de fogos fátuos, acendem esperanças, ou lembram flamas de triunfo às
águas, que se enrolam em procissões barulhentas.
Escrevo no interior, vendo e sentindo a
influência genésica da natureza. E somos, na verdade, fragmentos dispersivos
dessa natureza, impregnados por suas ansiedades e suas forças construtoras.
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Uma vez, ao visitar o Nilo, Ludwig, deslumbrado
ante as represas de Assuán, viu, no destino dum homem, a imagem e o destino de
um rio. Mais: viu “num curso dágua o destino dum homem”.
Ao calor dessa linda evocação, qual o nosso
destino, qual o desdobramento da nossa existência, milhares de compatrícios do Madeira,
civilizados ou ameríndios, que habitais os barrancos, as terras-firmes, as
ilhas, as serras, na parte exclusivamente brasileira?
É, por certo, o destino das lutas generosas,
das vitórias prelibadas em renúncias, as derrotas sofridas sem tibieza, nessa escalada
tenaz pelo desbravamento do sul-amazônico, desde o século XVII, quando as
incursões se realizaram ao impulso dos remos, através dos estirões infindáveis,
unidos pelas curvas sucessivas e desenhados pelos blocos de terra-caída.
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Rio-enigma, de serenidade aparente e
correntezas bravias, traz, na revulsão dos banzeiros, as ambições de três
pátrias adolescentes, a música de dois idiomas novilatinos e dos sonoros
dialetos primitivos.
Espalha os manadeiro pela Bolívia inteira, mas
um braço poderoso, o Beni, caindo próximo ao Peru e às nascentes do Amazonas,
aperta os contrafortes andinos, sente-lhes os ventos frios “nos nevados de
Chacaltáya”; o outro, o Guaporé, infletindo por Mato Grosso, mistura-se às
águas do Prata, por intermédio do Paraguai, nos igapós oceânicos das
invernadas.
Singular fraternização!
Bebemos, em suas correntezas vertiginosas, as
inspirações das duas maiores maravilhas do continente sul-americano – os Andes
e o rio da Prata.
Mais tarde, após a decantação em mais de 400 quilômetros,
arregimentando as águas de tantas origens, continua, no solo pátrio, a obra
formidável de aproximação fraternal: fala ao Purus pelo Abunã, ao Tapajós pelo
Canumã e, no delta, estende as comunicações desde o Purus até o paraná do
Ramos.
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Rio-esfinge, Rio Sagrado, Ganges da Amazônia!
Escutou, na infância luminosa, os hinos dos Incas,
nos embates pela Glória do seu Império, nos clamores pela agonia de sua raça: e
ainda, nos barrancos dos Marmelos e do Maici, os restos das tribos litorâneas,
varridas pelas massas conquistadoras.
As velhas tribos não desapareceram totalmente:
de vez em quando, uma flechada certeira avisa aos invasores civilizados,
esquecidos dos limites legais, que elas não estão dormindo. As lendas revivem e
cada índio esconde um porantim dentro do coração.
A civilização, em rios novos, inicia-se, quase
sempre, pela foz. O Madeira, pelos afluentes do Beni, banha La-Paz, joia
boliviana, e inverteu o postulado sócio-geográfico. Civiliza também pela
nascente.
Tenho mistério dos imprevistos: há enseadas
longas em surdina, onde as águas remansam em calma surpreendente, e desvãos encachoeirados,
em que se percebe o barulho para além de doze quilômetros...
Suas águas, odiando a monotonia, são amarelas
no inverno, azul-turquesa no verão, verde-esmeraldina no Candeias, escuras no
Machado, onde Raimundo Monteiro divisou cordas de harpas nos galhos balouçantes
dos araçás.
Rio generoso, em cujas águas se dissolvem, como
ofertas a outras gentes, o barro das margens alagadas, casar árvores de longas
distância e até os ossos dos desbravadores, perdidos nas sepulturas lavadas
pelas enchentes...
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São iguais a esse rio e seringueiros pacientes,
corações amigos que se abraçam no verão e quando as chuvas fogem, para que as
praias, como placentas dardejantes, posso aviventar os primeiros milagres da
agricultura, às fecundações do sol esbraseado.
Seu homem reflete o ambiente, não podemos fugir
à tenacidade do rio indefinível, cujos nascedouros brotam de escarpas de montanhas,
acariciadas pelos furacões do Pacífico, e de igapós imensos, ajoelhados às vertentes
que se debruçam para o Atlântico.
Poucos adivinham o heroísmo incessante: sob a
selva infinita, incendiada pelas copas de pau-d’arco, operários-escafandros,
vencendo e imortalizando os trópicos... Batelões nas corredeiras, pulando, como
animais fantásticos da pré-história; canoas esguias, que apunhalam os lagos em
repouso... Árvores derribadas, tempestades vencidas, cheia-grande que se foi e voltará.
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Humaitá plantou-se na parte média do rio-enigma,
exatamente no ponto em que os campos-gerais se engolfam na floresta para morrer
às margens altas, pontilhadas de árvores gigantescas.
A torre fina e branca, ressurgindo de um fundo de
palmeiras, aguarda, no bucolismo do interior, as novas gerações que hão de
prosseguir os mesmos ritos de resistência e trabalho.
Exalte-se, acima de tudo, o seringueiro
brônzeo, gênio das águas barrentas, provindo da fusão de ameríndios e
nordestinos, em sua faina permanente, grudado às canoas nas manhãs nevoentas,
investindo pelas selvas em madrugadas claras ou chuvosas, na eternidade da
construção e da intrepidez.
Bem nos conhecemos, porque somos iguais, porque
bebemos na infância, ardendo em interrogações, as águas que trazem o cristal
das montanhas e o barro das planícies encharcadas.
Somos um só, nesta hora de recordação, – homem
que labuta quase só, homem que ofereceu ao solo a hóstia do seu próprio corpo,
terra-maternal, que acolheu as sementes para o esplendor da germinação,
terra-irmã, que, divinizada pelo sacrifício, deu ao espírito, nas horas de
maior abandono, o milagre da esperança, do sonho e da crença.
MAIA, Álvaro. Gente dos seringais. 2ª ed. Brasília:
Senado Federal, 1987. p. 16-19