terça-feira, 23 de agosto de 2022

MAIS QUE ISTÓRIA DO POVO DO LUGAR

Notas da fala de Thor Veras, por ocasião do lançamento virtual do livro, na noite de 12.08.22

 

Certa vez fiz a provocadora sugestão de que Rio Branco é para meu pai, o que Berlim um dia foi para o filósofo Walter Benjamin. Não se trata apenas de uma cidade, de um amontoado de ruas e esquinas e rios que compõe um espaço em um mapa, mas um acontecimento. Uma temporalidade que nos escapa, uma ubiquidade que dissipa toda apreensão reificante, um entre-lugar que demanda escavar nas mimeses da infância, na matéria mais bruta da poesia que é o cotidiano e suas contradições urbanas - aquela entre o flaneur e o flanelinha, o catraieiro e a catraca do ônibus - justamente para encontrar neste labirinto, o raio do poema em sua densa luz, que revela as faíscas de uma estética possível. Assim como é este livro. Pois o primeiro assombro que temos ao manusear essa obra é justamente a experiência de que não se trata, tampouco, de um mero objeto de rememoração nostálgica (a “infância rio branquense” e seus becos, capoeiras e ruas sem saída), muito menos de um livro de poesia concretista com colorações de um cronista (aquele que tem um olhar oblíquo acerca da transformação estrutural das instituições de uma esfera publica e sua circulação da arte, da cultura e da política).

Antes, nos vemos nessas páginas quase ou mui  torcicolares, um caleidoscópio (como Gerson falou um dia da poesia dele) que nos permite atravessar toda sensibilidade de um sujeito criativo e incomodado com os contornos de sua experiência (de experimentação) do “particular”. E aqui digo particular com toda cautela do mundo. Pois meu pai fica enfezado quando não compreendo que, na realidade, a sua escrita que se insinua provinciana, relativa a um “lugar”, apenas simula o que para ele é mais verdadeiro e paradoxal: o local, na realidade, mais plástico do que aparenta, é a porta dos fundos que apresenta o quintal do universal. Que nos apresenta o igarapé por onde circula a resistência a toda tentativa arbitrária de verticalização da vida. A “istória do lugar” é nada mais que a “nossa história”, com H, mesmo, que, perpassada por uma ontologia das ladeiras, uma dialética dos barrancos e uma estética da seringalidade (o conceito que rastreia o seu legado filosófico e que perpassa a sua trilogia editorial ou trindade de livros, como diz Issac Melo), nos revela a condição de periferia da periferia da periferia.

E é justamente essa condição, essa tempestade que impele ao futuro, mas também que incendeia um passado simultâneo, que emerge um ornitorrinco (ou um mapinguari), (moderno e atrasado) que sempre motivou meu pai a escrever, compor, ler, cantar, tocar instrumentos, pintar, fotografar, recortar e colar, produzir, se inquietar — desassossegar. E isso que encantou e encanta a mim e a Nina (quando vemos ele imerso no canto dele, quando observamos a tecla que bate retocando e atravessando o dia lá do seu escritório — a terceira margem do rio dele, escrevendo no microsoft word como se pichasse os muros dos bairros da cidade a cada verso) e que nos fez reunir aqui hoje em torno desse não-livro, esse artefato que circulou entre as pessoas que meu pai ama ( essa confraria e não academia peripatética de poetas e poetisas), que nada mais é que a materialização de sua constelação de incômodos e reverências (a homenagem mais genuína, pois os nomes dos e das personagens que saltam na obra são, na realidade, o que ele consome diariamente — a arte local) que me faz lembrar e admirar aqui de longe o infinito repertório imaginativo de meu pai.

É assim que ele procura dar consistência para o mundo, e nessa busca, e em especial, na sua contingência, ele pode criar outros mundos, ou melhor, outros lugares que eternamente retornam (assim como o ônibus circular de fuga do Acre, mas que a ele sempre retorna — e de forma mais fortuita, na grandiosa e irradiante Nepan).

Portanto, mais do que as histórias oficiais, o que lhe interessa são as genealogias bastardas. Mais do que os projetos de governamentalidade, o que lhe motivou nesses rolês todos foram as linhas de força de insubordinação, de emergência do novo. Mais do que a florestania, o que lhe fez investigar analiticamente e poeticamente é a condição de condenados da terra e as fugas inventivas desse povo. Desde os fanzines da sua graduação, aos panfletos do movimento social, aos artigos de intervenção em jornais até o Facebook e seu mural (esse canal insistente que ressoa como uma caixa de ecos). Por esta razão, não é raro o descreverem como um cara inquietante. Arrisco dizer que vem dessa perpétua desconfiança com os caminhos retos e divisões estanques e pela preferência que ele adquiriu pelos entrecruzamentos, que, inevitavelmente, o leva a teimosia (a palavra que mais define meu pai, especialmente depois de seus 60 anos) em não sucumbir ao poder. Mas o que significa poder aqui? Complicado. Difícil mapear na cartografia desse homem o que ele compreende por poder, especialmente por ser aquilo que vira fonte de toda critica, de toda uma vida, e principalmente, da inquietação que o mantem vivo.

Uma resposta provisória está próxima da reiterada, insistente e pervasiva presença do adjetivo “colonial”, essa manifestação (estrutura histórica e presentista) de poder que traduziu a saga estética do meu pai — desde sua juventude, marcada por enaltecer a vida da floresta até a audiência dos mortos, de denúncia da alienação local. Eu diria que seria mais fácil falar o que poder não é para meu pai — que potência é essa nos leva para a vida e não para a paralisia, para a aporia, o beco sem saída, a morte-expoacre e etc. E a pista mais expressiva que posso indicar a vocês está na foto de minha vó Mariazinha e de meu pai, ao final do livro, que revela onde está todo o potencial de resistência: no amor e na arte. No carinho amoroso e saudoso de um filho para sua mãe (e o enraizamento a terra que lhes acolheu) e na experiência estética, no caso o cinema e a música, que mediou a sua memória e o seu maior legado. (Além do flamengo, claro). Isso, nos ensinou Sérgio Taboada, é o que importa. Amor e arte. Te amo pai. Vida longa à sua arte.

terça-feira, 16 de agosto de 2022

SÉRGIO TABOADA: REBELIÃO (álbum completo)

 

1. AQUIRI (Sérgio Taboada)

2. ENTRE A RUA E A MEIA-NOITE (Betho Rocha e Sérgio Taboada)

3. PRONUNCIAMENTO (Sérgio Taboada)

4. RIBEIRAMAR (Sérgio Taboada)

5. TRANSBORDANDO (João Veras, Mário Emílio Malachias e Sérgio Taboada)

6. VIDA JÁ NÃO VALE NADA (Sérgio Taboada)

7. ANJO BOM (Ricardo Taboada e Sérgio Taboada)

8. CORAÇÃO DA MATA (Francisco Dandão e Sérgio Taboada)

9. CORAÇÃO ATEU (CARA) (Sérgio Taboada)

10. GUARÁ (Sérgio Taboada)

11. CANTO VERDADEIRO (Gisela Oliveira e Sérgio Taboada)

12. TESTE DO PODER (Jair Taboada, João Taboada e Sérgio Taboada)

13. REBELIÃO (Sérgio Taboada)

 

CD REBELIÃO (1998) – SÉRGIO TABOADA

Ficha técnica

Produzido por Edmilson Aureliano e Eluilson Aureliano

Produção fonográfica: Armando Nogueira

Gravado e mixado nos estúdios Guidon – SP, por Edmilson Aureliano

Arranjos: Eluilson Aureliano

Baixo, bateria, guitarra, violões, percussão e teclados: Eluilson Aureliano

Teclados adicionais: Edmilson Aureliano

Sax alto: Davi Rosalino

Acordeon: Agostinho

Vocais: Hudson Reis e Leia

 

Canto verdadeiro – a letra desta música foi entregue a Chico Mendes em 1988, meses antes de seu assassinato.

segunda-feira, 15 de agosto de 2022

Poesia no abismo: entre a subserviência e a sorte

Luis Satie

 

Disse um conhecido filósofo alemão que após o holocausto, fazer poesia é um ato de cinismo. Um – não menos consagrado – poeta brasileiro completou que mundo até poderia ser uma boa rima para raimundo, mas não seria uma solução. O fato é que, após as barbáries do século XX, o ofício do poeta ficou cada mais difícil. Não obstante, continuamos a escrever versos. Pois bem! E agora? Como escrever um livro de poesias sem ser cínico ou ser acusado de cinismo? Prefiro pensar que poesia não é entretenimento e que não é poético fazer rimas mecânicas e combinações meramente diletantes para atrair audiências e inflar egos de poetas e poetisas, diante da miséria do mundo que bate à nossa porta. Em vez disso, arte é um meio avançado de conhecimento do mundo, de suas misérias e de suas virtudes. Então, que tipo de saber “Istória do Povo do Lugar” (Veras, 2022) me traz? 

O conhecimento do mundo vivido do poeta e o conhecimento do poeta ele mesmo, a partir de sua mundividência particular, não necessariamente nessa ordem. Conhecimento de becos, travessas e travessuras de menino. Conhecimento do próprio jeito do poeta – umas vezes delicado, triste, revoltado, cidadão, nostálgico, outras vezes irônico, amargo, ríspido e iracundo – de testemunhar o trágico e de (des)crever gestos e tipos humanos que lhe cruzaram o caminho. Esse é o conhecimento disso que é o Isto. O conhecimento disso que é o Isto é uma Ist(ó)ria: o inominável Isto que nos emaranha e se fixa em algum lugar da memória recalcada ou do inconsciente, involuntariamente, e passa a fazer parte de nossa istoridade.

A Ist(ó)ria então se revela como o estoque não-conceitual do mundo visto pelo poeta. Para dar conta desse estoque ist(ó)rico, o poeta precisa de palavras, mas o trabalho de palavrear a ist(ó)ria do isto – isto é, de isto(riar) –, é arriscado. O poeta parece bambear no meio do abismo, entre o trabalho de busca paciente e criativa de imagens e a preguiça da pressa de dizer logo o que suas retinas enxergam ou o que seu corpo sentiu na aventura do momento vivido. Entre a arte da mediação e a pressa do registro, o poeta sofre para não sucumbir na (h)istória ou na (e)stória, aquela como arquivo científico, esta como arquivo do discurso ordinário comum, do imaginário compartilhado de não-poetas.

Ora, essa pre(ocupação) do espírito do poeta de não cair nas águas comuns do arquivo histórico/estórico e o anseio de buscar traduzir artisticamente a ist(ó)ria da (isto)ridade que experienciou ao longo da vida é angustiante, a ponto de transbordar para além do verso, como meio inconsciente de garantir uma reserva de imagens e efeitos que pudesse salvaguardar a penosa tarefa de dizer o indizível no miolo do artefato livro. “Istória do Povo do Lugar” é, pois, um livro angustiado. 

E essa angústia se apoderou do formato da obra, da numeração das páginas, da configuração de margens e entradas de textos, da disposição espacial das capas e contracapas e da apresentação gráfica da própria matéria escrita. É que “Istória do Povo do Lugar” não é a istória do Povo do Lugar, dois substantivos abstratos: é a ist(ó)ria dos momentos ísticos de um indivíduo situado agonicamente (n)um determinado lugar, lugar esse que também é um isto, um algures ou alhures que demarcou sua istoridade pessoal. Um lugar ubíquo, útero de um indivíduo atormentado, de um lado, por afirmar seu pertencimento a uma comunidade de nascimento, e, de outro, por não conseguir escapar das malhas da história oficial de Rio Branco, nem dos universais da política, da economia e da cultura, entranhados em sua alma e em seu corpo.

Sim, “Istória do Povo do Lugar”, é uma obra conseguida, não só pelo formato físico que a faz entrar para a história do artefato-livro no Acre, não só pela sinceridade do dizer ou pela generosidade do compartilhamento público do dito, mas por ser um ato de li(ciência) poética, a saber, de des(encobrimento) estético do que até então eram só fantasmas e lembranças amareladas pelo tempo existencial de um singular habitante da cidade de Rio Branco, observador atento do abandono social que aflige a maioria das pessoas que sobrevivem no ocidente da Amazônia brasileira, cujo destino parece ser a subserviência ou a sorte.