Romeu Jobim (1927-2015)
Quando o conheci, já
beirava os cinquenta. Morava a pouco mais de uma hora do barracão. De inteira
confiança, era quem me trazia da cidade, dois dias a cavalo, por ocasião das
férias, e àquele me levava de volta, chegado o período escolar.
Recordo-o
bem. Ruga funda entre os olhos, dois vincos fortes no canto da boca, um
mestre-escola. Os seringueiros, em geral, são homens rudes, iletrados. Fugia à
regra. Após a faina diária, à luz da lamparina de querosene, não se deitava sem
ler quanto lhe caísse às mãos: jornal, revista ou livro.
Além de leitor
constante, seria não só o que já se denominou, à francesa, de causeur, como o que hoje se costuma
chamar de comunicador. Nem terá sido por outra razão que, em certa época, quando
apareceu no seringal um grupo de crentes, se tornou um de seus adeptos
fervorosos, em breve ninguém o excedendo em conhecimentos bíblicos e pregação
do Evangelho.
Quem
o conhecia de outros tempos, no entanto, do mesmo passo que demonstrava
admiração, logo expressava incredulidade quanto à extensão da metamorfose. Em
moco, dizia-se, não fora homem de levar desaforo para casa, tendo mesmo,
acrescentava-se, muitas mortes nas costas, o que aliás sempre negava, embora de
maneira um tanto inconvincente.
É:
só mesmo a idade e a crença, garantiam todos, o poderiam ter transformado
naquele manso pregador, incapaz de ofender o próximo. Conheci-o pouco antes da
conversão religiosa, mas, entre atear e apagar um incêndio, realmente já
preferia a última alternativa. Lembra-me também que, depois de se tornar um
divulgador do Evangelho, o fazia à larga, citando a Bíblia a propósito de quase
tudo, o que, convenhamos, apesar da simpatia pessoal, o limitava muito em meu
gosto adolescente.
Foi
aí que lhe ocorreu na vida o que, noutros tempos, afirmam quantos o conheciam
bem, teria dado lugar a inevitável tragédia. A mulher, que era alguns anos mais
nova, mas já lhe dera vários filhos, abandonou-o, partindo em companhia de
outro seringueiro, que também se comentava não ser de brincadeira. O seringal
ficou em polvorosa. Em face dos antecedentes, ninguém duvidava do que ia
acontecer.
O
imprevisto, porém, se verificou. Não só recebeu o golpe com humildade cristã,
como ainda se fez pregador mais fervoroso. Dedicou-se aos filhos e tornou-se
pastor, com grande e crescente número de seguidores na Assembleia de Deus, que
passou a dirigir. Não restava qualquer dúvida: transformara-se no perfeito
cristão, capaz de oferecer a outra face à segunda bofetada.
Tamanha
foi a tranquilidade com que resistiu à desdita conjugal que a mulher e o
amante, após algum tempo, retornando às proximidades, mandaram consulta-lo
sobre como os receberia, uma vez que a primeira desejava rever as crianças. de
acordo com o intermediário, o convicto pastor permaneceu um instante em
silêncio e em seguida, sem perder a calma ou a postura e o tom que a religião
lhe dera, respondeu:
–
Não há problema. Diga a ela que, quando quiser, pode visitar os filhos. Nada
lhe acontecerá. Mas seu companheiro não permito que venha nem apareça em minha
frente.
E
arrematou:
–
Por uma razão muito simples: eu me tornei crente, mas meu rifle não. E eu não
respondo por ele.
JOBIM, Romeu. Boa
tarde, excelência!. Brasília: Senado Federal, Centro Gráfico, 1990. p.7-8
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Romeu Barbosa Jobim nasceu em seringal do Acre, em 25 de fevereiro de
1927, filho de Armando de Oliveira Jobim e Francisca Barbosa Jobim. Cursou o
primário e o ginásio em Rio Branco e Manaus. Depois foi para o Rio de Janeiro,
fazendo o clássico e formando-se em Filosofia e Direito. Redator da Câmara dos
Deputados, por concurso, em 1960, integrou a magistratura do Distrito Federal
desde 1976. Lecionou, no Rio e em Brasília, Filosofia, Psicologia, História e
Português. Iniciou-se nas letras aos quinze anos. Morreu no dia 30 de maio de
2015. Publicou: Justiça: Humor Forense;
Em Tom Menor; Pássaros de Meus de meus bosques; Amanhã Cedo é Primavera; Cantos
do Caminho; e Entre Crônicas e Contos.